de Dalcídio Jurandir, por Jonathan Pires Fernandes
1. INTRODUÇÃO
Um dos traços mais marcantes da prosa de ficção de Dalcídio Jurandir, certamente, é o fato de sempre surpreender o leitor. Esse “fator surpresa” pode ocorrer de variadas formas nos romances do escritor paraense, seja no enredo, tempo ou personagens. No que diz respeito ao enredo, fatos marcantes costumam ocorrer de forma inesperada – a revelação de que o personagem Amanajás já estava morto, mesmo que o personagem aparentasse estar vivo, em Chão dos Lobos (1976) –; o tempo costuma ser bem fragmentado em romances como Primeira Manhã (1968), Ponte do Galo (1971) e Chão dos Lobos (1976), nos quais o narrador surpreende o leitor ao alternar entre passado e presente, sem fazer demarcações; e, por fim, os personagens também costumam causar surpresas, seja com ações que o leitor não espera – como Eutanázio bebendo um café feito com a água que tinha sido usada para lavar um cadáver, em Chove nos campos de Cachoeira (1941) –, ou com o fato de alguns deles se revelarem protagonistas, mesmo não tendo sido apresentados, inicialmente, como tais. Este é o caso de Edmundo Meneses, um dos protagonistas do terceiro romance de Dalcídio Jurandir: Três casas e um rio, publicado em 1958.
O romance é dividido em quatorze longos capítulos (desprovidos de títulos) e apresenta Alfredo novamente como um dos protagonistas – o personagem já o havia sido em Chove nos campos de Cachoeira, primeiro romance de Jurandir. Entretanto, inicialmente, podemos observar que esse protagonismo é dividido com outra personagem: Lucíola Saraiva, personagem que também já havia aparecido no primeiro romance.
A principal trama que envolve Lucíola em Chove nos Campos de Cachoeira é o fato de ela ter cuidado de Alfredo nos primeiros anos de idade do menino, e o de querer tomá-lo para si: ser a mãe dele – até pensa em envenenar Amélia (mãe de Alfredo) para conseguir esse intento. Em Três casas e um rio, esta trama se repete, porém, o narrador procura dar explicações sobre a razão de Lucíola insistir em seguir nessa empreitada. Por meio da técnica do monólogo interior, aparecem os conflitos internos da personagem que lhe causam angústia, como o fato de ter tido uma juventude destituída de prazeres e gozos, e não ter conseguido arrumar casamento. Assim, pode-se dizer que o desejo de se tornar mãe de Alfredo – que se torna uma obsessão ao longo do romance – é uma forma de dar um sentido para a sua vida vazia. Esse desejo (ou obsessão) é a principal trama que envolve a personagem em Três casas e um rio.
Quanto a Alfredo, a trama que o envolve neste terceiro romance de Dalcídio não se difere muito da apresentada no primeiro. O menino deseja ir para Belém estudar, pois sonha com um futuro grandioso, algo que ele sabe que não vai se realizar se permanecer na pobre vila de Cachoeira, espaço da narrativa. Pelo fato de se apresentar mais crescido, Alfredo está mais obstinado no seu objetivo de deixar o seu local de origem. Além disso, o personagem inicia algo que Furtado (2015, p. 173) chama de “trajetória de procura de identidade racial e cultural”. Sendo filho de um pai branco (Major Alberto), que teve uma formação culta, e de uma mãe negra (D. Amélia), que não teve acesso às escolas e tampouco às academias, o menino divide-se entre o universo erudito (pai) e o universo popular (mãe).
A princípio, Alfredo despreza esse universo popular, conforme observa a professora Marli Furtado: “não aceita a negritude da mãe, não se reconhece como mestiço e não suporta as festas populares a que vai, como a pantomina do boi, que considera fétida e sem sentido” (op. cit). A pantomima do boi descrita acima se dá justamente em Três casas e um rio. Todavia, o que faz com que o menino sinta realmente um certo desprezo pela mãe é quando ele descobre que Amélia é alcóolatra. Nesse ponto, temos o primeiro grande desdobramento do romance, considerando que ele resolve fugir de casa para se embrenhar nas matas de Cachoeira.
No capítulo sete, Lucíola corre no encalço de Alfredo, e os dois acabam indo parar nas ruínas da antiga fazenda de Marinatambalo, propriedade dos Meneses, uma família aristocrata decadente, famosa por ser violenta e autoritária – os membros dela costumavam assassinar desafetos. Lá, são encontrados por Edmundo Meneses, na companhia de sua avó, Elisa Meneses.
Não obstante a aparição tardia no romance, Edmundo adquire importância quando o narrador utiliza boa parte do sétimo capítulo para desvelar ao leitor a vida dele e os principais traços que compõem o personagem, por meio do recurso da analepse. Em síntese: é o filho mais novo de Eduardo Meneses (já falecido) e sobrinho de Edgar Meneses – outrora ricos aristocratas; e foi educado na Inglaterra, onde ele morou, praticamente, a vida toda. Deixou o Marajó ainda criança. A narrativa segue desvelando ao leitor mais detalhes sobre a vida do personagem.
O narrador discorre sobre a fascinação do personagem sobre o seu local de origem, motivada por visões idealizadas da Amazônia como terra paradisíaca e quase mágica: “Remirava a fotografia do mondongo: perto pastavam búfalos, era-lhe como uma paisagem paradisíaca” (JURANDIR, 1994, p. 247). O fascínio por sua terra natal era tanto que ele objetivava administrar a fazenda de Marinatambalo, assim que terminasse os seus estudos na Europa e regressasse ao Brasil.
Todavia, ele fica impossibilitado de cumprir o seu objetivo, pois encontra a fazenda falida e cheia de dívidas, prestes a ser tomada pelo Dr. Lustosa – o capitalista apresentado em Chove nos campos de Cachoeira –, que pretende cobrir o débito com o banco, conforme é revelado em uma fala da avó de Edmundo, investindo contra Lucíola:
Que veio fazer aqui? Veio tomar a fazenda também? Veio com o dr. Lustosa, com a ordem da execução? Veio aproveitar-se da nossa ruína? Mas isto não é ruína. Este meu neto saberá mostrar que não. Ele levantará a estátua do meu filho, dr. Meneses, no centro do bosque, novamente. (Idem, p. 235).
A descoberta da ruína da fazenda fora um duro golpe em Edmundo, tanto que o personagem passa um período em absoluto abatimento, chegando a se isolar de seus familiares. Note-se como Edmundo adquire grande destaque na narrativa, revelando-se assim um de seus protagonistas, ainda que tenha sido apresentado somente no sétimo de quatorze longos capítulos.
Diante disso tudo, encontramos a principal trama que envolve o personagem: administrar a fazenda de Marinatambalo constituía-se um dos grandes objetivos (senão o maior) de sua vida, mas o local encontrava-se em ruínas, prestes a ser perdido pela família Meneses. Desse fato, resulta o drama de Edmundo, que passa a ser acometido pelas mais variadas paixões, tais como atonia, desespero e zombaria, que lhe causam uma frequente confusão mental, levando-o personagem a um caminho sem volta de degradação e autoflagelo.
Nosso objetivo é discorrer sobre as supracitadas nuances que envolvem o personagem, explorando o seu passado para explicitar como ele se relaciona com o seu drama no tempo presente da narrativa.
2. ORIGEM DAS PAIXÕES
Conforme dito anteriormente, Edmundo nasceu no Marajó, porém viveu praticamente a vida toda na Inglaterra, aproximadamente entre o final do séc. XIX (1900 a 1914) e início do séc. XX (após a Primeira Guerra Mundial). Ele vivenciou de perto a Europa desse período, marcada por guerras, revoluções sociais e avanços tecnológicos. Todavia, ele parecia desprezar e ignorar isso tudo:
Estimava a tradição inglesa, o gentleman, o Partido Conservador, recusando discutir com alguém que pusesse em dúvida as razões dessa estima. Fugia às discussões, evitava profundar esta ou aquela incerteza, preferindo isolar-se dos acontecimentos do mundo para assistir ao turfe e ao futebol ou encerrar-se nos estudos com aquele objetivo de voltar e plantar-se no Marajó. (Ibidem, p. 247).
O alheamento dos acontecimentos atuais daquela época – guerras, avanços tecnológicos e revoluções sociais – e a estima pelo Partido Conservador sugerem que o personagem não se sentia adaptado a esse contexto europeu de modernidade. Possuía pensamentos ligados ao passado (Partido Conservador), dos quais não queria abrir mão ao se recusar a discutir profundamente com alguém.
O apego de Edmundo a ideias ligadas ao passado é reforçado quando o narrador desvela que ele “acreditava na inferioridade das raças de cor, sobretudo dos mestiços, admitindo certos métodos de intimidação e de castigo no trabalho das fazendas” (Ibidem, p.248). Ora, semelhante pensamento destoa da modernidade europeia na qual os trabalhadores exigiam melhores condições de trabalho, por meio de greves e protestos. As ideias de Edmundo estão ligadas ao passado escravocrata de sua terra natal e, possivelmente, ele as absorveu de seu pai, antigo aristocrata do Marajó que sempre visitava o filho na Inglaterra.
Assim, conseguimos observar um conflito entre Edmundo e a modernidade europeia. Além de ter uma visão retrógrada a respeito do trabalho, anteriormente demonstramos que Edmundo ficava alheio aos acontecimentos, o que demonstra uma inadaptação. Talvez a alma do personagem dalcidiano não fosse compatível com o mundo caótico do séc. XX, de acordo com as palavras de Anatol Rosenfeld ao se referir a esse período:
(...) mundo caótico, em rápida transformação, abalado por cataclismos guerreiros, imensos movimentos coletivos, espantosos progressos técnicos que, desencadeados pela ação do homem, passam a ameaçar e dominar o homem. (ROSENFELD, 2013, p. 86).
Ao que consta, o filho mais novo dos Meneses não conseguia lidar com essa realidade que, de fato, pode parecer assustadora. Daí surge o desejo de fuga desse universo moderno e degradado – se levarmos em conta as disputas de poder, as guerras e as revoluções (cataclismos guerreiros) – para locais mais inóspitos, sossegados e livres de todos esses elementos. E para Edmundo, Marinatambalo poderia ser um desses locais.
Uma vez que se acredite na existência de locais livres da degradação da modernidade, o indivíduo tende a fantasiar sobre eles. É o que Edmundo faz em relação a Marinatambalo:
Fascinava-o também a pesquisa dos “aterros” indígenas que sabia da existirem em Marinatambalo. Descobriria ossadas, objetos de cerâmica vestígios de civilizações, quem sabe da Atlântida... Manteria, por isto, correspondência com sábios e museus. (JURANDIR, 1994, p. 247).
Olhando o mapa do Brasil, Edmundo localizava a vasta ilha entre o Atlântico e o grande rio, aquele reino tão seu, de tão estranho nome. Era a ilha que se atravessava no meio da luta entre o Atlântico e o Amazonas para que os dois rivais fizessem as pazes (...) Seu aquele selvagem território (Idem, p. 248).
Note-se o uso da expressão “reino”, relacionada a uma visão fantasiosa a respeito de sua terra natal. Um reino, um paraíso localizado em um “selvagem território”, livre de cataclismos guerreiros e dos velozes progressos técnicos que assustavam muitos indivíduos e, provavelmente, assustavam também o personagem dalcidiano. Assim, poderíamos relacionar Edmundo a uma geração de intelectuais e artistas que se sentem deslocados, inadaptados e indefinidos no universo capitalista das grandes metrópoles europeias. A este respeito, comenta Anatol Rosenfeld:
Gerações inteiras de artistas e intelectuais procuram reencontrar uma posição estável e essa procura (...) manifesta-se, principalmente, no desejo de fugir para um mundo ou uma época em que o homem, fundido com a vida universal, ainda não conquistara os contornos definitivos do eu, em que não dera ainda o pecado original da “individuação” (ROSENFELD, 2013, p.88).
Essa busca pelas “origens” acaba levando Edmundo a um certo fascínio pelo passado. Podemos observar sinais dele no desejo do personagem de praticar arqueologia em sua fazenda (realizar escavações na procura de vestígios de civilizações antigas), e em seu apego por ideias aristocratas: acreditar que os mestiços deveriam trabalhar para ele por serem inferiores.
A própria visão fantasiosa e repleta de lendas que Edmundo tem de sua terra natal está em conformidade com a crença da existência de paraísos terrestres, apregoadas por muitos colonizadores nos séculos XV e XVI, e que foi absorvida da Idade Média:
MAS COLOMBO não estava tão longe de certas concepções correntes durante a Idade Média acerca da realidade física do Éden, que descresse de sua existência em algum lugar do globo. E nada o desprendia da idéia, verdadeiramente obsessiva em seus escritos, de que precisamente as novas Índias, para onde o guiara a mão da Providência, se situavam na orla do Paraíso Terreal (...) o fato é que muito antes e desde o começo de suas viagens e descobrimento, a tópica “visões do paraíso” impregna todas as suas descrições daqueles sítios de magia e lenda. (HOLANDA, 1969, p. 15).
É válido lembrar também que o projeto que Edmundo tinha para a fazenda não era pautado em ideias modernas, mas em elementos ligados ao passado, de acordo com o que se observa em um monólogo interior direto do personagem: “Quero a fazenda com essa cor marajoara e tudo farei para que fique mais primitiva, mais colonial e meio indígena” (JURANDIR, 1994, p. 247). Note-se o uso de duas palavras relacionadas ao passado: primitivo e colonial. O passado, em contraste com um presente que não lhe encanta, exerce fascínio no personagem dalcidiano.
Todos esses fatores explicam o porquê de Edmundo ter resolvido pautar a sua vida a cuidar de um local que ele julgava como mágico e ligado ao passado, distante do universo das grandes metrópoles (o presente) que lhe era insatisfatório. Todavia, quando o herdeiro dos Meneses teve a certeza de que iria perder o seu refúgio, sobreveio-lhe as paixões já citadas acima, que vêm como um reflexo de seu drama. Cabe a nós agora discorrer sobre elas e suas eventuais consequências na sua trajetória.
3. ATONIA E OUTRAS PAIXÕES
Paixão, antes de tudo, pode ser entendida como uma tendência na vida mental de um indivíduo, levando-o a desenvolver, por vezes, ideia fixa em determinados elementos, além de poder provocar-lhe confusão mental, colocando a emoção acima da razão, em alguns casos: “Paixão, para nós, é sinônimo de tendência – e mesmo de uma tendência bastante forte para dominar a vida mental.” (LEBRUN, 2009, p. 12). Esse conceito de paixão está em conformidade com o atribuído por Aristóteles, citado no próprio texto de Lebrun: “Entendo por paixões tudo o que faz variar os juízos, e de que se seguem sofrimento ou prazer” (ARISTOTELES, apud LEBRUN, 2009, p. 14).
Uma das paixões que Edmundo experimenta, após o fatídico episódio da iminente perda de Marinatambalo, é o desespero (desperatio). Esta paixão é definida por Espinoza como: “tristeza nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já não existe dúvida” (ESPINOZA, 1822, p. 308 apud CHAUÍ, 2009, p. 63). A origem do desespero de Edmundo, naturalmente, deriva da circunstância supracitada: as ruínas de Marinatambalo.
Entretanto, é revelado que a família Meneses estava perdendo não apenas a referida fazenda, mas também outras propriedades. Mesmo assim, apenas Edmundo parecia estar preocupado com a ruína financeira da família:
Em Belém, foi a revelação daquilo que há quatro anos acontecera e que ele inteiramente ignorava. (...) O palacete em Batista Campos nas mãos do banco. Via-os assim resignados, indiferentes ao que acontecera, como se nunca tivessem sido proprietários. (JURANDIR, 1994, p. 249).
A indiferença de seus familiares com a perda de vários patrimônios deixa Edmundo consternado, agravando-lhe o seu desespero e fazendo-o cair em um estupor que causa um estranhamento nas pessoas ao seu redor:
Essa passividade deles aumentou o seu furor e seu desespero a tal ponto que os irmãos o julgaram enlouquecido. (...) Repeliu a hospedagem das irmãs. Fechou-se num quarto de pensão, durante dois dias, soterrado naquele desabamento. (op. cit).
Note-se como o narrador destaca o estado de desolação de Edmundo ao utilizar o termo “desabamento” para demonstrar o seu autêntico desespero. A vida de Edmundo “desabava” naquele momento em virtude da extrema tristeza por algo passado sobre o qual já não restava dúvida: a perda de Marinatambalo. Além desse desespero, representado pelo desabamento, Edmundo manifestava também a atonia, um estado de “inércia moral ou intelectual, relaxamento, enfraquecimento” (HOUAISS, 2001, p. 123), que também pode ser considerado uma paixão, pois costuma também dominar a vida mental do indivíduo, tornando-o lânguido: “uma disposição para relaxar-se e não se movimentar, que é sentida em todos os membros.” (DESCARTES, 2005, p. 108). Se levarmos em consideração que o personagem permaneceu por dois dias trancado inertemente em um quarto de pensão, podemos considerar que além do desespero, também manifestou atonia.
Essa atonia do personagem também poderia ser apontada como a razão que faz com que ele permaneça na fazenda de Marinatambalo, mesmo ela estando em ruínas, sem a menor chance de recuperá-la e salvá-la das mãos do Dr. Lustosa: “Vestiu sua roupa colonial (...) Noutro dia, muito cedo, foi visto lançando um dos búfalos mansos que pastavam à frente do bosque” (JURANDIR, 1994, p. 253). Como o próprio narrador comenta, Edmundo realizava tudo isso “sem significação nem indício de esperança” (op. cit). Decretado o malogro de seu projeto de vida, Edmundo entrega-se à atonia. Permanece na fazenda realizando atividades sem significação, deixando-se levar pela inércia.
Uma das razões que explicam essa atitude de Edmundo é o fato de que o mundo moderno, conforme comentado acima, nunca lhe atraiu, sempre lhe fora insatisfatório. Assim, ele se recusa a refazer sua vida em outro lugar com o bom dinheiro que ainda restava da família Meneses, à maneira de seus irmãos.
Estando Edmundo envolvido por paixões que dominam a sua vida mental, fazendo-o desenvolver certa confusão mental – explicitada nas atividades consideradas irracionais que realiza –, passemos agora a analisar as consequências que elas provocam na trajetória do personagem.
4. ATONIA E DEGRADAÇÃO
Após terminar a analepse que conta a trajetória de Edmundo até o momento do encontro dele com Alfredo e Lucíola, a narrativa retorna ao presente. Edmundo convida os dois para almoçar na casa da fazenda. Depois de um almoço recheado de desentendimentos sobre o local da refeição – a sala de jantar ou a cozinha –, Edmundo, Alfredo e Lucíola visitam o Mondongo: uma espécie de pântano localizado próximo à Marinatambalo (e sobre o qual Edmundo também fantasiava)
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Depois da visita ao mondongo, Edmundo resolve levar Alfredo e Lucíola de volta para a vila de Cachoeira, mas a bordo da velha caleche caindo aos pedaços, o que causa espanto em todos os habitantes do local. A partir de então, Edmundo se torna conhecido da família de Lucíola (os Saraivas) e passa a frequentar a casa dela:
Primeiro foram aquelas visitas à casa velha, ouvir Didico no violão ou afinando o pistão nunca limpo, o contato, pela primeira vez, com uma família do povo que se dissolvia aos poucos. Seguiu-se o jogo de cartas, a jibóia enrolada nos caibros, o gosto daquela monotonia em que escapava da avó sempre às voltas com seus fantasmas diurnos e exigir-lhe na hora do jantar que recuperasse a fazenda. (Idem, p. 305).
No final do capítulo 10, é revelado que o Major Alberto estava confeccionando convites para o casamento de Edmundo e Lucíola, e somente no capítulo seguinte é mostrado o momento em que o Meneses fez o pedido. Porém, vale lembrar que pouco antes de relembrar o dia em que pediu Lucíola em casamento, Edmundo divaga a respeito de sua atitude e conclui que ela é desprovida de sentido, uma irracionalidade, a julgar pelos termos “inexplicável” e “não tinha razão”:
Edmundo vinha no seu búfalo a caminho da vila, troçando de si mesmo, daquela resolução tão inexplicável quanto súbita. Não era um impulso de piedade como a princípio parecia ser. Não. Não tinha razão nem pretexto. Necessitava explicar a Lucíola que abusara de sua boa-fé, que foi um repente... (op. cit).
Note-se que o próprio personagem é incapaz de entender o que motivou a sua proposta, levando em conta que Lucíola não é considerada bonita; sendo vista como uma pobre infeliz que não conseguira casamento quando mais jovem; e que estava obcecada em se tornar mãe de Alfredo. Por isso, o termo piedade é mencionado acima.
Entretanto, Edmundo não se casaria por piedade. O ato de pedi-la em casamento, que ele próprio julga uma irracionalidade, demonstra que a vida mental do personagem está dominada por uma nova paixão: a zombaria.
De acordo com Descartes, zombaria é uma alegria que sentimos pelo sofrimento de alguém que julgamos merecedor do mal. O contrário da zombaria é a alegria séria, que ocorre quando notamos que um indivíduo está sendo beneficiado por um bem, e o julgamos merecedor dele: “Há apenas esta diferença: a alegria que vem do bem é séria, ao passo que a que vem do mal é acompanhada de riso ou zombaria” (DESCARTES, 2005, p. 73).
No episódio em que Edmundo propõe casamento, Lucíola fica confusa, assombrada, pálida e nervosa. Em suma, ela sofre com essa proposta de casamento, e Edmundo sente alegria ao vê-la sofrer:
Queria casar com ela, disse-lhe, e viu-lhe a palidez do assombro, o tremor nos cantos da boca, sem saber o que fazer das mãos, o olhar de aguda suspeita. Depois, o jeito de sufocada. Isso o excitou para o crescente prazer de vê-la cada vez mais aturdida. (...) –Deixo- a para que me responda dentro de alguns dias. Foi tão irresistível dizer isso! (JURANDIR, 1994, p. 306).
Vimos anteriormente que as paixões podem vir acompanhadas de dor ou prazer. Ao contrário da atonia e do desespero, a zombaria não provoca dor, mas sim prazer em Edmundo. Mas por qual razão ele zomba de Lucíola?
De acordo com Descartes, são justamente as criaturas miseráveis e infelizes que tendem a ser zombeteiras, pois elas desejam que todos sejam tão deserdados de sorte quanto elas:
E vê se que os que têm defeitos muito aparentes, por exemplo que são coxos, caolhos, corcundas ou que receberam em público alguma afronta, são particularmente inclinados à zombaria. Pois, desejando ver todos os outros tão desfavorecidos quanto eles, ficam muito contentes com os males que lhes acontecem e os consideram merecedores deles. (DESCARTES, 2005, p.153).
Embora Edmundo não se enquadre na categoria dos caolhos ou corcundas, é certo que podemos considerá-lo desfavorecido em outros aspectos. Ele tinha um único projeto de vida que não pôde nem sequer tentar concretizar, pois sua família acumulou dívidas e perdeu várias posses, entre elas, Maritambalo, o que torna o nome de Edmundo uma ironia. Afinal, Edmundo, de acordo com Bogéa (1981, p. 108), significa protetor das riquezas: “proteção, patrocínio, defesa dos bens, das riquezas”. Ele se torna um infeliz, um desfavorecido pela sorte que deseja que os outros sofram também.
O malogro e a infelicidade, aliadas às confusões mentais provocadas por suas paixões, conduzem a vida de Edmundo a um caminho de degradação, e ele arrasta Lucíola para este mesmo rumo. Em dado momento, Edmundo resolve realizar mais uma atividade considerada irracional: escava Marinatambalo com intenções arqueológicas, o que acaba se tornando a exumação de um cadáver: ao invés de vestígios de civilizações antigas, ele encontra ossadas de uma criança assassinada por seu tio (Edgar Meneses).
Edmundo resolve mostrar as ossadas para Lucíola, o que deixa a sua noiva horrorizada e com crise de soluços. Ao vê-la nesse estado, Edmundo interpela-a:
“Como Lucíola? Que é isso? Que agonia é essa? Por que tudo isto, querida” (JURANDIR, 1994, p. 347). O uso do termo “querida” faz com que Lucíola suspeite que o seu noivo estivesse novamente zombando dela, que fizera isso só para maltratá-la mais uma vez: “Chamando-a de querida, com ossos de criança na mão. Os soluços aumentaram” (op.cit).
Note-se todo um contexto de degradação e autoflagelo na trajetória de Edmundo: exumando cadáveres e atormentando sua noiva com elementos mórbidos. O próprio noivado em si causa tormento e angústia em Lucíola: misturam-se sexualidade reprimida, inseguranças e temores:
Imaginava o pudor ridículo que se apossaria dela ante o contraste físico revelado por inteiro, em toda a sua nudez, a certeza de que permaneceria inerte, repelida pelo que não lhe podia dar, como se, de tanto esperar, tivesse o sexo morto. (Idem, p. 329).
Note-se como o noivado se torna, de certa forma, uma espécie de degradação para ambos, pois os dois são indivíduos desajustados. Edmundo, que julga a si mesmo como um fantasma: “Realmente o homem que eu devia ser morreu (...) D. Marciana tinha razão ao me julgar um fantasma aparecendo naquela noite” (Ibidem, p.310), se junta a uma mulher que tem o “sexo morto”. Isso quer dizer que essa relação entre os dois é incapaz de gerar vida. Em mais um ato de autoflagelo, Edmundo quis o enlace entre duas vidas mortas.
Todavia, esse enlace não se concretiza. No capítulo 13 do romance, o casamento finalmente é celebrado, mas Lucíola diz não a Edmundo e foge da cerimônia, suicidando-se logo depois, ao ingerir veneno. É inegável que o noivado com Edmundo contribuiu consideravelmente para que ela tomasse a decisão de acabar com sua vida.
5. CONCLUSÃO
As consequências do desvario provocado pelas paixões de Edmundo não foram apenas graves, mas também trágicas. Ajudaram a colocar um fim na vida de Lucíola e, de certa forma, na dele também, afinal o personagem monta em seu búfalo e desaparece entre as matas de Cachoeira.
Não obstante, antes de morrer, Edmundo ainda chega a ter uma breve reflexão, quase uma epifania: “Edmundo foi ver o lago, deteve-se a cem metros de distância pensando com zombaria: aqui é minha família que fede, sou eu, não os mortos, é a propriedade.” (Ibidem, p. 372-373).
Nesse ponto, Edmundo parecia constatar de vez que Marinatambalo não era um reino paradisíaco como acreditava antes, baseando-se, provavelmente, em narrativas do séc. XV e sé. XVI sobre a América. Para Johann Eichman (1900, p. 4, apud FRANÇA, 2011, p. 11), essas narrativas eram extravagantes demais.
Johann Eichman (...) lamentava que os viajantes e seus relatos fizessem por merecer a epigrama: “Quem quer mentir que minta de longe e de terras longínquas, porque ninguém vai lá para verificar”” (FRANÇA, 2011, p. 11).
Edmundo acreditara em uma mentira. Marinatambalo não era um reino e tampouco um paraíso. Lá os peixes também morriam e o lago secava, trazendo à tona os cadáveres de pessoas mortas pelos Meneses. Assim, a narrativa mostra que o fascínio que Edmundo tinha pelo passado era injustificável. Havia escolhido como projeto de vida tomar conta de coisas velhas que já estavam apodrecidas, corroída pelos anos de dívidas, crimes e desmandos dos Meneses. Marinatambalo não passava de um cemitério das vítimas da referida família aristocrata: não tinha gado e nem vestígios de civilizações remotas.
Edmundo desperdiçou sua vida com a ideia fixa no projeto de tomar conta de uma fazenda em ruínas, mas acabou sendo dominado pela irracionalidade das paixões quando teve certeza do malogro, o que contribuiu consideravelmente para os desvarios do personagem, sobre os quais discorremos aqui. Isso tudo trouxe consequências trágicas como o suicídio de Lucíola e o subentendido fim de Edmundo.
Ainda que o narrador não confirme a morte do personagem, e o destino dele se torne uma espécie de lenda entre os moradores do local, tudo nos leva crer que o herdeiro dos Meneses, no estado em que se encontrava ao vagar sem rumo pelas matas, certamente morreria de inanição. Assim, podemos encerrar com um comentário, carregado de certa ironia, de Dalcídio Jurandir sobre a morte de Edmundo, em carta enviada a Nunes Pereira:
O processo da morte de Edmundo parece-se com o processo da galopada de Ramiro. Depois pensei que o processo da situação pode ser o mesmo mas o móvel psicológico e a solução dramática ### diferentes. Mas penso que gostarás do fim lendário de Edmundo. Para ele ficou bem. Eu quis ridicularizá-lo, fazê-lo um pobre diabo e no fundo saiu um homem, herói de lago e de pântano mas herói no seu fim. (JURANDIR, apud NUNES, 2004, p. 22).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOGÉA, J. Arthur. Dicionário Etimológico de Nomes e Sobrenomes. São Paulo: Editora Ave Maria Ltda, 1981.
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DESCARTES, Renê. As paixões da alma. 2. ed. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FRANÇA, Júlio. Um outro naturalista na Amazônia: a viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira. In: JOBIM, José Luís; PELOSO, Silvano (Orgs). Descobrindo o Brasil: sentidos da literatura e da cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011.
FURTADO, M. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. 2002. 263f. Tese- Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002.
________. Dalcídio Jurandir e o romance de 30 ou um autor de 30 publicado em 40.
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HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visões do Paraíso. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1969.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
JURANDIR, Dalcídio. Chão dos Lobos. Rio de Janeiro: Record, 1976
______. Chove nos Campos de Cachoeira. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.
______. Três Casas e um Rio. 3º ed. Belém: Cejup, 1994.
LEBRUN, Gérard. O Conceito de Paixão. In: NOVAES, Adauto (Org). Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NUNES, Paulo (Org). Cartas amazônicas. A correspondência de Dalcídio Jurandir a Nunes Pereira (1940/1945?). Belo Horizonte: UFMG, 2004.
ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. 5º ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.
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