POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2
ARS POETICA INCONCLUSA
Por dentro
as mãos libertam o lixo
e a alma que tem fome de isqueiros
e mais não sei o quê
não sei da sobra das espinhas
e dos membros morrendo
sobre a página carbonizada
: as sílabas queimando
e tu
costas voltadas para o sol
sem rosto
escondendo o céu aberto sobre
a lâmpada – a mesma que cobre
a pele perfurada.
SOPRO INOCENTE
Há uma espécie de renascimento estranho
que começa do lado certo do nome.
O mesmo é dizer breve
como um sopro a descer
a solidão
e a povoá-la de gente.
Sente-se continuamente
e pode rebentar
a qualquer momento
nada a fazer senão
deixar os líquenes escorrer
pele abaixo
enquanto o corpo aumenta
as asas
o que pode acontecer
quando as ruas desertas
já não tiverem nada para dizer
e as árvores
suspenderem o voo até
à última nota.
BESOURO DE TRAZER POR CASA
Porque não sou besouro
a trazer no estojo a asa
deito fora as membranas
num gesto lépido de guardar
o esqueleto rígido.
Ficam as antenas
espécie mandibular de bico
conhecido também por rosto
à distância certa entre a cabeça
e o abdómen, ampliando os graus:
soube da estrutura receptora
variar mediante o tipo sanguíneo
diz-me
porque ao sistema respiratório,
de índole lisa e circular, convém
provocar o nervoso, que lhe é par,
sem estarem fundidos.
Não lhe dei resposta
e sem desprezar o argumento
troquei o bicho pelo poema
hábil a mostrar a luz polarizada.
A IGNORÂNCIA É UMA QUESTÃO DE CORDAS
Não o sabia
no entanto sabê-lo seria
inverter as cordas do piano
e a sua suave melodia
que tem muito de concreta se
bem lembro a lição dos quatro
minutos e trinta e três segundos.
Agora
só o som das cadeiras
ajeitando o corpo a favor
e os pulmões cheios de ar
não me incomoda isso
o silêncio sem margens
talvez
o ritmo seja outro
uma outra lucidez
possivelmente sonora
e os sentidos subam
um pouco mais
até o martelo beliscar
a garganta
verticalizando-a.
PALÍNDROMO LENTO
Governa-me a experiência simples
esculpida lentamente pelo grito.
Arrasa
não saber o que encontrar
na opacidade imediata do sonho –
se o que limita o passo se
o que atravessa a mentira
e os casos supridos do real.
Ando assim
alma nua e revelada
que das coisas se destaca
seja por dentro inventada
e por fora um nome
que não sei dizer
– o mesmo nome a sós.
Mas não espero do desejo
o osso
sem rasar a manhã e o corpo
oco.
ROUBO QUALIFICADO DE LISLE A DEBUSSY
Como se um detalhe desaparecesse
ao longe e o roubasse
como quando era criança
ao ver uma vitrina de gomas
ou quando subia aos telhados
com um segredo fechado nas mãos
feito de açúcar e pão.
Ia sempre pela manhã
defendendo o aspecto sagrado
da desobediência e a sua legítima alegria
– durante a subida furtiva
o vento e o antegozo passavam
desmedidos ora fazendo avançar
ora desautorizando o corpo.
Ninguém daquela altura
o céu cada vez mais perto
escaninho
ninguém sabia da liberdade simples
a transpor a terra
que não era deste mundo
ainda.
Ainda os tectos altos e o cheiro doce
excedendo-os como se
a rapariga dos cabelos de linho.
BOCCA DEL LUPO
Tão cedo não é possível um corpo,
uma cidade, um infinito mutilado,
um pouco mais baixo,
a carne.
Tudo isto já sabes, se preferes
a simplicidade e a solidão,
sem acidular as mãos.
E se a mão
transparente e lúcida,
cada vez mais lúcida,
a mesma que colhe uma flor
e castiga o verso,
a que excede o corpo a leste,
aumentasse o abismo a metade,
disputando-o? Talvez
sem saída o faro das coisas e o cair
da manhã.
A luz assim a passar, com o corpo desatento,
não atormenta e é como se tivesse acontecido.
UM MENOS ANTES DE ALGUMA COISA
Julgava que te tinha dito tudo
e agora as janelas
são o único espaço aberto
em que se pode respirar sem medo.
O mês de Abril chega assim
feito vidro
de tanta respiração lustrada
por detrás da vida que ninguém
sabe contar porque
nascemos num outro lugar
em que as coisas eram simples
e ninguém supunha um menos
antes de alguma coisa
assim tão subitamente
e o mar aberto em vau
sem ter pés
e um pouco de eternidade
aquela que leva o corpo à frente
sem duvidar da tormenta.
Eu sei
eu sei que o sono diz que é mentira
e qualquer manhã diz haver resposta
apesar disso.
UM GESTO SEM COISA NENHUMA LÁ DENTRO
Um gesto apenas
sobre o colo
um braço esquecido
sem pressa de cingir
coisa nenhuma
só ele e os nomes de deus
a lume
para que as almas
fiquem maiores deste lado
cada vez maior a noite
excedendo o seu peso
sem suspeitar do verbo
a repousar na atmosfera
inventada dos teus ombros
inadvertidamente.
Sofia A. Carvalho é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa e bolseira da FCT, com um projeto sobre a obra e o pensamento de Teixeira de Pascoaes. Tem uma paixão pelo teatro que a levou a sair do lugar de espectadora e a frequentar o Curso de Formação de Atores. Escreve poemas, textos, ensaios e dança: coisas que gosta de fazer, tanto quanto de ler.
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