POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2
A ESPERA
Adriana Gama de Araújo
saudade
coisa que cheira a sangue
como o céu rebelado do poente
espero que a guerra acabe
teu corpo mina
o meu semente.
FUMÊS AO CREPÚSCULO
Antonio Aílton
Reinventar a vida é redimi-la de toda a sua crueza não de suas mediações É preciso desculpá-la em seu teatro cósmico e reconhecer que nós continuamos a ser tão ranzinzas, tão mesquinhos William Carlos Williams deveria estar vivo para ver este crepúsculo Diante do mar nós tiraríamos calmamente os nossos óculos
A MESMA QUÍMICA
Bioque Mesito
[A Nara Ferreira]
ao caminhar sozinho
aprendi que o amor
é uma simbiose de bocas
o que amamos gruda em nós
felicidade me parece
uma revoada de interrogações
lembro que saudade
não é uma escolha
abre fronteiras em meus amanhãs
meu destino
é beijar as flores
da planta de teus pés
ARARUTA
Carvalho Junior
somos feitos das mesmas fomes dos nossos pais,
das mesmas lenhas que os guardaram do frio súbito das noites caseadeiras de exílios.
de vez em quando, ouço de longe a voz da lágrima do meu pai e de minha mãe.
um quintal de ararutas nasce dentro do chão cansado dos meus olhos.
TESTAMENTO
Celso Borges
só sobrei minhas palavras
só réstia em suma perdas
certas partidas inacabadas
cactos
só sobraram cacos
fundas em voo
ácido parado
palavras
fado ou enfado
carreguei nos neurônios
na alma nos sonhos
nuas as vi nascer em mim
assim
palavras inteiras eternas primeiras
soçobrei
só sobrou espanto
breu brabo ás de baralho
brilha cesária bombril
palavra
a puta que me pariu
INVERNO, 2020
Dyl Pires
Um a um
estão indo todos
Pássaros que migram
no inverno
nunca retornam
Colorir a morte que havia em todas as coisas
foi a pulsação de uma vida
Mas ainda se faz necessário
antes que os coveiros sumam
preparar o funeral
dos velhos hábitos
se ainda almejamos dar ao coração
a flor de um outro mundo
O ESTADO DAS COISAS
Fernando Abreu
o que se pode esperar de um poema:
que fique de pé e ande sem muletas
mesmo sendo coxo como byron
que não faça ver o pior cego
mesmo sendo um glauco mattoso
que não tenha pena de seus leitores
como dylan thomas
mas que também não seja sádico com eles
como ninguém que eu lembre no momento
que aceite seu lugar no aqui agora
se houver um para ele
e que o tempo faça o resto
se der tempo
o que não se pode esperar de um poema:
lamentações em cima do muro
napalm em embalagem de sorvete
finalizações relâmpago para
comentaristas de UFC
isso até se pode esperar
considerando o “estado geral das coisas”
mas não se deve
ou deveria.
Voos
Franck Santos
Não tentei
Mas sei
Nós, aves, morremos dos voos
que não os demos.
[a serena possibilidade do abismo]
PUNK
Lúcia Santos
fuck it
a vida não é fake book
comercial de margarina
pose e look
mesmo fina
a dita dura da felicidade
só entra com vaselina
A CABAÇA
Luiza Cantanhêde
Sou essa terra de chão batido
Esse sertão da língua de cinza
A fome alada, o Carcará
Sou esse deserto de poeiras
longínquas
Sou água na cabaça, o arame
Farpado, cercando o latifúndio
De sol e estrada
Sou esse fruto no avesso da
Terra plantada.
REMANESCENTE
Neurivan Sousa
como profecia de outro recomeço
ainda resta um galho de oliveira
suspenso
pelos dedos dos céus sem clero
em meio à desolação radioativa
sob um sol sangrando a ira
de palestinos e judeus
pulverizados
um ateu no glade do êxodo
escapa ileso ao apocalipse.
SINGULARIDADES
Paulo Rodrigues
o céu preparava
a chuva
com a violência
de uma mulher
parindo
no temporal.
EGO SUM CORPUS MEO
Ricardo Leão
A Helena Russano Alemany
“Água é o meu próprio corpo,
simplesmente mais denso.
E meu corpo é minha alma,
e o que sinto é o que penso.”
Cecília Meireles
Meu corpo é minha alma
Atrás do espelho da face.
Ou talvez só um fantasma
Das alimárias do charme.
Meu corpo arqueja e fala
Além do riso e do alarde.
Quem sabe ao fim da farra
Com que gozamos de fraque.
Meu corpo soluça e brada
Às vésperas do voo da ave.
Ou à beira de tudo ou nada,
Quando amamos sem classe.
Meu corpo de gozo e alarma
Agarra as fímbrias da tarde.
As mãos ardentes em brasa,
O sexo em chamas e sabres.
Meu corpo de curvas magras
Às vezes é só a metade
Do êxtase que há no magma,
Da volúpia que há na carne.
Meu corpo dança sem farsa
Um flamenco que não cabe
Nas janelas de Alcobaça
Ou nos lábios da verdade.
Meu corpo não veste farda,
Nenhuma roupa de praxe.
Qualquer tecido de gala
Nas rubras noites de Marte.
Meu corpo arde em palavra
Ao longo da eternidade.
Logo abaixo das sandálias
Ouço o silêncio dos vates.
Meu corpo é minha água
Pelos desertos de jaspe.
De sua ânsia mais galaica
Toda nudez é um disfarce.
Meu corpo geme em valsa
Numa sala sem a chave.
Às vezes o amor não basta
Ao desejo que me parte.
AUTORES & PUBLICAÇÕES
I. Adriana Gama de Araújo [São Luís/MA]. Poeta e editora. Autora de Mural de nuvens para dias de chuva [poemas, Penalux, 2018] e TRaNSiTo [poemas, Olho D’água Edições, 2019].
II. Antonio Aílton [Bacabal – MA, 1968]. Poeta e professor. Autor de Cerzir – livro dos 50 (Poesia, Penalux, 2019), Martelo & flor: horizontes da forma e da experiência na poesia brasileira contemporânea (Tese-ensaio, EDUFMA, 2018), Os dias perambulados e outros tOrtos girassóis (Poesia, Fundação de Cultura do Recife, 2008), Compulsão Agridoce (Poesia, Paco Editorial, 2015), Humanologia do Eterno Empenho (Ensaio sobre a poesia de Nauro Machado, FUNC, 2003), As Habitações do Minotauro (Poesia, FUNC-MA, 2001).
III. Bioque Mesito [São Luís/MA]. Poeta. Autor de A inconstante órbita dos extremos (Editora Cone Sul-SP, 2001), A anticópia dos placebos existenciais (Edfunc-MA, 2008), A desordem das coisas naturais(Editora Penalux-SP, 2018) e Odisseia do nada registrado (Editora Penalux-SP, 2020).
IV. Carvalho Junior. Poeta e professor. Autor de Mulheres de Carvalho (Café & Lápis, 2011), A rua do sol e da lua (Scortecci, 2013), Dança dos dísticos (poemas, Patuá, 2014), No alto da ladeira de pedra (poemas, Patuá, 2017) e O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia (poemas, Patuá, 2019).
V. Celso Borges. Poeta, jornalista e letrista. Autor de, entre outros, NRA (1996), XXI (2000), Música (2006), Belle Époque (2010), Rimbaudemônio (Pitomba, 2014), O futuro tem o coração antigo (2013), A árvore envenenada (2018) e Carimbo Carinho (2019).
VI. Dyl Pires [São Luís/MA, 1970]. Poeta e ator. Autor de Queria falar do deserto dos dias apressados (Chiado books, 2019), Éguas (Pitomba, 2017), O Torcedor (Pitomba, 2014), O Perdedor de Tempo (Pitomba, 2012) e O Círculo das Pálpebras (Func, 1999).
VII. Fernando Abreu [São Luís/MA]. Poeta e letrista. Autor de Contra todo alegado endurecimento do coração (7 Letras, 2018), Manual de Pintura Rupestre (7 Letras, 2015), Aliado Involuntário (Exodus, 2011), O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003) e Relatos do Escambau (Exodus, 1998).
VIII. Franck Santos [São Luís/MA]. Poeta e ficcionista. Autor de Fogo Fátuo [prosa poética, Aquarela, 2011], Quando o azul não desbotava (prosa poética, Penalux, 2014), Poemas para dias de chuva [poesia, Patuá, 2015], Do lado de cá do Atlântico [romance, Penalux, 2017] e Os mapas sinalizam ilhas submersas [contos, Penalux, 2018].
IX. Lúcia Santos [Arari/MA, 1964]. Poeta, atriz e letrista. Autora de Quase Azul Quanto Blue (1992), Batom Vermelho (1997), Uma Gueixa Para Bashô (2006) e Nu Frontal com Tarja (2016).
X.Luiza Cantanhêde [Santa Inês-MA]. Escritora/poeta. Autora de Palafitas (poemas, Penalux, 2016), Amanhã, serei uma flor insana (poemas, Penalux, 2018) e Pequeno ensaio amoroso (poemas, Penalux, 2019).
XI. Neurivan Sousa [Magalhães de Almeida-MA]. Poeta e professor. Autor de Lume (2015), Palavras sonâmbulas (2016), Minha estampa é da cor do tempo (2018) e da trilogia infantojuvenil O pequeno poeta.
XII. Paulo Rodrigues [Caxias/Santa Inês/MA]. Poeta e jornalista. Autor de O Abrigo de Orfeu (poemas, Penalux, 2017), Escombros de Ninguém (poemas, Penalux, 2018) e Uma Interpretação para São Gregório (poemas, Penalux, 2019).
XIII. Ricardo Leão [São Luís/MA]. Poeta, ficcionista, ensaísta e crítico literário. Autor de Simetria do parto (2000, poesia, Editorial Cone Sul), Tradição e ruptura: a lírica moderna de Nauro Machado (2002, ensaio, SECMA), Primeira lição de física (2009, poesia, SECMA), Os dentes alvos de Radamés (2009, 1ª. edição, SECMA; 2016, 2ª. edição, Benfazeja), No meio da tarde lenta (2012, poesia, Paco Editorial) e Os atenienses e a invenção do cânone nacional (2011, ensaio, 1ª. edição, Ética; 2013, 2ª. edição, Instituto Geia), A plumagem do silêncio (2015, poesia, Nobres Letras), Minimália ou O Jardim das Delícias (2017, poesia, Penalux), A episteme do efêmero (2020, poesia, Patuá).
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