POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2
LIÇÃO DAS COISAS
As horas se desprendem dos ponteiros dos relógios
como nos livros de Bruno Schulz,
ou nos quadros de Dali,
cujos relógios rasuram a paisagem
e se dependuram em galhos secos.
Do avesso,
o relógio está repleto de formigas,
putrefato,
como os cadáveres fechados em
ambulâncias,
containers,
que dizem adeus às ruas,
às cidades,
às casas,
aos rostos desconhecidos.
O tempo está suspenso,
os dias são longas noites,
as noites são dias de espera
e solidão
A janela olha o dentro e
o fora
a borda está alhures,
onde?
Ouço o cão que late lá fora
a flor do manjericão atrai os insetos na cozinha,
o antúrio, outros tantos.
O céu nunca esteve tão azul,
o ar enche os pulmões
e os versos que
em tempos de peste
teimam em se escrever
em meio às miudezas do cotidiano,
às covas rasas,
aos corpos superpostos,
à terra vermelha que não tem fim.
Em tempo de horror e
desespero
o vírus parece não escolher a quem
e é longo o percurso até o começo.
A ARTE DE PERDER
Agnès Varda documentou as viúvas do bairro que perderam seus maridos,
eram muitas,
hoje não pode mais fazer filmes,
foi-se no ano passado aos noventa anos,
“o acaso é meu melhor roteirista”, costumava dizer.
Acidental, a construção de um filme?
Incerta parece ser também a vida.
Definitivo é o poema,
que não se deixa abater e se firma na página:
pleno,
peremptório,
severo como as circunstâncias
e os fatos
exigem.
O QUE É QUE SE PERDE MESMO QUANDO SE PERDE ALGUÉM?
Lota também perdeu,
um amor de quase duas décadas
e de muitos poemas.
A casa na mata de uma escarpa do sítio em Samambaia,
o pente de prata perfeito para os longos fios,
os postes de luz que alcançam o céu no parque do aterro do Flamengo
também se perderam
no tempo
e na memória.
As definições se desprendem do verbete
e vocalizam as vogais do verbo vário,
perder: “deixar, largar, esquecer, falhar, malograr, privar-se, desaprender,
deslembrar, esquecer, olvidar, obliterar, abandonar, desfazer-se, livrar-se”.
O conceito preciso e
a certeira expressão
que o poema consentiu
não saberemos.
“Sou uma viúva triste”
de olhos escuros
que alimenta os pássaros e os pombos no terraço.
2020
O contágio do vírus,
o contágio da palavra,
Susan Sontag parecia antever
“a doença como metáfora”,
aquela que durante muito tempo
não podíamos pronunciar o nome.
Como não nos lembrarmos do poeta Augusto dos Anjos que
por meio do carbono,
do amoníaco,
do verme,
dos aromas da decomposição,
nos apresenta a “frialdade inorgânica da terra”?
No ano que traz a escrita de
um número duplicado,
algarismos que se fazem traço,
outra doença se espraia
algoritmamente
e se mostra
nas telas,
TVS,
macas,
corredores de hospitais,
UTIS,
calçadas.
INVISÍVEL, O VÍRUS?
Como ficarão
as escaras,
os membros túrgidos,
as hemorragias,
as ínguas,
as sequelas,
o andar,
a voz,
as palavras não ditas?
A tuberculose, a gripe espanhola, a varíola, a aids, o ebola,
a febre aftosa,
a pele das palavras viraliza.
A lâmpada do poste está quebrada,
quem passou?
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Leio no jornal:
“Abandono de animais se multiplica na pandemia e atinge cavalos e coelhos”,
As ruas choram o aumento dos cães.
Alguém disse que “os animais são ardilosos”,
será mesmo?
A boca do cão tem fome,
a do homem
está coberta por um pedaço de pano e
não se furta à dor
e à desolação dos tempos.
“Todos os dias agora são finais de semana”,
ouço de um morador que habita a rua.
A marquise não acalenta a fome
tampouco a solidão
Quid in limine scriptum est?
O que está escrito na soleira da porta?
“A boca também é um tipo de cova”,
alguém escreveu,
alguém.
Venus Brasileira Couy é poeta e ensaísta. Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ, publicou, entre outros livros, Mural dos nomes impróprios (Rio de Janeiro: 7Letras, 2005) e Inverno de baunilha: (Rio de Janeiro: 7Letras, 2004).
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