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Tyara Veriato

Foto do escritor: REVISTA ZUNÁIREVISTA ZUNÁI

POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2



POSTA RESTANTE



Ao meu filho

eu digo que o mundo já foi

outro

dito

e ouvido

numa língua morta

enterrada

no mesmo buraco do mundo

junto

como se enterra marido e mulher


É com a língua recém-nascida

soterrada e erguida

que dizemos

saudade,

meu filho,

essa palavra

que se fratura em três

sílabas

abrindo

um buraco

seguido de outro

e o buraco afunda quando digo

saudade de mar

saudade dos teus olhos escuros

saudade do teu sal na minha boca

saudade de todos os ecos que poderia ter visto sair dos teus precipícios


cuidado,

meu filho,

é só isso que se pode dizer

a um filho

numa língua antiga e profunda

seminova,

seminossa:

o buraco é na verdade um abismo

você vai cair,

já foi,

passou,

tenha cuidado.




PARA LOGAN



Ele me disse

é como se estivéssemos em 68

alguém sumiu

estamos do lado de dentro

e olhamos para a porta

e olhar para a porta é como uma prece


Nossos ouvidos são capazes de ouvir

o choque da queda de um alfinete no oceano,

fraturas na perna de uma formiga

a neurose de um pássaro

os arredores do medo

a vizinhança imediata do silêncio

tudo que perturba o espaço


o viram pela última vez

ontem à noite

ou foi pela manhã?


A hora que te perdi é incalculável


ouve,

ninguém voltou

e olhamos para a porta

e já não sabemos

se é a porta que nos olha

arregalada

um gato

com olhos de cão


Enterrar os mortos é um luxo muito antigo

mas estamos em 68

e 68 não tem pena de ninguém


Na rua,

sobre um muro

“isso não é uma porta”

pare de bater




CANÇÃO, AMIGA



Eu preparo um silêncio maior do que o de Hiroshima

dentro dele todas as mães se reconhecem

e só desejam comer sumir dormir

O filho que não fizemos chora insiste pede peito palavra um nome

Há muitos nomes para Hiroshima Xingu Mariana Miguel Ágata Belo Monte


A bomba não é o que explode casa vidro braço perna cabeça

A bomba é um segundo depois dos gritos

é o retrato

é a lama é a lama

cogumelo gigante nuvem cinza mar marrom


A bomba foi ter sobrevivido

sem ti


Nunca saberemos o que foi a bomba um para o outro

nunca saberemos porque os cães se recusam a deixar o local da tragédia

mas suspeitamos porque o poema continua embaixo dos escombros


A bomba é o verso que me dispara de um silêncio


Um dia vou preparar uma canção

em que nem ninguém se reconheça




Tyara Veriato é de João Pessoa/PB e vive em Campinas/SP. Trabalha como retadora e pesquisadora na Unicamp, instituição em que realizou mestrado e doutorado em Linguística. Atualmente, se interessa pelas relações entre discurso, poesia e violência. Produziu a peça Eu sou sozinha (2016), publicou na revista Malembe (2017) e é editora do Podcast Mulheres em PoEHMaS (2020).

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