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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

Sobre a poesia de Abreu Paxe - Claudio Daniel

Atualizado: 9 de jan. de 2022



Abreu Paxe, poeta nascido na província de Uíge, no norte de Angola, em 1969, é uma das vozes mais singulares da poesia africana de língua portuguesa da atualidade. Viveu, em sua infância e juventude, no período final da luta anticolonialista, seguida pela guerra civil e o esforço de reconstrução nacional. Residindo em Luanda desde a década de 1980, Abreu Paxe começou a ler poetas como Antonio Jacinto, Viriato Cruz, Agostinho Neto e sobretudo João Maimona, Davi Mestre, Arlindo Barbeitos e Ruy Duarte de Carvalho. Esta é a sua formação literária básica, à qual se somou, depois, a leitura de poetas portugueses e brasileiros contemporâneos. Abreu Paxe conta que, ao contrário de outros poetas de sua geração, não participou das Brigadas Jovens de Literatura.

Seu trabalho poético começou em 1994, com a publicação de quatro poemas na página cultural do Jornal de Angola. Posteriormente, já em 2003, publicou o livro A chave no repouso da porta, cuja linguagem não se parece com nenhuma outra; tem uma dicção própria, originalíssima, conforme veremos hoje em nossa breve conversa. A Chave no Repouso da Porta é um livro que nos encanta pelo seu método de composição e capacidade imaginativa. O artesanato consistente com as palavras segue por uma linha distinta do discurso lírico consolidado; o autor busca outras veredas, outras possibilidades de construção poética, atento à estrutura e à semântica, ou seja, à materialidade verbal, não raro rompendo com a sintaxe, seja pelo uso da parataxe, seja pela supressão da pontuação e pelo esvaziamento do sentido das palavras, que funcionam mais como células sonoras e cromos imagéticos do que como simples portadores de mensagens referenciais.

O caráter mutante, ou aliás mutável de sua poesia está em conexão com a própria personalidade do autor, que se descreve como “um ser confuso, incompleto, sempre pronto a ser forjado, formado e transformado”, conforme declarou em entrevista para a revista Zunái. Se, por um lado, identificamos em sua poesia um exercício poético consciente, uma operação racional, à maneira de João Cabral de Melo Neto, inclusive pela ênfase nos substantivos e na visão do poema como um objeto de linguagem, por outro lado temos uma deliberada imprecisão de sentido, à maneira de Herberto Helder; a construção é precisa, mas o sentido é impreciso e altamente sugestivo, quase hipnótico, fazendo-nos recordar da frase de Mallarmé sobre «o poder encantatório das palavras». Essas duas considerações, a princípio, parecem opostas: como conciliar o racionalismo da forma com a aparente alucinação de imagens e sonoridades, voltadas à nossa fruição sensorial? O aparente paradoxo encontra sua síntese na própria poesia, que em seus momentos de invenção e epifania é capaz de conciliar o Eros e o Logos, a sedução da forma e a forma da sedução. Na poesia simbolista vamos encontrar numerosos exemplos de criação rigorosa de linguagem conciliada com uma enorme riqueza de imaginário, e ainda em autores latino-americanos do século XX como Lezama Lima, Oliverio Girondo ou César Vallejo, para ficarmos em poucos exemplos. Quando a linguagem é levada a extremos, rompendo com o previsível e rotineiro, ela cria outra lógica, outra sintaxe, outro código, como se intentasse a criação de um universo autônomo, «com sua própria fauna e flora», no dizer de outro latino-americano, o chileno Vicente Huidobro.

Conforme diz o próprio Abreu Paxe em sua entrevista para a Zunái: “A poesia está sempre no limite das coisas. No limite do que pode ser dito, do que pode ser escrito, do que pode ser feito, do que pode ser visto e até pensado, sentido e compreendido. Estar no limite, ainda dizia, significa muitas vezes, para o [poeta/leitor], estar para lá do que estamos preparados para aceitar como possível”.


“Penso que a poesia, como ato de criação, para mim não deve de forma objetiva nomear as coisas tal qual como elas acontecem no cosmos, tal como se movem, tal como o cosmos as regula, vistas, à vista desarmada ou macroscopicamente. A poesia deve constituir-se no mundo alternativo, este funcionando como mundo não codificado ou convencionado numa visão globalizante, senão como codificação singular do criador e do leitor. Ao serviço da arte, a poesia deve-se construir com certa erudição, ou seja, a partir do que já existe, do que já foi proposto nos matizes artísticos. A poesia deve convidar-nos a mergulhar no escuro, como dizia Gastão Cruz, não para o iluminar, mas para aprender a conhecê-lo, evocando todos os sentidos. Como se pode ver, para mim a linguagem poética é a criação de uma outra realidade, fundada numa realidade, ou seja, a recriação da realidade observável.”


Nos momentos de maior intensidade lírica do livro, o texto poético se funde à música e à pintura, ele cria significados, cria realidades, em vez de apenas retratar passivamente o mundo das coisas. A linguagem deixa de ser apenas representação nominal, reflexo especular de objetos externos, para ser, ela mesma, o seu sentido. numa estranha matemática de vertigens. Ao mesmo tempo, porém, o poeta volta o seu olhar para as pequenas coisas, que passam quase despercebidas por nosso olhar na vida cotidiana, como acontece com a própria chave no repouso da porta.


Conforme afirma o poeta: “Persigo, neste exercício, a capacidade de recomposição e síntese, transformando meu olhar em unidades de análise, uma qualidade que impregna todas as criações resultantes de um processo interativo entre o homem e os meios eletrônicos em que a metamorfose e o virtual se projetam na mente humana como agentes da própria instabilidade e plasticidade, como agentes da invenção e da percepção, levando a poesia para além dos limites, numa viagem expansiva para o lugar inabitado, originando imagens simultâneas e diversas capazes de modificar os sentidos (ordenados) num elevado grau de fragmentação. Estes fragmentos, estes paradoxos, que vez ou outra nomeio, buscam anular a linearidade, a luminosidade, o detalhe. Mesmo quando experimento as vestimentas narrativas, sinto que só participo alegremente de uma festa que legitima os estímulos que nos cercam, nas atualizações materiais onde é preciso abrir os olhos e a mente de um modo diferente”.


Agora, se me perguntarem o que é exatamente A Chave no Repouso da Porta, eu responderia que é um conjunto singular de 42 peças que dissolvem as fronteiras entre prosa e poesia (recordando o conceito de texto de Max Bense), abdicando também de uma sintaxe puramente gramatical, que cede vez a uma sintaxe musical e analógica, em que as palavras são aglutinadas conforme a intenção melódica e rítmica do poeta, desprezando a ocorrência regular de maiúsculas ou pontuação. As palavras e linhas são tratadas como acordes numa peça de concerto, ou como manchas coloridas numa tela, obedecendo a um princípio construtivo exigido pela própria obra, e não por normas exteriores a ela. Há uma ênfase nos substantivos (novamente, a materialidade), que constroem imagens concisas, fragmentárias, quase cubistas; há uma velocidade na sucessão de quadros ou cenas que faz lembrar um videoclipe, como por exemplo no poema dimensões ossificadas chaves (que já no título apresenta a bizarria da junção de três termos sem nexo aparente entre si):


a chave treme no repouso da porta a janela ronda

pequeno porto tudo dispersa apesar da ruga inglesa

as persianas estradas paredadas em negrito partes

sufocadas voltam em gestos

confusos sem lâmpadas dormia a criança

na inscrição falava umberto saba vivo a um povo

de mortos possesso certamente

mal conhecido destroço no sul da ilha.


Esse fluxo verbal, que nada tem de linear ou previsível, pode ser considerado uma antinarrativa, feita de junções de personagens e cenários num caos ordenado, um pouco à maneira do princípio do ideograma, definido por Ezra Pound como «justaposição de imagens» (derivado de seu estudo da poesia chinesa e japonesa, via os apontamentos lacunares de Fenollosa.) Em outras peças, temos uma fúria semântica próxima ao expressionismo, com sua ênfase em secreções, partes do corpo e na desagregação («as veias sêmen debruçadas minúscula incandescência», «afogava barcos sua mortal cloaca unia velha íris» etc.). O grau de estranhamento é ampliado, para os leitores que não são de origem angolana, pelo uso de palavras nos idiomas quimbundo e kikongo, referências geográficas e mesmo provérbios populares, que nos remetem a um outro universo referencial.


Haveria muito mais o que dizer da poesia de Abreu Paxe, mas, para concluirmos, gostaria de apontar suas afinidades com a poesia da América Latina, em especial com o chamado Neobarroco, que opera experiências similares com a linguagem, promovendo a mescla entre prosa e poesia (como no Mar Paraguayo, do brasileiro Wilson Bueno), a criação de uma sintaxe mais analógica do que gramatical e a fusão de diferentes repertórios culturais e linguísticos, numa deliberada mescla de signos que sintetiza a multiplicidade e o movimento dinâmico não apenas da poesia, mas da vida.





Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais. Diretor adjunto da Casa das Rosas em 2007. Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Foi colunista da revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Letra negra (2010), Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Portão 7 (2019), Cadernos bestiais (2019), Marabô Obatalá (2019) e romance Mojubá (2021), entre outros títulos.

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