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Os desafios de Lula

Editorial Zunái 2023



A vitória de Lula, no contexto internacional, significa o fortalecimento do campo democrático-progressista de esquerda ou centro-esquerda na América Latina. Com o retorno do Brasil a esse campo, organismos de cooperação regional como o Mercosul, a Unasul e a Celac, que não têm a participação dos Estados Unidos, ficarão mais fortes, e a Organização dos Estados Americanos (OEA), ou o “ministério das colônias ianques”, como dizia Che Guevara, cairá na irrelevância. O Brasil terá uma presença mais destacada nos Brics, ao lado da Rússia, Índia, China e África do Sul, e talvez o bloco se amplie com o ingresso da Argentina e do Irã. Com isso, o Banco dos Brics poderá substituir as organizações financeiras controladas pelos EUA, financiando projetos de desenvolvimento com juros mais baixos, e em algum futuro os Brics poderão adotar uma moeda própria, em substituição ao dólar. Com o Brasil na vanguarda da América Latina, os acordos comerciais entre os Brics e o Mercosul também poderão crescer, o que contribuirá para o enfraquecimento da hegemonia norte-americana e para a construção de uma nova ordem multipolar. A derrota de Bolsonaro é uma derrota para o neoliberalismo e para fascismo internacional, que até então tinha o Brasil como país-líder, sobretudo em organizações para o combate ao aborto e à assim denominada “ideologia de gênero”. Após a derrota de Trump nas eleições norte-americanas, Bolsonaro passou a ser o líder de referência dos movimentos neofascistas, que hoje estão no poder na Itália, Suécia, Ucrânia, Hungria, Polônia e outros países do Leste Europeu, desde a queda do bloco socialista.


No plano nacional, a primeira observação importante a ser realizada é que as eleições mostraram um Brasil dividido: enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste deram a vitória a Bolsonaro, o Norte e o Nordeste deram a vitória final a Lula. Um país dividido é sempre mais difícil de ser governado e Lula terá que adotar uma política de curto prazo para ampliar a sua popularidade e conquistar corações e mentes até agora contrários ao petista. Esta divisão acontece também nos governos estaduais, que igualmente estão polarizados, 13 governadores estão alinhados com Lula e 14 contra. Como os estados e municípios dependem de verbas federais, porém, talvez Lula consiga costurar, com prefeitos e governadores de oposição, uma política de convivência mutuamente satisfatória, que evite uma ruptura e conflito entre o Executivo Federal e os governos estaduais e municipais.


No Congresso Nacional, essa polarização adquire outro contorno, pois mais da metade do Congresso Nacional é controlado pela direita e pela extrema-direita. Os partidos da coligação de Lula somam pouco mais de cem deputados, o que significa a necessidade de se obter apoio de outras legendas e parlamentares para a aprovação dos projetos do Executivo. Geraldo Alckmin foi escolhido para ser o vice de Lula exatamente para desempenhar esse papel: o de conversar com deputados e senadores do MDB, PSDB, União Brasil e outros do Centrão que eventualmente possam somar forças à bancada governista. A própria Frente Ampla articulada em torno de Lula no segundo turno das eleições já indicou essa necessidade de ampliação da base de apoio político, inclusive junto a setores conservadores.


A Lei de Diretrizes e Bases Orçamentárias, ou LDO para 2023 foi aprovada no ano passado, com cortes significativos nas áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia, entre outras. Lula se empenhou, antes mesmo da posse, em dialogar com o Congresso para mudar a LDO, para garantir o Bolsa Família de R$ 600,00 e retomar programas sociais como o Minha Casa Minha Vida, o Ciência sem Fronteiras, ter recursos para o Farmácia Popular e outros programas de inclusão social e cidadania. Além das articulações políticas em Brasília, os movimentos sociais terão importância fundamental para pressionar o Congresso Nacional a votar a favor das pautas sociais; resta saber se os partidos de esquerda, centrais sindicais, entidades de negros, mulheres, estudantes etc. serão protagonistas ou se, como aconteceu na época dos governos de Lula e Dilma, guardarão suas bandeiras em casa.


A ameaça golpista não está descartada, porém, não tem a força que os fascistas brasileiros acreditavam, por várias razões: a) os Estados Unidos já declararam não apoiar qualquer aventura golpista e Biden telefonou a Lula para lhe dar os parabéns, após a vitória eleitoral do petista; b) no mesmo dia da apuração, além dos EUA, China, União Europeia, México, Argentina e outros países reconheceram a vitória de Lula; c) os presidentes da Câmara Federal e do Senado reconheceram o novo governo e até o Inominável telefonou para Alexandre de Moraes aceitando o resultado das eleições; d) a Fiesp, a Febraban e até entidades do agronegócio já se manifestaram contra qualquer aventura golpista e pelo respeito ao estado de direito e à democracia; e) a Igreja Católica e parte da mídia hegemônica assumiram idêntica postura; f) as Forças Armadas nunca deram um golpe de estado sozinhas. Mesmo em 2016, quando Dilma foi derrubada, houve um amplo leque de forças, sobretudo civis, que “legitimaram” o golpe de estado. Em 1964, aliás, também foi assim, apesar do protagonismo assumido pelas Forças Armadas. Os bolsonaristas que se ajoelham nas portas dos quarteis embaixo de chuva e cantam o hino nacional para pneus furados nas estradas estão sozinhos. O sonho (ou pesadelo?) golpista, porém, não resumiu-se aos acampamentos de lunáticos em frente aos quarteis, ao movimento dos caminhoneiros, que recebeu apoio ilegal e imoral da Polícia Rodoviária Federal, e às loucuras de Roberto Jefferson e da pistoleira espanhola Carla Zambelli, entre outras ações insanas e patéticas: a invasão e depredação dos prédios do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto em Brasília, no dia 08 de janeiro, é um sinal grave de que podem acontecer outros atos de terrorismo de extrema-direita no país nos próximos anos, com a conivência ou cumplicidade de forças policiais e governadores bolsonaristas, atos que merecerão a mais rigoraosa punição exemplar. A existência de milícias e de arsenais privados de armas ameaçam a democracia e Lula precisa, em seu primeiro ano de mandato, adotar uma firme política de desarmamento, que inclua o fim dos clubes de tiro e de caçadores de animais. Não será uma tarefa fácil desarmar os fascistas e para isso o Congresso deve votar novas leis específicas e a Polícia Federal ser chamada, sempre que for necessário. O bolsonarismo, enquanto ideologia, prática política, conjunto de preconceitos, discurso de ódio e ações de violência continuará a existir por anos ou décadas. Assim como a Alemanha, após a derrota na II Guerra Mundial, iniciou um processo de desnazificação, com o julgamento e prisão dos criminosos nazistas e a interdição de qualquer tipo de propaganda inspirada nas ideias de Hitler, precisamos desbolsonarizar o país, em uma ação que envolva a educação, a imprensa, o judiciário, campanhas públicas para a reeducação da sociedade e a dissolução das Polícias Militares e outras organizações terroristas. É necessário desarmar e prender os milicianos, os agropecuaristas, pastores evangélicos e outros envolvidos em atos de violência e a adoção de leis duras que punam qualquer ação de racismo, homofobia ou misoginia. As instituições religiosas precisam pagar impostos e serem orientadas a não realizarem discursos de ódio, sob pena de responder a ações legais.


As Forças Armadas devem cumprir apenas a função de defender a soberania do território nacional contra agressões externas. Por fim, todos os responsáveis por atos de corrupção, violência ou propaganda de ódio durante o período bolsonarista precisam ser presos, julgados e condenados. Tudo isso parece utopia e com certeza não será feito em curto período de tempo, mas, se não houver uma política eficaz de combate ao fascismo, seremos novamente vítimas dele em futuro próximo.


Por fim, a economia. O governo Lula não será um governo petista, nem de esquerda, no máximo de centro-esquerda, em aliança com setores democráticos da burguesia. O PAPEL HISTÓRICO DE LULA não é o de liderar a revolução socialista no Brasil, mas sim o de fortalecer a democracia, o estado de direito, o desenvolvimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, com soberania e defesa dos interesses estratégicos nacionais. Com Lula será possível fazer com que o Brasil finalmente ingresse na idade contemporânea, superando o atraso secular do país em relação às nações desenvolvidas. Cabe a ele a tarefa de impulsionar o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico do país, investir na educação, na saúde, na cultura, na erradicação da fome e da miséria. Nessa reinvenção ou refundação do Brasil é preciso defender a visão do país como um estado laico, que respeite os direitos dos trabalhadores, das mulheres, negros, índios, homoafetivos e outros grupos sociais discriminados. Hoje, não há condições objetivas ou subjetivas para que aconteça uma revolução. Fazer com que o Brasil se torne um país próspero, independente, moderno, que supere a monocultura para exportação e implemente a reforma agrária, fortaleça a agricultura familiar e a produção de alimentos orgânicos, sem destruir o meio ambiente, já será um imenso avanço civilizacional. O principal desafio econômico de Lula será o de conciliar um programa de reindustrialização do país com algum controle do teto de gastos e a adoção de uma Nova Legislação Trabalhista, construída conjuntamente pelo governo federal, as centrais sindicais e as entidades empresariais. Como isso acontecerá, é impossível prever, e com certeza será o maior desafio histórico de toda a carreira política de um operário metalúrgico pernambucano chamado Luís Inácio Lula da Silva, que se tornou pela terceira vez presidente do Brasil.

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