Augusto de Campos por José Pelegrini
Na edição de agosto da Zunái, apresentamos quatro entrevistas realizadas por Claudio Daniel com o poeta Augusto de Campos, que em 2020 comemorou 90 anos de idade.
É, portanto, uma pequena celebração do mais jovial e criativo poeta brasileiro da atualidade, que desde o surgimento da Poesia Concreta até hoje nos surpreende com a sua inventividade, coragem e coerência intelectual. As entrevistas foram realizadas em diferentes momentos, entre 1999 e 2015, e registram também as opiniões políticas do poeta, em um dos momentos mais sombrios de nossa história.
“NO FUNDO DE TODA UTOPIA NÃO HÁ SOMENTE
UM SONHO, HÁ TAMBÉM UM PROTESTO..”
Augusto de Campos, em seu apartamento na rua Apinagés, em São Paulo, mostra para mim um objeto enigmático: um conjunto de oito placas de acrílico, intercambiáveis, onde lemos frases e palavras que, combinadas em diferentes sequências, permitem múltiplas leituras. É um poema-objeto do músico e pluriartista norte-americano John Cage, cujo livro De segunda a um ano, traduzido por Rogério Duprat, foi relançado no Brasil. Conversamos sobre a ressonância da obra anárquica de Cage na Poesia Concreta e sobre a atualidade – ou não – do conceito de vanguarda, numa época de acentuado conformismo estético, político e existencial. Para Augusto de Campos – o mais jovem dos poetas brasileiros – a invenção artística é sinônimo de “curiosidade” e de “liberdade”, jogo inteligente e sensível, mais necessário do que nunca. As utopias conduzem, sempre, ao fracasso? Talvez, mas, para o poeta paulistano, “temos direito permanente ao fracasso da utopia”. O universo da internet é uma das trincheiras possíveis para as presentes – e futuras – experiências poéticas, em busca da “beleza difícil”, do signo imprevisto, que “desafina o coro dos contentes”, como queria Sousândrade. O músico austríaco Arnold Schoenberg dizia a seus discípulos: “eu vim aqui para tornar impossível a vocês comporem música”. Maliévitch, com o seu quadrado branco sob fundo branco, tornou impossível aos artistas visuais realizarem a pintura (tal como se entendia o conceito até então. Augusto de Campos, o poeta de “Tudo está dito”, instiga os poetas brasileiros a explorarem os limites da linguagem até a “fala do indizível”. A poesia, talvez, seja sempre isso: não a resposta de Édipo, mas a eterna busca da pergunta da Esfinge.
CD: John Cage (1912-1992) é um dos artistas da vanguarda internacional com quem você manteve diálogo. No livro Música de invenção há um capítulo dedicado a Cage, que você considera um dos nomes centrais da música experimental, ao lado de Webern e Varèse. Quando vocês se conheceram? Como foi a tua convivência com ele?
AC: Meu primeiro contato com a música de Cage foi em 1952, quando adquiri um LP com as Sonatas e Interlúdios para piano preparado. Influenciou desde logo a Poesia Concreta, enquanto música espacial, na qual o silêncio fazia parte da estrutura. Meu conhecimento pessoal com ele se deu por carta quando o contatei, no princípio dos anos 70, a propósito da tradução de A year from monday (De segunda a um ano). Ele me recebeu em seu apartamento em Nova York para um jantar, por essa época. Em 1985, quando ele veio a São Paulo, a convite da Bienal, estive várias vezes com ele. Era uma pessoa extremamente bem-humorada. Um revolucionário cordial e generoso.
CD: O livro De segunda a um ano, de John Cage, traduzido por Rogério Duprat e revisto por você, acaba de ser relançado, pela editora Cobogó. O livro reúne poemas, conferências, artigos teóricos e outros textos, inclassificáveis. Qual é, em sua opinião, a atualidade do pensamento de Cage para a poesia e a arte hoje?
AC: Mais atual do que nunca. É tão importante para a poesia como para a música. Os poetas das novas gerações deviam lê-lo. Não para mimetizá-lo (equívoco de muitos poetas americanos das últimas décadas), mas para aprenderem liberdade e saírem da casca. Toda a poesia que interessa, hoje, é, de um modo ou de outro, influenciada por ele.
CD: Há um poema-objeto de John Cage em tua sala de visitas – um aspecto menos conhecido da obra do artista norte-americano. Qual é a história desse poema? Cage criou outros poemas-objeto?
AC: Sim, a obra de Cage, que já chamei de “profeta e guerrilheiro da arte interdisciplinar” — e, poderia acrescentar, “indisciplinar” — tem uma dimensão muito significativa nas artes visuais. Não só a composição gráfica dos seus livros, mas as partituras e as gravuras que ele fez. A obra a que você se refere, de tiragem restrita, e que ganhei dele também nos anos 70, se chama Not wanting to say anything about Marcel Duchamp [Não querendo dizer nada sobre Marcel Duchamp]. Foi produzida pelo artista plástico Calvin Sumsion, em 1969. São oito placas de acrílico transparente onde se inscrevem palavras retiradas de várias famílias de “letra-set”, peças montadas em sequência e intercambiáveis, as duas placas mais escuras somente entre si. O número de vocábulos, sua fragmentação e posição na folha, sua cor, imagens, etc. foram decididos pelo I Ching. O efeito é 3-D, pré-holográfico. Os vocábulos ou quase-vocábulos parecem dançar à nossa vista, sugerindo imprevistas combinações. Eu, pessoalmente, não sei trabalhar com tanta indeterminação. Mas esse poema-objeto me ajudou muito. Olho para ele como para uma esfinge. Não recomendo imitações. O poema que fiz mais próximo de uma concepção indeterminada é talvez acaso, de 1963, no qual uso todos os anagramas dessa palavra. Obviamente influenciado por Mallarmé e por Cage.
CD: Você dialoga desde a década de 1950 com a música erudita de vanguarda e também com a música popular. Recentemente, Cid Campos apresentou o show poético-musical Crianças Crionças no Centro Cultural São Paulo, com canções realizadas a partir de poemas para crianças traduzidos por você. Comente um pouco a criação desse trabalho.
AC: Cid é dos poucos compositores que, a partir da música popular, se interessaram por converter poemas, e não apenas letras, em música. É um projeto mais raro, gratificante embora pouco gratificado. Porque é difícil, e se elabora numa região intersticial entre o erudito e o popular, entrepúblicos, portanto. O show e o CD Crianças Crionças mantêm, à luz dos grandes Lewis Carroll e Edward Lear, a linha de “poemúsica” experimental que ele vem trilhando desde Poesia é risco, No lago do olho, e Fala da palavra. Crianças Crionças é diferente dos anteriores porque tem em vista o público infantil, mas investe radicalmente no nonsense. É para crianças e adultos... É bom que haja esse tipo de experiência mais aventurosa, quando há uma grande tendência entre nós, ao contrário, de populistizar a música popular. Banalizá-la ainda mais, infantilizá-la, mesmo quando para adultos, em música e texto. A música popular voltou a ser quanto mais popular, mais aplaudida, a letra de música, mais letra que poesia e a música erudita contemporânea continuou a ser ignorada. Acho essa compartimentalização uma pena. Um atraso. Estamos longe do “produssumo” idealizado por Pignatari nos fins de 1960. Encontrei os maiores obstáculos para divulgar um concerto histórico de 1980 do Pierrot lunar de Schoenberg — obra máxima da modernidade, que fez cem anos em 2012 — interpretado em português. E só consegui fazê-lo na internet. Não só os eruditos mas os populares aprenderiam muito com o conhecimento dessa obra. John Cage conta que tremeu ao ouvi-la “cantofalada” por Maria Freund numa audição de 1949…
CD: O livro Coisas e Anjos de Rilke, relançado no final de 2013, traz nada menos que 130 poemas do autor tcheco de expressão alemã, que você vem traduzindo desde 1994. O que te fascina em um autor que, aparentemente, não manifestou a mesma radicalidade de outros autores que você traduziu, como Ezra Pound ou James Joyce? Um outro autor de língua alemã que vem obtendo crescente repercussão internacional é o romeno Paul Celan. Qual é a sua opinião sobre a poesia dele?
AC: Fascina-me, sobretudo, a “palavra-coisa” dos Novos poemas, a poesia objetal que Rilke produziu entre 1908-1909, quando era secretário de Rodin e estava entusiasmado com Cézanne. Dessa perspectiva aprendi a apreciar o pré e o pós-Rilke do Livro das imagens e dos últimos sonetos. Pound, na época desses poemas-coisa pré-cubistas, publicava os poemas vitorianos de A lume spento... Intriga-me a mediunidade plástica dos Sonetos a Orfeu, que muitas vezes não entendo direito, e traduzo, para tentar entender. Descobri, inclusive, um poema “concreto” circunstancial, mas muito bonito, de Rilke, inscrito num ovo de páscoa… Quanto a Celan, prefiro a audiopoesia atomizante do romeno Ghérasim Luca, que, como ele, se suicidou no rio Sena.
CD: Você criticou, em diversas ocasiões, o conceito de pós-modernidade, identificando-o com uma reação conformista às experiências estéticas das vanguardas do século passado. Haroldo de Campos, no livro O arco-íris branco, propõe um novo conceito, o de pós-utópico, que desloca o centro de interesses do futuro para o presente de criação, sem recusar o diálogo criativo com a tradição, considerado necessário para a própria invenção formal. A seu ver, o momento cultural que nós vivemos é propício – ou não – ao surgimento de novas vanguardas?
AC: Meu conceito de vanguarda (palavra combatida pelos conservadores, mas imbatível, porque todo mundo sabe quem é, quem não é de “vanguarda”) não se limita a movimentos — ideia que me parece presidir a concepção do “pós-utópico” de Haroldo. Penso, como Cage, que a vanguarda — que prefiro chamar de poesia de “invenção”, a partir da classificação de Pound, para abarcar tanto o passado (como o trovador provençal Arnaut Daniel) quanto o presente — sempre existirá e não precisa ser um fato coletivo. É sinônimo de “curiosidade” e de “liberdade”. Não apenas expressar, mas mudar. Sempre haverá artistas que não se satisfaçam com a linguagem corrente, e queiram explorar novos caminhos, e não apenas falar da sua vida. No que diz respeito às “utopias“, apesar de me considerar pessimista, adoto a concepção de Oswald, que associo às ideias de Cage sobre vanguarda. “No fundo de toda utopia não há somente um sonho, há também um protesto”. Temos direito permanente ao fracasso da utopia. O universo digital e a internet são utopias que — para o bem ou para o mal — deram certo sob muitos aspectos. Mudaram a forma de comunicação mundial em duas décadas. A linguagem mudou, está mudando, e isso tem reflexos na própria linguagem da poesia que se faz hoje e que não pode ser a mesma do passado. Walter Benjamin, em 1926, predizia: “No futuro, antes que alguém abra um livro, desabará sobre seus olhos um turbilhão de letras móveis, coloridas, conflitantes. Nuvens de letras-gafanhotos. As chances do mundo do livro serão reduzidas a um mínimo. E os poetas terão que se tornar especialistas em grafias e diagramas para enfrentar o desafio das novas tecnologias”. É bom pensar nisso. Senão a poesia do “agora”, que o Haroldo postulava, pode virar poesia do “outrora”…
CD: A relação entre poesia e novas tecnologias tem sido muito debatida após a revolução da informática (geralmente, a discussão se dá a respeito do hipotético fim do livro como suporte), mas pouquíssimos poetas têm trabalhado com os recursos de multimídia e interatividade – você e Arnaldo Antunes, por exemplo. Por que os poetas resistem ao diálogo com os meios eletrônicos?
AC: Acomodação e transição. Poucos se deram ao trabalho de estudar os manuais de software para poderem utilizar-se das ferramentas da tecnologia. Usa-se o computador apenas para redação de textos. A poesia repoetizou-se e re-romantizou-se. Voltou-se, entre nós, à poesia confessional, meio diário, meio prosa. Essas movimentações pendulares da poesia são naturais e dialéticas, e temos que compreendê-las, ainda mais numa época de transição, como a nossa. Depois de muito arrocho, vêm o desbunde e o libera-geral. Só que, em poesia, como dizia Ezra Pound, a técnica é o teste da sinceridade. E andar para trás, não resolve. A saturação é grande. A da Poesia Concreta inclusive. Difícil? Beauty is difficult. Schoenberg dizia aos seus alunos, na primeira aula: eu vim aqui para tornar impossível a vocês comporem música. Webern, Berg e Cage eram seus alunos e responderam à altura. Alguns jovens de 20 anos, que nasceram com a internet, sem frequentar os internatos literários convencionais, já estão dando respostas surpreendentes, tanto em poesia quanto na consciência das linguagens poéticas do nosso tempo.
CD: Quais poetas você tem lido – ou relido – ultimamente?
AC: Dois livros me impressionaram muito. Canti postumi de Ezra Pound, edição bilingue ítalo-inglesa de fragmentos e esboços dos primeiros aos últimos Cantos poundianos, seleção organizada por Massimo Bacigalupo. E Emily Dickinson - The gorgeousnothings”, os “poemas-envelope” manuscritos da grande poeta americana, recém-editados por Jen Bervin and Marta Werner, ao mesmo tempo que o seu arquivo de manuscritos foi disponibilizado na internet. Entusiasmado, voltei a traduzir a grande poeta. Ouvir Maiakóvski, Lilia Brik, Khrutchônikh, Iessiênin, Akhmátova, Mandelstam, Jakobson e outros dizendo poemas no livro-disco Baku: symphony of sirens (documentos originais e reconstruções de obras das vanguardas russas), foi também uma “viagem” emocionante.
CD: A poesia brasileira mais recente tem apresentado novos poetas de qualidade?
AC: Sem dúvida. Pound dizia que os mais velhos não devem opinar sobre os mais novos. Estou de acordo, e não gosto de julgar os meus colegas. Digamos que, depois da Poesia Concreta, ressurgiu um mainstream troante e retroativo de poesia modernosa, egocentrada e discursiva. Mas percebo também uma saudável inquietação em alguns novos poetas experimentais, off poetry, que atuam em revistas à-margem-da-margem e na internet. Procuro acompanhar, o quanto posso, e colaborar, enquanto posso. Como dizia Borges, atribuindo erroneamente a Boileau uma frase de Voltaire: “todos os gêneros são bons, menos os entediantes”. A Poesia Concreta irritou e ainda irrita muita gente, mas chata nunca foi. Poesia não é tão fácil como parece. “Curiosidade, curiosidade…”.
(Entrevista publicada em fevereiro de 2015 na revista CULT)
AUGUSTO DE CAMPOS: “SEM MÉDIA, SEM MÍDIA, SEM MEDO”
Augusto de Campos – o mais jovem dos poetas brasileiros, pela curiosidade em conhecer o que há de novo na poesia, na vida, no mundo fala a respeito de seu mais recente livro de poemas, Outro, publicado pela editora Perspectiva, que em 2015 comemorou 50 anos de existência. Como não poderia deixar de ser, um dos temas centrais da conversa é a relação entre a poesia e a tecnologia – há quase vinte anos, o autor pesquisa as possibilidades de criação poética com os novos recursos eletrônicos, que permitem realizar plenamente o sonho da Poesia Concreta de unir palavra, imagem, som e movimento. Ganhador do Prêmio Pablo Neruda, concedido pelo Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile, e reconhecido no cenário internacional, sendo estudado em universidades europeias e norte-americanas, Augusto de Campos ainda é pouco compreendido por uma parcela de nossa crítica literária, incapaz de assimilar a radicalidade da informação estética nova, que desafia modelos teóricos mumificados ou em adiantado estado de decomposição. Sensível aos acontecimentos políticos do país, o poeta, mais uma vez, “desafina o coro dos contentes”, repudiando o discurso de ódio e o clima de golpe instaurado no país pela grande imprensa. “Sem média, sem mídia, sem medo” é a palavra-de-ordem do poeta, na contramão dos que preferem a crise e o caos.
CD: Você publicou, recentemente, uma nova coletânea de poemas, Outro, que reúne composições visuais elaboradas com recursos das mídias eletrônicas. Como foi o processo de criação do livro? Você planeja previamente os temas e recursos estéticos que serão utilizados? Ou o livro é resultado do trabalho de criação de cada poema?
AC: O livro foi planejado a partir do que produzi ao longo de doze anos, desde a última reunião de poemas inéditos. Com Despoesia (1994) e Não (2003), forma uma trilogia. Todos foram inteiramente produzidos em meu computador e assinalam o meu ingresso, sem volta, no mundo da linguagem digital.
CD: O título do livro faz referência a um termo musical recorrente nos textos que acompanham discos norte-americanos, com o sentido de “bônus”, ou “extra”. Qual é o paralelo que você faz entre esse termo, pleno de significados, e o seu trabalho poético?
AC: Eu desconhecia a expressão “outro”, em inglês. Depois, me dei conta que era o contrário de “intro” (introdução) e achei interessante. Há uma certa autoironia no emprego que faço dela. De fato, o livro é um “bônus”, um extra, ou “pós”, provavelmente o meu último livro de poemas. Ao mesmo tempo, sempre impliquei com o palavrão “outrossim” e o “outro” inglês me lembrou o “outronão” que criei há tempos e que dá título ao prefácio. Tem também a ver com a discussão literária em torno da apropriação poética, que se vem acentuando nos Estados Unidos sob a designação de poesia “conceitual”, ou “unoriginal language”. Entre nós, há precedentes nos textos de Oswald, em Pau Brasil, onde ele apresenta, como poemas, trechos da carta de Pero Vaz Caminha e dos nossos primeiros cronistas. Venho praticando esse tipo de leitura crítico-poética, pelo menos desde os anos dos anos 70, com os “profilogramas” e as “intraduções”, agora acrescidos das “outraduções”, em que apenas reorganizo graficamente certos textos alheios.
CD: Walter Benjamin, em texto publicado em 1926, imaginava que, no futuro, a escrita e o próprio objeto livro seriam radicalmente transformados. Estamos próximos da realização dessa profecia, pelo diálogo da poesia com as artes visuais e a tecnologia?
AC: Sem dúvida. Não direi que é a “mão única”, porque a poesia tem muitos caminhos e não pode nem deve congelar-se num só. O único caminho que a poesia rejeita é o do meio. Mas Benjamin, inspirado no poema Un Coup de Dés de Mallarmé, anteviu a crescente incidência da linguagem icônica sobre a verbal. No universo digital, as imagens se interpenetram cada vez mais com as palavras. O textograma se instagrama. E em vez de se deixar atropelar pelas imagens, é mais interessante trazê-las para o mundo da poesia, que, segundo Pound, está mais próxima da pintura e da música do que da prosa. A tecnologia nos fornece as ferramentas para essa inflexão icônica no discurso. É pegar ou largar. A poesia já não poder ser a mesma.
AC: Você cita, com frequência, uma obra de Timothy Leary, Chaos and cyberculture, publicado em 1994. Em sua opinião, quais ideias apresentadas pelo autor norte-americano são pertinentes para a discussão da poesia e da cultura hoje?
AC: As idéias visionárias de Buckminster Fuller, McLuhan, John Cage, assim como as do último Leary, sempre foram desprezadas pelo cânone acadêmico, porque não vieram envelopadas no protocolo universitário, seus “apuds” e notúnculas. Mas eles têm um traço em comum. Vivenciaram a tecnologia antes dos outros. Aqui, Oswald foi o nosso profeta com o seu “bárbaro tecnizado”. Pós-wald, a Poesia Concreta. Nos últimos anos, Timothy trocou o LSD pelo PC, i. é, o computador. Propôs uma difração semântica no conceito da cibernética, palavra derivada do grego “kubernetes”, piloto, de que se originou o verbo “gubernare” em latim. Desligando-a da ideia de governo, associou-a à de navegante. Percebeu a questão da ingovernabilidade do ciberespaço, que ainda prevalece, apesar das macrotentativas “bigbrotherianas” de controle, e deu toques relevantes sobre a revolução digital da linguagem artística. “Haicais eletrônicos.” “Trailers melhores do que filmes.”
CD: Seu livro de estreia, O rei menos o reino, publicado em 1951, com recursos próprios, pela fictícia “Edições Maldoror”, traz ainda uma epígrafe de Lautréamont. Este é um aspecto pouco abordado em sua poesia: como foi o teu contato com a obra desse autor francês, considerado o precursor do Surrealismo, movimento antípoda da Poesia Concreta?
AC: Não estou certo de que o Surrealismo seja inteiramente oposto à Poesia Concreta. A Seção de Estudos Regionais do Departamento Administrativo do Partido Surrealista Brasileiro é que declarou guerra aos “concretistas”… Não faz sentido pregar o surrealismo, quando virou substantivo comum, vivenciado cotidianamente. Os mais perduráveis são os “dessurrealistas”, isto é, os dissidentes, de Artaud a Ghérasim Luca. O problema dos ortodoxos é que eles não enfrentaram o problema estrutural do discurso poético. O Surrealismo deu a sua contribuição. Aumentou o espectro das associações da imagem, mas se ateve às convenções retóricas lógico-discursivas, optou pelas metáforas de significados e não de significantes, e se afastou das matrizes dadaístas inflando-se de “conteúdos” psicologizantes. Foi superado pelos vocabulemas radicais de Joyce, Gertrude Stein e Cummings e pelas estruturas ideogrâmicas de Pound. A ruptura Dadá foi mais consequente e alimentou tanto a antiarte de Duchamp quanto o acaso indeterminado de John Cage, que repaginaram a história das vanguardas, na segunda metade do século passado, como polo dialético das utopias construtivistas. Li os Cantos de Maldoror aos 20 anos, e meu primeiro livro foi muito influenciado pelo “delírio lúcido” da obra de Isidore Ducasse. Este, que inscreveu nos seus Cantos uma grande ode “às matemáticas severas” e proclamou em suas Poésies que “a poesia é a geometria por excelência”, ultrapassa de muito a leitura unilateral bretoniana, que chegou a incluir Mallarmé, mas não se apercebeu da revolução do Lance de Dados e diluiu a ruptura do lance de Dadá.
CD: Como crítico musical, além de artigos publicados sobre a música erudita contemporânea, reunidos no volume Música de invenção, você publicou textos sobre João Gilberto e Caetano Veloso, em Balanço da bossa & outras bossas, e tem parcerias com músicos como Arnaldo Antunes, Cid Campos, Arrigo Barnabé. Você tem acompanhado a música brasileira atual? O que tem chamado a sua atenção na MPB?
AC: Preocupei-me mais com a MPB quando de suas grandes transformações, a Bossa Nova e a Tropicália. Esses movimentos, então muito contestados, hoje são vitoriosos e só algumas múmias carregadas pelas Flips da vida ousam renegá-los. Ainda trabalho com Cid nas experiências da “poemúsica”, para contrastar a banalização das letras de consumo. Com ele planejo um CD com as suas composições para os balés O Inferno de Wall Street e Profetas em Movimento. Volto a dedicar-me à música contemporânea num segundo tomo da Música de Invenção já entregue à editora. Há um enorme vácuo cultural em nosso país com respeito à música erudita moderna, a mais segregada das artes entre nós. São cem anos de silêncio, que podem ser ilustrados pela última coletânea de CDs de música clássica servida em bancas de jornais. Pulou o Pierrô Lunar, de Schoenberg, que é de 1912, e parou na Sagração da Primavera, de Stravinski, que é de 1913. No Brasil nos dão 5% do repertório moderno contra uma infinidade de redundâncias clássico-românticas ou neo-ambas. Musicalmente, vivemos no século XIX.
CD: O Conselho Nacional de Cultura e Artes do Chile concedeu a você, neste ano, o Prêmio Pablo Neruda. O que esta premiação representa para o reconhecimento de sua poesia?
AC: Recebi o prêmio com muita surpresa, porque não tenho relação pessoal alguma com os intelectuais chilenos. Dos vivos, Nicanor Parra, que fará em breve 101 anos, é o poeta com quem tenho mais afinidade. Apesar de ver com muita desconfiança a atribuição de prêmios, tão vulneráveis a interesses grupais ou ao conservadorismo de confrarias acadêmicas, não pude deixar de sensibilizar-me com esse prêmio, dado pela primeira vez a um brasileiro e justificado pelo que o júri chamou de “transversalidade” da minha poesia, o que demonstra, independente do juízo de mérito, conhecimento pleno de meus objetivos poéticos. Aqui, ao longo de mais de 60 anos, só recebi um prêmio pela minha poesia, o da Biblioteca Nacional, pela publicação do livro Não, em 2003. Outros me foram concedidos, sempre por traduções, jamais pela poesia. Recebi a premiação chilena com humildade, mas com bons fluidos, quase como um desagravo ao sobrevivente que sou nos meus 84 anos. Vindo de fora. O que é mais doce.
CD: O Brasil vive hoje uma assustadora onda de discursos e crimes de ódio, que trazem à tona o que há de mais atrasado na sociedade – racismo, misoginia, homofobia, anticomunismo, intolerância religiosa. Em sua opinião, o que está acontecendo no país?
AC: Um passo para trás, instigado por não sei que interesses da grande mídia. A população é induzida por ela a manter-se num clima de permanente desconfiança e descrédito. Enfatizam-se somente os defeitos, jamais as qualidades ou sucessos do governo. Pouca atenção deu a mídia ao fato de que o Brasil conseguiu reduzir a pobreza extrema em 82% entre 2002 e 2013 e saiu do mapa mundial da fome, segundo atestado internacional da FAO.
CD: Como você avalia a situação política brasileira, com a ameaça de impeachment da presidente Dilma? Há riscos para a democracia?
AC: Sim, há riscos. A insensatez da oposição e a sua ânsia delirante pelo poder foram levados ao limite. Não estão interessados nem na democracia nem na melhoria do país. Incapazes de aceitar a derrota nas urnas, querem a cabeça da presidente. É um dos momentos mais deploráveis da política brasileira. Tudo o que a oposição logrou foi associar-se às correntes regressivas de um dos Congressos mais reacionários que o Brasil já teve. Exploram a ignorância da população fazendo da presidente uma espécie de bode expiatório primal, como se ela não fosse vítima e refém de um sistema político que a oposição não faz nenhum esforço para aperfeiçoar. O ódio é grande. Uma jornalista de encomenda, percebendo que a presidente emagrecera ao fazer uma dieta, arreganhou-se: “Vamos ver até quando isso vai durar…” Torcem até contra a sua saúde… Perderam a compostura e a cabeça.
CD: O que podem fazer os poetas e intelectuais do lado de fora do “ovo da serpente”?
AC: Os poetas raramente são ouvidos. Preferem ouvir futebolistas, cantores populares. apresentadores da TV. Mas se conseguirmos ser ouvidos, cabe-nos denunciar as falsidades da maioria dos políticos brasileiros, a sua hipocrisia e a sua desumanidade. Protestar contra o retrocesso do Congresso. Defender a democracia contra a grande “pedalada” política que é o pretenso impedimento da presidente eleita. “Sem média, sem mídia, sem medo.” Golpe nunca mais.
(Entrevista publicada em 2015 no site Portal Vermelho)
“NÃO ME SENTIRIA BEM SE ME CALASSE”,
DIZ AUGUSTO DE CAMPOS
Poeta paulista é incisivo ao se posicionar em defesa da democracia. Alguém que viveu e sobreviveu à ditadura militar sabe bem o quão grave é ferir o processo democrático, como alguns setores da oposição vem tentando fazer ao inflar uma onda golpista contra a presidenta Dilma Rousseff. “Não me sentiria bem se me calasse”, afirma o poeta sobre sua responsabilidade enquanto artista e cidadão de se colocar ao lado dos que defendem a soberania do voto popular.
CD: Você recebeu recentemente a Ordem do Mérito Cultural, em Brasília, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, em evento que contou com a participação de Caetano Veloso. Isto significa um reconhecimento da Poesia Concreta, por tanto tempo incompreendida? Em sua opinião, o que explica o prolongado conservadorismo em nosso meio cultural, tão pouco generoso com novas propostas estéticas?
AC: De fato, como a cobertura da grande mídia foi minguada, a maioria das pessoas não tem ideia do que foi esse evento, no qual, além de receber a Grã-Cruz, fui o homenageado da cerimônia. A Bia Lessa, que a organizou, transformou-a numa defesa e ilustração da inventividade, referida à criação de Brasília da perspectiva da inteligência brasileira, como foi vista por Max Bense. Elegeu a poesia concreta e Oswald de Andrade como temas dominantes, num amplo panorama de nossa cultura. Dos parangolés de Hélio Oiticica à arte dos indígenas, do baião de Humberto Teixeira à poesia-música de Arnaldo Antunes, ambos agraciados, o último também participante da narração do espetáculo. Pode-se ter uma ideia mais precisa da magnitude da cerimônia no endereço eletrônico. [Assista ao vídeo aqui]
Um espetáculo “verbivocovisual” desenvolvido em grandes painéis videográficos, sincronizados com música ao vivo , que teve a participação especial de Cid Campos e de Caetano Veloso. Este não aparece no vídeo por restrições contratuais de sua produção, mas registrou a sua presença numa entrevista significativa. [Assista ao vídeo aqui]
A apresentação teve momentos emocionantes dedicados a outras modalidades de arte, como o da entrega da Grã-Cruz às Ceguinhas da Paraíba com a sua cantoria dura e pura, e os de homenagens às comunidades indígenas. E como o da surpreendente execução do hino nacional em guitarra, baixo elétrico, bateria e percussão pelo quarteto dirigido por Dany Roland, com dissonâncias que fizeram lembrar o hino americano interpretado por Jimi Hendrix. Woodstock no Planalto. Eu, de certa forma arrisquei-me a desafinar o tom da festa, que era toda alegria e exuberância, introduzindo a pauta política em meu breve discurso. Nada me foi pedido, mas eu achei que tinha que expressar a minha opinião, mais de uma vez manifestada, de repulsa às desatinadas tentativas de derrubar a presidente eleita. São raras as oportunidades que os poetas têm de falar, mas, na verdade, eu, que não gosto de homenagens, a aceitei, desta feita, acima de tudo para dar o meu recado contra os que já chamei de “impeachmaníacos”.
Na curta entrevista que dei antes do evento, no saguão do Planalto, fui ainda mais incisivo ao pôr em relevo o impatriotismo dos que pretendem ganhar no tapetão o que perderam na eleição. [Leia a entrevista citada aqui]
Quanto à demora na assimilação das propostas da poesia concreta, é um fato que aconteceu com todas as vanguardas — futurismo, dadaísmo, surrealismo — e com o nosso modernismo. Trata-se de um fenômeno corriqueiro de comunicação: o público tende a só aceitar como arte aquilo que já está sacramentado pelos códigos convencionais. Tudo que é novo lhe parece estranhável e até ofensivo. Hoje, porém, passado meio século, a poesia concreta é ensinada até nas escolas. Não há como apagá-la da história.
CD: Na década de 1960, em plena ditadura militar, você e o seu irmão, Haroldo, estudaram o idioma russo com o professor Boris Schnaiderman, na Universidade de São Paulo, com o objetivo de traduzir autores de vanguarda como Maiakóvski e Khlébnikov, o que se concretizou com a antologia Poesia Russa Moderna. Como o livro foi recebido na época? O que ele representa em seu percurso poético? AC: O comunismo da época era marcado pelo stalinismo, que institucionalizara como prática obrigatória o “realismo socialista”, e perseguia os artistas modernos como autores de “arte decadente”, da mesma forma que os nazistas os perseguiam como protagonistas de “arte degenerada”. Mas o marxismo não-ortodoxo, simpático às vanguardas, como o de Gramsci, além de uma geral orientação de cunho socialista, orientavam nossa postura como cidadãos, e Maiakósvki e os artistas da vanguarda russa eram considerados fundamentais por nós. Fomos estudar o difícil idioma, no início dos anos 60, para tentar traduzir o poeta, e logo percebemos que as versões que se faziam de sua obra, derivadas de edições em língua castelhana, falseavam a qualidade de sua poesia, que é virtuosística e extraordinariamente avançada para a sua época.
No entretempo, sobreveio o golpe militar, e nós incrementamos nossas traduções como uma forma de protesto, primeiro com a publicação de um volume dos poemas de Maiakóvski, que saiu em 1967, pela editora Tempo Brasileiro, com traduções minhas e de Haroldo, e o suporte linguístico de Boris Schnaiderman. Procurei, propositadamente, traduzir alguns dos poemas políticos mais radicais do poeta, como Black and White, cujo tema era o do negro cubano humilhado pelo “rei dos charutos”, Henry Clay (com um olho na revolução cubana, que admirávamos); Hino ao Juiz, que terminava provocativamente: “Os juízes cassam os pássaros, a dança. / A mim e a vocês e ao Peru” (introduzi o verbo “cassar” como referência às cassações, terminologia com a qual se começava a denominar as punições políticas dos atos institucionais); e, por fim com o dístico revolucionário de Maiakóvski, que aqui vai em transcrição fonética, seguido da tradução:
“Iech ananáci, riábtchicov jui. Dienh tvoi posliédnii, burjui.”
Come ananás, mastiga perdiz, Teu dia está prestes, burguês. Eu não era adepto de Luís Carlos Prestes, que, para usar de uma expressão dele mesmo a propósito de um general seu amigo, eu considerava “um patriota equivocado”, mas me vali do “equivocábulo” com o seu nome como provocação. Em 1968, saiu a nossa antologia Poesia Russa Moderna, pela Civilização Brasileira, cujo editor, Ênio Silveira, era alvo das perseguições dos militares. Foi um momento em que achamos imprescindível manifestar a nossa indignação com o retrocesso provocado pelo golpe. Hoje, ambos os livros continuam circulando com a rubrica da Editora Perspectiva e, felizmente, estão entre os mais procurados pelos leitores.
CD: A Poesia Concreta incorporou em seu plano-piloto a conhecida palavra-de-ordem de Maiakovski: "sem forma revolucionária não existe arte revolucionária". Coerentes com esse princípio, os poetas concretos, em sua fase participante, criaram poemas como Beba Coca-Cola e Mallarmé vietcong, de Décio Pignatari, Servidão de passagem, de Haroldo de Campos, Greve e Luxo lixo, de sua autoria. O diálogo crítico com a realidade social, com o momento histórico, encontra-se em quase todos os seus livros, inclusive o mais recente, Outro, publicado neste ano pela editora Perspectiva. Comente esse aspecto de seu trabalho.
AC: Considero a poesia política a mais difícil de se fazer. Décio foi um precursor com o seu Beba Coca-Cola, que é de 1957 !!! E foi o mesmo Décio que anunciou, no Congresso de Crítica Literária de Assis, em 1962, o que chamou de “pulo da onça” — o salto participante da poesia concreta. Na comunicação que apresentou, então, e que depois foi publicada no primeiro número da revista Invenção, Situação Atual da Poesia No Brasil, ele alertava para os riscos desse empreendimento. Quanto mais político, menos poético. Mas decidimos “pisar a garganta do nosso canto“, como Maiakovski, e tentamos seguir o seu lema, que na época era totalmente desconhecido entre nós – “Sem forma revolucionária não existe arte revolucionária”.
Poesia não é sociedade beneficente, nem palco adequado para retóricas de palanque, e o poeta que se mete nessa empreitada corre o maior e o mais frequente dos riscos: o de exibir-se como politicamente correto, piedoso com o sofrimento dos desfavorecidos ou mostrar-se fanatizado por suas reivindicações, e perder-se em banalidades, preconceitos e concessões que diminuem a sua qualidade poética. Esse é o sentido do poema visual Profilograma Pound/Maiakóvski, que depois transformei em um morfograma digital com as vozes originais dos autores dizendo trechos dos seus poemas, e nos quais sobrepus os perfis de Maiakovski (por Ródtchenko) e Pound (por Gaudier-Brzeska), os dois maiores poetas políticos do nosso tempo, de ideologias opostas. As passagens menos felizes de suas obras são as que incorrem no fanatismo ideológico e na apologia de sistemas políticos que se revelaram autoritários e ditatoriais. Acabaram o primeiro se suicidando e o segundo numa jaula exposta às intempéries e a seguir internado num manicômio judiciário, por 12 anos, sem estar louco.
CD: Quais são os teus projetos literários atuais?
AC: Venho de participar do lançamento do CD O Inferno de Wall Street / Poetas em Movimento, de Cid Campos, com a música que ele compôs para os respectivos espetáculos de dança, e que conta com a participação de oralizações de vários intérpretes: a minha em O Inferno de Wall Street, com textos de Sousândrade, e também as de Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira, José Mindlin, Ricardo Araújo, Danilo Lôbo e Lauro Moreira em Profetas em Movimento. Trata-se de produção independente, com design gráfico meu, e que está sendo distribuída pela Tratore. [Veja aqui]
Lanço em 8 de dezembro a nova edição, muito ampliada, do livro de ensaios Poesia, Antipoesia, Antropofagia & Cia, pela editora Companhia das Letras. E tenho em preparo, para o ano que vem, Música de Invenção 2, a sair pela Editora Perspectiva. Em projeto, uma edição bilíngue, português/inglês, de Poetamenos.
CD: O Brasil vive hoje um dos momentos mais delicados de sua história, com ameaças ao processo democrático e aos direitos civis. Manifestações de intolerância e preconceito contra mulheres, comunistas, negros e homossexuais são frequentes, estimuladas pela mídia. Como você avalia esta situação?
AC: Toda a vez que pude — e são poucas as ocasiões em que se dá aos poetas a oportunidade de expressar a sua opinião — manifestei-me contra os atentados à nossa frágil democracia, e sou evidentemente contrário a toda espécie de preconceito. Acho que o Brasil evoluiu muito nos últimos tempos, especialmente no tocante aos direitos das mulheres, mas a nossa sociedade é ainda muito conservadora, e com a sua falta de consciência política, distorcida pelo poder econômico, elegeu um dos mais conservadores Congressos que já teve, dominado por ruralistas, empresários, evangélicos e até defensores da ditadura. Um Congresso que nos ameaça com retrocessos históricos como o das restrições à legislação sobre o aborto, sob as vistas grossas de uma oposição pouco sensível ao que não seja a busca do poder a todo preço e que está apostada em impedir a governabilidade do Executivo, refém do Congresso. A sociedade tem que estar muito atenta para evitar que tais retrocessos venham a ocorrer, e defender os direitos que conquistamos a duras penas.
CD: Qual é a importância da opinião política de artistas, poetas e intelectuais num momento como o atual?
AC: Não sou eu quem vai dar lições de civismo aos artistas, poetas e intelectuais. Cada um que se manifeste, ou deixe de se manifestar, como quiser. Para o bem ou para o mal, eu manifestei a minha opinião, e não é de hoje. Acho que, independente dos erros ou equívocos que cometeu o governo, é meu dever de cidadão insurgir-me contra os argumentos falaciosos dos que pretendem derrubar a vencedora das últimas eleições, com grave e perigosa lesão às nossas instituições democráticas. Tenho autoridade para isso. É que, independentemente de ser poeta e escritor, com um trabalho incessante por quase 70 anos, sou advogado, procurador do Estado aposentado, cargo que exerci por quase 40 anos e no qual entrei por concurso público e não por favor de ninguém. No exercício de minhas funções era especializado no exame da legislação em face das Constituições estadual e federal, e me sinto à vontade para afirmar que não têm qualquer fundamento jurídico as tentativas de impeachment da presidente. Nesse passo, ao contraditar os “impeachmaníacos” em entrevistas que dei aos jornais Valor Econômico (31 de julho), Correio Braziliense (2 de agosto) e à revista Cult nº 204, de agosto) antecipei-me aos manifestos anti-impeachment de importantes escritores, docentes universitários, juristas e advogados a que a grande mídia deu pouco ou nenhum destaque, embora entre os seus signatários estivessem nomes dos mais significativos da nossa cultura, como Antonio Candido, Marilena Chaui, Dalmo Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e juristas do porte de Fabio Konder Comparato e Marcio Sotello Felipe. Fecho com eles. Eu não me sentiria bem comigo mesmo se me calasse. Confesso que lavei a alma com o discurso que fiz na cerimônia da ordem do mérito e com a entrevista que dei, antes do seu início, no saguão do Palácio do Planalto, em 9 de novembro.
(Entrevista publicada em 2015 no Portal Vermelho)
AUGUSTO DE CAMPOS:
UM POETA EM BUSCA DA BELEZA DIFÍCIL
Augusto de Campos é um poeta com vocação para o futuro. Na época do “pós-moderno”, que se traduz no retorno a formas neoclássicas ou numa releitura do Modernismo dos anos 30, ele insiste em “desafinar o coro dos contentes”. À margem da margem, recusa o tom confessional e discursivo e insiste na busca da beleza difícil. Com os novos recursos oferecidos pela informática, Augusto vem realizando experiências com a poesia digital, que une a cor, o som, a palavra e o movimento, retomando o ideário da Poesia Concreta, com mais vigor e rigor. Tradutor incansável, Augusto publicou uma nova coletânea de poesia russa contemporânea, enfocando nomes da vanguarda do início do século, como Maiakóvski e Khlébnikov. A tradução — ou “recriação” — , como ele prefere chamar, é “uma forma de aprendizado, de crítica criativa e de conversa inteligente”. Com o poeta norte-americano e. e. cummings, por exemplo, ele manteve um diálogo de quase quatro décadas, que vem inseminando a sua própria produção. Para os que pensam que a arte poética está exaurida, o poeta sentencia: “Tudo está dito. Tudo é infinito”.
CD: Você está escrevendo um novo livro? Fale um pouco sobre os seus atuais projetos.
AC: No momento, não estou preparando nenhum novo livro. Venho me dedicando, nos últimos tempos, principalmente à digitalização e à animação poética, o que resultou nos Clippoemas, apresentados na exposição Arte Suporte Computador, na Casa das Rosas, em 1997, e no material que está agora no meu site oficial http://uol.com.br/augustodecampos. Isso sem falar nos CDs Poesia é risco e Ouvindo Oswald, com Cid Campos nas criações musicais, e no espetáculo Poesia é risco, que tem também a colaboração do vídeopoeta Walter Silveira. Essas atividades "intermídia" têm tomado todo o meu tempo de criação poética, sobrepondo-se, na minha história pessoal, à idéia de livro de poemas. Mas tenho, pronta, à espera de editor, uma nova antologia dos "poemas-coisa" de Rilke, com 31 poemas a mais do que a primeira edição, já esgotada, que tinha apenas 20 poemas.
CD: Desde o final dos anos 80, você tem feito experiências com a poesia digital, que une imagem, som e movimento. Pretende lançar um CD Rom com alguns desses novos poemas?
AC: Desde que um amigo meu, o professor Charles Perrone, da Universidade da Flórida, Gainesville, em fins de 1984, me mandou um prospecto do primeiro Mac, lançado justamente naquele ano, fiquei namorando os computadores pessoais. Só vim a ter o meu primeiro "Classic" em 1991, mas naquele mesmo ano de 84 eu já entrava em contato com um computador de alta resolução, Sistema Intergraph, convidado por Wagner Garcia e Mário Ramiro para participar de um pacote artístico patrocinado por aquela empresa. Com o auxílio deles e da equipe do "Olhar Eletrônico" pude então realizar o meu primeiro videoclip: uma versão em movimento do poema Pulsar (sincronizada com a música de Caetano Veloso), que chegou a ser divulgada pela televisão. A partir de 1991 pude enfronhar-me cada vez mais no mundo digital, passando por vários estágios de macintoxicação, até chegar ao ciberespaço. É claro que gostaria de fazer um CD Rom. Material não me falta. O que falta é apoio balístico-financeiro.
CD: A crise do verso anunciada por Mallarmé, a seu ver, aponta para o fim da poesia como arte verbal, com a adoção dos meios eletrônicos, ou ainda é possível a experimentação no poema-texto?
AC: Não acho que a crise do verso aponte para o fim da poesia como arte verbal, mas para um redimensionamento estrutural do poema. Essa reestruturação começou a ser trabalhada de vários modos pelas vanguardas do início do século, mas foi interrompida pela intervenção de duas grandes guerras e de duas ditaduras, a nazista e a stalinista, que perseguiram tenazmente os artistas experimentais e retardaram a evolução. Retomada, sob a inspiração de Mallarmé, pela Poesia Concreta, na segunda metade do século, essa abertura estrutural continha em germe os pressupostos das linguagens que iriam encontrar o seu "habitat" natural no contexto das novas tecnologias eletrônicas. Nesse contexto, a palavra não deixa de ter lugar, mas tem que ser reciclada, entrando em contato direto com a dimensão não-verbal, as imagens e os sons, e passa a ser interdisciplinar, intertextual e muitas vezes interativa, além de projetar-se em parâmetros materiais mais amplos, que devem levar em conta critérios de forma, cor, espaço e movimento. Não há porque excluir o livro ou outros suportes matéricos e textuais, que seguem o seu curso e até se beneficiam da tecnologia digital no processo de sua feitura. O que ocorre é a abertura insopitável para o universo virtual, em situações em que a palavra, potencializada em todos os seus parâmetros, já não cabe no livro. Suponho que haverá ainda, por muito tempo, lugar para aqueles que prefiram trabalhar exclusivamente as poéticas do texto fora do contexto das novas mídias eletrônicas. Por outro lado, insisto em sublinhar, o mero domínio do computador não transforma ninguém, só por só, em grande poeta, e as facilidades da engenharia digital devem preocupar sempre aqueles que a usam. Acima de tudo, a grande arte é sempre difícil. "Sem presumir o que sairá daqui, nada ou quase uma arte", dizia Mallarmé, há um século, no prefácio do Lance de dados, que antecipou todos os lances. E Pound, inventor de tudo: "Beauty is difficult". E Schoenberg, mestre de todos, aos seus alunos: "Eu vim aqui para tornar impossível a vocês compor música". Daí surgiram Anton Webern, Alban Berg e John Cage.
CD: Fale um pouco sobre o seu método de trabalho. Costuma escrever todos os dias? Quando escreve um poema, o que surge primeiro: o assunto, alguma palavra, o design ou algum recurso de linguagem? Tudo é planejado, ou em dado momento entra em ação o acaso?
AC: Trabalho todos os dias, mas poemas, mesmo, faço muito poucos. Traduzo muito mais poemas alheios do que faço os meus próprios. É uma forma de aprendizado, de crítica criativa e de conversa inteligente. Armazeno informações e me preparo, sem pressa. Mas não planejo racionalmente poemas. Uma forma, uma frase, uma imagem, um fato, uma emoção, uma palavra podem constituir um indício e precipitar um momento de tensão, a partir do qual se desencasula o poema, que, então sim, depois da chispa inicial, pode ser controlado, desenvolvido e aperfeiçoado com o know how adquirido. Não desdenho o acaso, ao qual até já dediquei um poema.
CD: Em Música de invenção, você fez uma ampla abordagem da música experimental do século XX. Aliás, sua preocupação nessa área está presente também em obras como O balanço da bossa, as traduções de Arnaut Daniel e do Pierrot Lunaire e as parcerias com Caetano Veloso. Qual é a importância da música para o seu trabalho poético?
AC: A importância da música é obviamente muito grande em meu trabalho, que começou sob o signo dela. Antes mesmo do lançamento oficial da Poesia Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, três poemas do Poetamenos foram apresentados no Teatro de Arena, num espetáculo que já levava o título de Música e Poesia Concreta, ao lado de Machaut e Webern, em 1955. O trabalho com Cid Campos, no CD Poesia é risco e nos espetáculos do mesmo nome testemunham a continuidade da presença da música em minha atuação poética. Assim como o recente Música de invenção, que tenta alertar para a grande lacuna cultural deste fim de século, que é a paradoxal marginalização da música erudita moderna, da "música contemporânea", uma das mais fascinantes aventuras da criação artística do nosso tempo.
CD: Você publicou uma nova edição, ampliada, dos poemas de cummings, autor que vem traduzindo desde os anos 50. A seu ver, a contribuição de cummings já está esgotada, ou ainda é possível aprender algo de novo com ele?
AC: cummings está mais vivo que nunca. Sua poesia é mais nova e mais atual do que a maior parte da que se lê hoje, considerando-se que houve nos últimos tempos, a pretexto de "pós-moderno" (na verdade, antes "anti" ou "contra"' moderno, quase sempre) um retrocesso na linguagem poética. cummings concilia liberdade (desmembra e intercepta frases, palavras e sílabas, dinamizando o poema e multiplicando as direções e as dimensões da leitura) e rigor (suas estruturas poéticas obedecem a processos de organização que se opõem às facilidades verbais), o que é raro. Há muito que aprender e que degustar em sua poesia.
CD: Em Despoesia, sua mais recente coletânea poética, há diversas referências ao cosmo, ao quasar e ao quark. A própria disposição espacial das palavras, em alguns poemas, recorda mapas celestes. De onde vem o seu namoro com a astronomia?
AC: No fundo, há, inelutavelmente, a sombra de Mallarmé e seu Lance de dados ("…exceto, talvez, uma constelação…"). Mas essa angústia ou inquietação cósmica é ao mesmo tempo muito humana e muito da nossa época, palco de tantos avanços na física e na cosmologia. Penso sempre nos poemas Pulsar e Quasar, de 1975, como mensagens numa garrafa cósmico-terrestre, à maneira daquela que foi enviada ao espaço, um ano antes, em sinais de rádio, do Observatório de Arecibo, ou daquela outra, que a sonda espacial Voyager levou, em 1977, num "disco interestelar" , à procura de um hipotético decifrador extraterreno. Não é essa uma boa metáfora para a poesia, sempre em busca de "vida inteligente", "alienígenas espertos", aqui mesmo na terra, e já agora no ciberespaço?
CD: Em sua arqueologia das poéticas de invenção, vários autores foram resgatados de um injusto esquecimento, como Sousândrade e Kilkerry. Que outros poetas, em sua opinião, merecem ser resgatados para o repertório de alto padrão da poesia brasileira?
AC: Continuo achando que os casos de Sousândrade e Kilkerry são os mais significativos, considerando que os demais poetas não-canônicos relevantes, como Gregório, por muito tempo censurado e marginalizado, têm hoje boa divulgação. Não se pode "descobrir" poetas de alto padrão a todo momento. E mesmo em relação àqueles dois grandes poetas encontramos dificuldades enormes para sua difusão. Basta que se diga que os dois livros com o "corpus" essencial de suas obras, Re-Visão de Sousândrade e Re-Visão de Kilkerry, estão há muito esgotados, subsistindo, de Sousândrade, apenas a pequena antologia que Haroldo e eu fizemos para a Agir (em segunda edição, atualizada).
CD: Qual é a sua opinião sobre dois movimentos estéticos recentes, o Neobarroco e a Language poetry?
AC: A meu ver, nem o Neobarroco nem a Language poetry constituem propriamente movimentos. A expressão "neobarroco" caracteriza antes uma interpretação de certos aspectos estilísticos da linguagem literária do nosso tempo, especialmente da América Latina de língua espanhola. Mas, se se quiser, poder-se-á encontrar estilemas barrocos em Joyce e até na poesia concreta. O grupo da Language poetry é mais definido, por ter se concentrado fisicamente em torno de uma revista, cujo primeiro número apareceu em 1978, mas não tem a envergadura de um movimento. Chamou a atenção para a materialidade da palavra, no contexto da poesia norte-americana, mas essa preocupação já fora explicitada, com maior nitidez e amplitude, em teoria e prática, pela Poesia Concreta, desde a década de 50. Acho a maioria dos poetas ligados à revista muito prejudicada pela opacidade da "escrita não-referencial", derivada dos "botões tenros" de Gertrude Stein, e muito ingurgitada de algaravia crítica. Ainda assim, a ênfase na materialidade do texto fez do grupo, no mínimo, um pólo de discussão relevante no âmbito da poesia norte-americana contemporânea.
CD: Tudo está dito? Ou ainda há o que dizer, em poesia?
AC: Tudo está dito. Tudo é infinito.
(Entrevista publicada em 1999 no Suplemento Literário de Minas Gerais)
DO VERSO AO REVERSO E AO CONTROVERSO:
A POESIA DE AUGUSTO DE CAMPOS
A poesia de Augusto de Campos situa-se no campo das vanguardas da segunda metade do século XX e adota o projeto de unir a palavra, a imagem, o som e o movimento em um único artefato artístico, pela mescla de recursos das artes visuais, da publicidade, da música e das tecnologias digitais. Conforme observou Manuel da Costa Pinto, o trabalho de Augusto de Campos utiliza outros suportes além do livro para a comunicação poética, como o holograma, o CD ou o videoclipe. O conceito de invenção, formulado por Ezra Pound, é essencial para a compreensão do pensamento e da prática poética do autor, voltado à pesquisa e experimentação de linguagem.
Em O Rei Menos o Reino, seu livro de estreia, publicado em 1951, Augusto de Campos pratica o verso tradicional, em poemas líricos, metafóricos, de forte tensão existencial. As imagens poéticas usadas nesta obra recordam por vezes a plasticidade surrealista, como por exemplo no poema O Vivo (“As mortas-vivas rompem as mortalhas / Miram-se umas nas outras e retornam / Seus cabelos azuis, como arrastam o vento![1]”), mas os versos são construídos com rigoroso artesanato formal, ao contrário da experiência mais espontânea da escrita automática. É possível identificar neste livro a influência de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Federico Garcia Lorca, na construção de imagens e na experiência criativa com a sintaxe, que por vezes se afasta da lógica discursiva linear, prenunciando suas futuras experiências poéticas, como na peça que abre o volume (“Onde a Angústia roendo um não de pedra / Digere sem saber o braço esquerdo / Me situo lavrando este deserto / De areia areia arena céu e areia[2]”).
Em poemas publicados posteriormente, como O Sol por Natural (1950-1951), Ad Augustum per Angusta (1951-1952) e Os Sentidos Sentidos (1951-1952), o poeta vai progressivamente adotando o verso livre, a espacialização de palavras e linhas, a criação de neologismos e a fragmentação léxica. Em Poetamenos, que publica em 1955 no número 2 da revista Noigandres, ele apresenta um ciclo de poemas coloridos de temática amorosa em que a sintaxe discursiva é substituída pela organização gráfico-visual das palavras. Estas composições, inspiradas na melodia de timbres do músico austríaco Anton Webern (cada cor equivale a uma nota distribuída a um instrumento musical diferente) são os primeiros exemplos de Poesia Concreta publicados no Brasil. O movimento concretista, criado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, defendia o “fim do ciclo histórico do verso” e propõe a criação de novas estruturas de composição poética, integrando recursos sonoros, visuais e verbais numa unidade “verbivocovisual”.
A proposta da Poesia Concreta tem como principal referência histórica o poema espacial Um Lance de Dados (1894) de Mallarmé, em que as palavras são dispostas de maneira geométrica na página, permitindo várias possibilidades de leitura, empregando ainda diferentes corpos de letras e fontes tipográficas, itálicos e negritos. A experiência de Mallarmé influenciou ainda os Caligramas (1918) de Apollinaire, em que cada poema tem uma organização visual relacionada ao seu tema (por exemplo, palavras dispostas na forma de um cachimbo, de uma pomba ou de uma fonte de água). Outras referências importantes para os concretistas foram os Cantos, de Ezra Pound, o Finnegans Wake, de James Joyce, e a poesia de e. e. cummings. No Plano-piloto da Poesia Concreta, publicado em 1958, os poetas concretos formalizam o seu pensamento estético, que seria desenvolvido em vários manifestos e artigos posteriores, reunidos na Teoria da Poesia Concreta (1975).
A Poesia Concreta surgiu num momento histórico em que a sociedade brasileira vivia um breve período de democracia política, acompanhada pelo surto desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek, que culminou com a construção de uma nova capital para o país, Brasília, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Nesta época, em que também se aceleram a urbanização e a industrialização, com investimentos de capital estrangeiro, “surgem os primeiros filmes do Cinema Novo (...), Grande Sertão: Veredas, o Teatro de Arena, a Bossa Nova, João Gilberto, as vanguardas na poesia e nas artes plásticas”[3], como assinalam Iumna Maria Simon e Vinícius Dantas. Ao mesmo tempo, há um crescimento dos movimentos sociais, que demandavam a reforma agrária e outras mudanças na economia e na política do país, acirrando os conflitos com os setores conservadores, que irão apoiar o golpe militar de 1964.
Augusto de Campos aderiu a uma poesia participante em 1961 com o poema Greve, que concilia a invenção de linguagem com temas de caráter político e social, adotando como lema a frase de Maiakovski: “Sem forma revolucionária não existe arte revolucionária”. Nesta época, aliás, Augusto e Haroldo de Campos estudaram o idioma russo com Boris Schnaiderman, na Universidade de São Paulo (USP), para traduzirem poemas de Maiakovski, Khlébnikov, Krutchonik e outros autores de vanguarda russa das décadas de 1910 e 1920, reunidos na antologia Poesia Russa Moderna (1968). A temática social está presente em outros poemas de Augusto de Campos, como Luxo / Lixo (1965), construído como paródia das logomarcas comerciais, e na série de poemas-cartazes Popcretos (1964-1966), que afirmam a contestação da ordem econômica e política pelo trabalho criativo com a linguagem. Em Psiu, poema circular construído a partir da colagem de textos e imagens recortados de jornais e revistas, podemos ler, por exemplo, a frase “Saber viver, saber ser preso, saber ser solto” junto a outros retalhos semânticos como “bomba”, “dinheiro”, “amar”, “vamos falar”, “livre” e “paz”, além de “pedaços de mensagens comerciais, referências à ditadura militar e aos atos institucionais”[4], como observou Flora Sussekind.
Já no poema Cidade (1963), Augusto de Campos faz uma representação irônica do movimento caótico, acelerado e ruidoso da vida urbana, aglutinando, numa única linha, fragmentos de palavras em diversos idiomas, formando uma frase quase impronunciável (“atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveveravivaunivoracidade city cite[5]”). Este poema permite diferentes possibilidades de leitura, pela combinação e permutação de prefixos e sufixos presentes na frase, aglutinados ao substantivo “cidade”, gerando significados como “atrocidade”, “caducidade”, “causticidade”, “ferocidade”, entre outros. Uma experiência similar a esta é o Colidouescapo (1971), pequeno álbum composto de folhas soltas que podem ser intercambiadas em diferentes sequências pelo leitor, de modo aleatório, permitindo assim a construção de palavras inusitadas pela recombinação de morfemas (destinto, desescanto, resiscanto).
Poemóbiles (1974), conjunto de doze poemas-objeto coloridos tridimensionais, desenvolvidos em parceria com Júlio Plaza, também solicita a participação visual e tátil do leitor, já que cada uma dessas peças pode ser manipulada, como as esculturas móveis, ou móbiles, de Alexander Calder, conduzindo a diferentes interpretações. O poema Viva Vaia, que integra esta série, chama a atenção pela tipologia empregada, que abole as fronteiras entre palavra e imagem: os signos visuais podem ser “lidos” como letras (sons / idéias) e ainda como formas plásticas, recuperando a dimensão visual da escrita. Este é um dos aspectos centrais na poesia de Augusto de Campos, e atinge o seu ponto de maior desenvolvimento na Caixa Preta (1975), conjunto de poemas visuais e poemas-objeto elaborados novamente em parceria com Júlio Plaza, no qual se destaca o poema Pulsar, em que letras do alfabeto estilizadas mesclam-se a sinais gráficos como círculos e estrelas, que substituem as vogais. A peça foi musicada por Caetano Veloso, e consta na gravação em vinil que acompanha a CaixaPreta.
A obra de Augusto de Campos só obteve maior circulação a partir do final da década de 1970 com a publicação da antologia Viva Vaia (1949-1979), que reúne parte considerável de sua produção poética. Entre 1979 e 2003, o poeta publicou três outras coletâneas com mostras mais recentes de seu trabalho, Despoesia (1994), Não (2003, acompanhada de um CD-Rom com poemas dinâmicos e interativos elaborados com o apoio de programas multimídia) e Outro (2015). Como tradutor, Augusto de Campos divulgou em português autores como Ezra Pound, Mallarmé, Joyce, Cummings e Maiakovski. No campo da crítica literária e do ensaio publicou as antologias Re-Visão de Sousândrade (1964), Re-Visão de Kilkerry (1971) e Pagu: Vida-Obra (1982).
Estudioso da música erudita de vanguarda, publicou artigos sobre compositores como Edgar Varèse, Anton Webern e John Cage no jornal Folha de S. Paulo, reunidos posteriormente no livro Música de Invenção (1998). Augusto de Campos também se interessa por movimentos de renovação da música popular brasileira, como a Bossa Nova e a Tropicália, publicou o livro O Balanço da Bossa (1974) e tem parcerias com os compositores Caetano Veloso, Arnaldo Antunes e Arrigo Barnabé. Em 1994, gravou o CD Poesia é Risco, com Cid Campos. O poeta desenvolve hoje trabalhos na área da poesia digital ou eletrônica, utilizando programas de multimídia para explorar a animação e a interatividade. É possível acessar poemas recentes do autor no site http://www.uol.com.br/augustodecampos, entre eles Criptocardiograma, peça que integra a série Clip-poemas, em que a leitura é interativa: cabe ao leitor arrastar as letras de um menu-alfabeto para dentro de um campo de ícones, substituindo cada ícone por uma letra para compor o poema, numa operação lúdica que recorda o engenho barroco da poesia visual labiríntica. Convém destacar o trabalho de Augusto de Campos na área da crítica literária, que revalorizou poetas criativos do passado que se achavam esquecidos, como o romântico Joaquim de Sousândrade, o simbolista Pedro Kilkerry e os modernistas Oswald de Andrade e Patrícia Galvão (Pagu), considerados por ele poetas inventores, conforme a classificação do paideuma de Ezra Pound.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia (1949-1979). São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
GUIMARÃES, Júlio Castañon e SUSSEKIND, Flora (organizadores). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.
PINTO, Manuel da Costa. Antologia comentada da poesia brasileira do Século 21. São Paulo: Publifolha, 2006.
SIMON, Iumna Maria e DANTAS, Vinícius. Poesia concreta (Coleção Literatura Comentada). São Paulo: Nova Cultural, 1982.
[1] CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 17. [2] __________. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 9. [3] SIMON, Iumna Maria, e DANTAS, Vinícius. Poesiaconcreta (coleção Literatura Comentada). São Paulo: Nova Cultural, 1982, 103 [4] GUIMARÃES, Júlio Castañon e SUSSEKIND, Flora (organizadores). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, 155. [5] Campos, Augusto de. Viva Vaia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, 114-115