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O RITUAL ANTROPOFÁGICO DE LUCRÉCIA NEVES: LITERATURA E CULTURA EM CLARICE LISPECTOR

Atualizado: 22 de jan. de 2023

ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 1


por Anderson Luiz Teixeira Pereira, André Luiz Moraes Simões e Sílvio Augusto de Oliveira Holanda


RESUMO: O presente trabalho propõe um estudo do romance A cidade sitiada (1949), de Clarice Lispector, fundamentado na metodologia da Literatura Comparada, cuja noção de transversalidade possibilita promover uma interface entre a literatura clariceana e alguns ensaios da Antropologia. Nossa empreitada deter-se-á em mostrar que, detrás do pano de fundo que encobre a trama romanesca da obra supracitada, há a delineação de um “sujeito selvagem” (KIENING, 2014), caracterizado pela figura da protagonista da história, Lucrécia Neves, que, diante da dinâmica da modernização ocorridas no subúrbio de São Geraldo — espaço de ação da narrativa — a personagem tende a um certo “perspectivismo” (CASTRO, 2002), à medida que o seu deslocamento geográfico — para fora dos muros de São Geraldo — lhe permite visão não apenas de novos horizontes, mas sobretudo, por meio de um processo de alteridade, ver o outro. Por fim, justificando o título do trabalho, o estudo culminará com a comparação, no sentido metafórico, de um ritual antropofágico de Lucrécia Neves, que, mediante a dialética que sofre, ao final da narrativa, é capaz de devorar uma cultura outra, configurando um ato canibal, cuja lógica do rito é a incorporação daquilo que é diferente a si próprio.


Palavras-chave: A cidade sitiada; Clarice Lispector; Antropofagia.


No estilo telegráfico do anterior, os aforismos do Manifesto Antropófago misturaram, numa só torrente de imagens e conceitos, a provocação polêmica à proposição teórica, a piada às ideias, a irreverência à intuição histórica, o gracejo à intuição filosófica. Usando-a pelo seu poder de choque, esse Manifesto lança a palavra “antropofagia” como pedra de escândalo, para ferir a imaginação do leitor como lembrança desagradável do canibalismo, transformada em possibilidade permanente da espécie.

(Benedito Nunes – Antropofagia ao alcance de todos, 1992)


INTRODUÇÃO


Propõe-se demonstrar, brevemente, por meio de um percurso que desdobre questões relacionadas à natureza, cultura e ficção, como a interface entre Literatura e Antropologia movimenta o campo das discussões científicas em virtude delas se ocuparem em refletir sobre a vida humana e suas relações com o mundo.

Literatura e Antropologia se entrecruzam a partir do momento em que o texto literário, dotado de seu caráter estético-artístico, constitui-se como um fenômeno oriundo de certa realidade social — seja ela em crise ou não — que, por mais fictícia, não deixa de ser, de todo modo, um modo de compreensão da dimensão humana.

Antonio Candido (2006), crítico exemplar no que diz respeito a promover a relação entre literatura e sociedade, esclarece-nos algumas questões referentes a uma abordagem que contempla o estudo da literatura como representação social:


É o que tem ocorrido com o estudo da relação entre a obra e o seu condicionamento social, que a certa altura do século passado chegou a ser vista como chave para compreendê-la, depois foi rebaixada como falha de visão, — e talvez só agora comece a ser proposta nos devidos termos. Seria o caso de dizer, com ar de paradoxo, que estamos avaliando melhor o vínculo entre a obra e o ambiente, após termos chegado à conclusão de que a análise estética precede considerações de outra ordem.

(CANDIDO, 2006, p.12)


O método dialético de Antonio Candido é funcional para a desenvoltura do nosso estudo, pois o crítico propõe, em seus trabalhos, uma espécie de equilíbrio entre os valores internos e externos para a compreensão da literatura. Desse modo, servindo-nos como modelo basilar para a interpretação do mundo ficcional construído em A cidade sitiada, buscaremos analisar a dialética da modernização da cidade ficcional como um elemento que instaura a problematização simbólica da transformação, que põe em jogo valores como natureza e cultura.

Em outras palavras, o que procuraremos efetuar será uma leitura crítica que buscará, a partir do diálogo transdisciplinar, abstrair da trama romanesca uma possível “crise” da representação de um pensamento antropológico ocidental, o qual tenha sido forjado por meio da matéria ali narrada, conscientemente ou não.

Desse modo, o estudo estabelecerá, a partir da noção de “transversalidade” (COUTINHO, 2006, p. 41) evocada pela Literatura Comparada, uma interface entre alguns ensaios de Antropologia e o romance A cidade sitiada (1949), de Clarice Lispector (1920-1977). Vale ressaltar que o que ora se propõe não se reduz a uma abordagem de conceitos relativos à Antropologia, os quais sejam possíveis de serem aplicados à A cidade sitiada. Mais do que isso, o âmago da questão é o fato de que ambas as áreas, considerando suas especificidades, privilegiam, como centro de seus discursos, a dimensão humana.

Quando se atravessa de um domínio do conhecimento a outro, é necessário, sobretudo, descrever essa passagem. Clarice Lispector, ao criar o mundo ficcional do romance supracitado, não procurou absorver os conceitos antropológicos dos quais pretendemos nos ocupar e, por outro lado, as reflexões antropológicas de Lévi-Strauss (2008), de Eduardo Viveiros de Castro (2002) e de Christian Kiening (2014) — para citarmos os principais nomes com os quais tentaremos o diálogo — não se encontram fincadas num corpus literário, como é o nosso caso. Nesse sentido, a tarefa que se evoca é, antes de tudo, pôr em relação Antropologia e Literatura, com base em uma temática já partilhada por ambas: a antropofagia.

Pensar essa temática, relacionando Literatura e Antropologia, exige pelo menos dois desdobramentos: primeiramente, a retomada da antropofagia na literatura brasileira, isto é, como atitude estético-ideológica aludida no “Manifesto Antropófago”, de Oswald Andrade (1890-1954), publicado em 1928, à época da efervescência do modernismo brasileiro. Segundo — talvez o ponto central do empreendimento — a discussão, a partir das nuances do campo semântico, no sentido de uma revisitação histórica, do status quo da antropofagia na Antropologia contemporânea, a qual tem se incumbido de assinalar o sentido metafísico contido nesse ritual praticado pelas sociedades selvagens, sobretudo, pelos índios da América Latina.

Desta forma, poder-se-á absorver a lógica do ritual antropofágico, para num momento ulterior, interpretá-la, de maneira simbólica, ao movimento que Lucrécia Neves — personagem central do romance ora analisado —, mediante a dialética que sofre, desempenha ao se relacionar com o mundo e com uma cultura outra, configurando-se nisso um processo de alteridade em que se reconhece no outro a sua condição de sujeito.


ANTROPOFAGIA LITERÁRIA: ENTRE NATUREZA E CULTURA


Pensemos na antropofagia sob dois vieses, os quais, ainda que indiretamente, aproximam-se e estabelecem um jogo com a noção de natureza, de cultura e de humanidade: a) antropofagia literária — como atitude estético-ideológica pensada inicialmente por Oswald Andrade; b) antropofagia enquanto rito cultural particular aos povos selvagens — cuja construção discursiva inicialmente se dá por meio das representações dos europeus ao escreverem sobre os habitantes do Novo Mundo e, que, durante alguns séculos, relegaram à essa prática o status de “anormalidade” e de “monstruosidade” (KIENING, 2014, p. 133). Representação que passaria a oscilar quando Michel de Montaigne, ao escrever sobre os estrangeiros do Novo Mundo, emprestou um olhar de alteridade à prática canibal.

A Antropologia contemporânea, como é o caso de Viveiros de Castro (2002) e de Christian Kiening (2014), avançou significativamente ao apontar a importância da relação de canibalismo nas culturas dos povos Ameríndios:


Isso equivale a dizer que, “para os indígenas”, nenhuma diferença é indiferente, pois toda diferença é imediatamente relação, dotada de uma positividade; a hostilidade não é um nada, mas uma relação socialmente determinada. Seria possível, contudo, ir mais longe na Amazônia: o esquema geral de toda diferença, como se pode ler reiteradamente na etnologia da região, é a predação canibal, da qual a afinidade é apenas uma codificação específica, ainda que privilegiada.

(CASTRO, 2002, p. 163)


O sentido ontológico dessa relação, cuja lógica interna mantém estreita ligação com a ideia de incorporação do outro, é um ponto tangente entre a antropofagia literal e a acepção evocada pela “invenção oswaldiana” (NUNES, 1979, p. 9) no “Manifesto Antropófago”, que aliás, degusta da imagem do canibal[4] que circulava pelas produções artísticas europeias no início do século XX.

Deve-se salientar, antes de mais nada, que não nos interessa pensar a antropofagia em A cidade sitiada no sentido estético, ou seja, como uma criação artística de vanguarda. O projeto literário de Clarice Lispector não surge no cenário literário brasileiro contingenciado às ideias e às discussões artístico-ideológicas desencadeada pela semana de arte moderna de 1922.

Nesse sentido, um dado interessante a ser avaliado — espécie de arquivo — é o texto crítico-ensaístico, sob o título de “Literatura de vanguarda no Brasil”, proferido por Clarice Lispector, primeiramente, no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, na Universidade do Texas, nos Estados Unidos, o qual foi publicado, posteriormente, na coletânea de textos Outros escritos.

A matéria textual do ensaio aborda — num tom mais poético do que crítico — a presença das vanguardas europeias no modernismo brasileiro. Mas dele apenas sublinhamos a seguinte afirmação de Clarice: “não posso dizer que tenha acompanhado de perto a efervescência dos movimentos que surgiram e das experiências que se tentaram, quer no Brasil, quer fora do Brasil. ” (LISPECTOR, 2009, p.00). Por mais que a autora de A paixão segundo G.H. tenha consciência do modernismo enquanto movimento literário, seu discurso e sua literatura deixa entrever que não há na sua criação literária uma preocupação em seguir cabalmente a cartilha estética do modernismo. Pelo menos não no que diz respeito à tematização da Antropofagia.

O desdobramento acima efetuado se justifica pela necessidade de defendermos que a antropofagia da qual estamos falando, no que diz respeito a escritura clariceana, não se insere no espírito de vanguarda, ou seja, não tem que ver com o alargamento da cultura nacional por meio da deglutição das verdades preconizadas e das influências estrangeiras. Por outro lado, também não se trata da descrição de uma antropofagia literal, pois o mundo ali narrado não tem como pano de fundo a representação de uma sociedade que pratique o canibalismo.

Desta forma, a pergunta que se deve formular é a seguinte: Onde estaria antropofagia em A cidade sitiada? A resposta não é simples, porém é o eixo norteador do trabalho.

A antropofagia em Clarice Lispector se situa no campo simbólico da linguagem. O romance moderno dessa autora efetua uma espécie de “descolonização do pensamento”. Traço que parece ser um dos pontos centrais de A cidade sitiada. Os modelos, os paradigmas e as formas de conhecimento das coisas e do mundo, bem como as relações ontológicas entre sujeito e objeto, legitimadas pela tradição do pensamento ocidental, é questionada na trama romanesca. Não se trata da negação da tradição, mas sim, da projeção de uma forma de pensamento outra. Fato corroborado, por exemplo, nas polarizações homem/animal e natureza/cultura, o qual põe em dúvida os discursos ocidentalizados a respeito daquilo que nos tornaria humano e que nos diferenciaria dos animais. Respondendo à pergunta diretamente, a antropofagia clariceana se dá no nível da criação literária, a qual atinge o status de literatura pensante.

A personagem Lucrécia Neves é delineada como um sujeito antropófago cultural, canibal. A relação que ela mantém com o mundo se dá por meio da incorporação, no sentido de buscar naquilo que lhe é alheio e do qual não participa, a afinidade com o desconhecido. Deste modo, podemos falar de Lucrécia como constructo simbólico, no qual subjaz a ideologia da antropofagia cultural oswaldiana que, de certa maneira, caminha na mesma direção da metafísica canibal dos povos selvagens.

O cerne da discussão é apontar a lógica canibal como uma forma outra de relação do sujeito com o mundo, a qual se daria em função de um corpo que apenas ver: “E a dureza das coisas era o modo mais recortado de ver a moça” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Olhar, neste sentido, é devorar.

Não é possível afirmar que Clarice Lispector tenha tematizado a antropofagia em A cidade sitiada. Contudo, em função do trabalho com a linguagem, o qual põe em cheque valores pré-concebidos, a antropofagia se instaura como aspecto filosófico na matéria ficcional do romance, em virtude dos múltiplos desdobramentos evocados pela questão da transformação cultural de São Geraldo, que, de certa maneira, ameaça o modo de vida dos seres (humanos e animais) que transitam na cidade sitiada.

O eixo mimético do romance estabelece nexo com a Antropologia a partir da evocação de um outro, o qual Benedito Nunes[5] (2007, p.286) já havia chamando atenção para o lugar periférico que este ocuparia em nossa cultura: o animal. Este é um dos topos que nos permite compreender o desenvolvimento de uma antropofagia cultural. A figura animalesca, elemento que a priori estaria mais próximo da natureza do que o homem, projeta o contraste entre humanidade e animalidade.

O antropófago clariceano é um ser selvagem por excelência porque não se relaciona com o mundo por meio de abstrações conceituais, mas sim, por um olhar selvagem que devora. Como já aludido, Clarice Lispector não traz o selvagem de forma prototípica, entretanto, ele se corporifica mediante ao campo filosófico — pensante — que paira sobre A cidade sitiada.


O GESTO ANTROPOFÁGICO DE LUCRÉCIA NEVES


Como já havíamos mencionado em linhas acima, o canibalismo, real ou simbólico, ocupa um lugar privilegiado na cultura dos povos selvagens. Antes de mais nada, é necessário ressaltar que essa prática ocupa, na verdade, uma parte particular da cosmologia dos povos ameríndios: “Afinidade e canibalismo são os dois esquematismos sensíveis da predação generalizada, que é a modalidade prototípica da Relação nas cosmologias ameríndias. ” (CASTRO, 2002, p. 164).

Nosso trabalho, que surgiu incumbido de aproximar Literatura e Antropologia, a partir de agora, demonstrará nossa hipótese de que a personagem Lucrécia Neves, de A cidade sitiada, realiza um gesto antropofágico. Afirmamos isso, primeiramente, em função do jogo ficcional moderno de Clarice Lispector se desenvolver por meio de uma torção da representação do pensamento ocidental.

O arco do pensamento filosófico moderno orbitou em torno da razão e fez dela o modelo paradigmático das ciências. Em contrapartida, a filosofia contemporânea se erigiu desconfiada dessa centralidade, bem como da capacidade deliberativa do sujeito sobre o objeto. A polaridade sujeito/realidade, a priori, mediada pelas abstrações racionalistas do primeiro sobre o segundo, agora passaria a ser reavaliada.

Nesse sentido, na ficção forjada por Clarice Lispector em A cidade sitiada, num só golpe, “‘desler’ a tradição (BLOOM, 1995), pondo-a pelo avesso” (NASCIMENTO, 2012, p. 213), de modo que o pensamento ocidental já não corresponde a maneira como as personagens do romance articulam-se com mundo. Fato já apontado por Regina Pontieri (1999, p. 20): “Em Clarice, ao contrário, sujeito e objeto, retomados em distintas polaridades (eu/mundo, espírito/corpo) são verso e reverso da mesma realidade, donde a busca de integração, dando-se juntamente com a consciência da separação.”.

Considerando a observação de Pontieri (1999), nosso pressuposto é de que há a possibilidade de se falar em ecos da metafísica canibal em A cidade sitiada. Elas se aproximariam no que diz respeito à relação do sujeito com o mundo e com o outro ser estabelecida pela dialética da incorporação. O que colocaria a subjetividade, de certo modo, de lado. Lucrécia Neves é um sujeito cuja visão é anterior ao pensamento. O nexo que essa personagem mantem com o mundo é construído por meio de uma visão antropófaga, que mais do ver, quer devorar:


Sinais de telegrama. Eis a forma alçada da mesinha. Quando uma coisa não pensava, a forma que possuía era o seu pensamento. O peixe era o único pensamento do peixe. O que dizer então da chaminé. Ou daquela folhinha de calendário que o vento arrepiava... Ah, sim, Lucrécia Neves via tudo.

(LISPECTOR, 1998, p. 71)


“O que era tão importante para uma pessoa de algum modo estúpida; Lucrécia que não possuía as futilidades da imaginação mas apenas a estreita existência do que via.

(LISPECTOR, 1988, p. 97)


“Naquela deusa consagrada pelas duas horas, o pensamento, quase nunca utilizado, primarizara-se até transformar-se num sentido apenas. Seu pensamento mais apurado era ver, passear, ouvir. Mas seu tosco espírito, como uma grande ave, se acompanhava sem se pedir explicações.”

(LISPECTOR, 1998, p. 98)


Esse olhar da personagem central, que percorre toda a cidade de São Geraldo, é devorador, pois, indo de um canto a outro, de passeio a passeio — afinal, a moça era dada às andanças — ela degusta do pequeno universo de São Geraldo. A antropofagia de Lucrécia está configurada no olhar selvagem. É por meio dele que se estabelece o elo entre sujeito e mundo.

Por volta de 1920 — tempo da história narrada — o subúrbio passava por um processo de transformação cultural, que ameaçava soterrar o modo de vida pacato das personagens. Em meio ao caos, que concentrava no mesmo espaço natureza e “progresso”, os serem que ali habitam — humanos e animais — são postos no mesmo plano ontológico. A fronteira entre humanidade e animalidade é esfumaçada. Lucrécia Neves, por exemplo, do início ao fim, é narrada com os mesmos traços dos cavalos que haviam sido trazidos à São Geraldo para erguerem as novas construções. Ela apenas “veria as coisas como um cavalo” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Bastava que ela olhasse e logo alcançava a realidade das coisas.

A antropofagia de Lucrécia Neves se adensa à medida que o desejo de devorar as coisas se estende à ânsia de incorporar, também, as novidades que penetravam os muros da cidade:


Até centros espíritas começavam a formar-se acanhadamente no subúrbio católico e Lucrécia mesma inventou que às vezes ouvia uma voz. Mas na verdade ser-lhe-ia mais fácil ver o sobrenatural: tocar na realidade é que estremeceria nos dedos. Ela nunca ouvira nenhuma voz, nem sequer desejava ouvi-la; ela era menos importante, e muito mais ocupada.

(LISPECTOR, 1998, p. 24)


Esse desejo se reafirma em vários momentos distintos. Um deles se dá quando Lucrécia rompe com a Associação de Juventude Feminina de São Geraldo, cuja ideologia do grupo era promover o progresso do espírito, em função do medo que as mocinhas tinham da cidade que se erguia. A personagem, pelo contrário, manifestava curiosidade pelas coisas de fora: “seu desejo seria o de enfim virar as costas a S. Geraldo” (LISPECTOR, 1998, p. 110)

Podemos citar ainda a vontade que a protagonista tinha de participar de um baile: “O desejo de ir a um baile às vezes nascia, crescia e deixava espumas na praia” (LIPSECTOR, 1998, p. 72). O evento era a grandiosidade cultural que São Geraldo não poderia oferecer a ela. O desejo antropófago de Lucrécia era tamanho que ela almejava atravessar os muros de São Geraldo: “Se ao menos a moça estivesse fora de seus muros. Que minucioso trabalho de paciência o de cercá-la. De gastar a vida tentando geometricamente assediá-la com cálculos e engenhos para um dia, mesmo decrépita, encontrar a brecha. ” (LISPECTOR, 1998, p. 73).

Contudo, o acontecimento que consumou a antropofagia de Lucrécia Neves é o seu casamento com o negociante forasteiro Mateus Correia, que visitava a mãe da mocinha sempre que podia a fim de se casar com a filhinha de Ana. O Matrimônio é o símbolo maior da antropofagia cultural, pois ele representa a deglutição ou melhor o estabelecimento com a relação com o estrangeiro. Simboliza, portanto, a incorporação de uma cultura outra, advinda de fora, da qual a Lucrécia não era partícipe.

Durante uma conversa entre Ana e Lucrécia sobre a necessidade do casamento, a jovem diz à sua mãe, que Mateus seria interessante “pois é de outro meio. [...] vem de outra cidade, tem cultura, sabe o que se passa, lê jornal, conhece outra gente...” (LISPECTOR, 1998, p. 110). É obvio o interesse entre ambas as partes pelo casamento. Mas queremos ressaltar o valor simbólico que há na constituição dessa relação.

Casar-se com Mateus seria, desta forma, a concretização do ritual antropofágico de Lucrécia Neves. Não se trata apenas de um desejo de conhecer uma cultura outra. Lembremo-nos que a antropofagia, para os povos ameríndios, é, sobretudo, uma relação de alteridade, isto porque é modo prototípico de se relacionar com o estranho, o não familiar. Antropofagia, nesse sentido, é um traço de humanização, pois ela pressupõe a construção da relação com o outro por meio da incorporação.

Na verdade, Lucrécia sempre tivera admiração pelos homens estrangeiros que vinham à São Geraldo, como é o caso da breve relação que tivera com o tenente Felipe, um estrangeiro, cujo olhar altivo menosprezava à cultura de São Geraldo. Além dele, há ainda o Dr. Lucas, com quem Lucrécia Neves se sentia “orgulhosa de andar” por ser um homem diplomado (LISPECTOR 1998, p. 25).

Após o casamento, Lucrécia finalmente se liberta de São Geraldo. Este fora o deslocamento geográfico que tanto almejava. Mas não bastava apenas se mudar para uma cidade maior: “Lucrécia Neves desejava ser rica, possuir coisas e subir de ambiente”. Agora, na nova cidade, no centro de outra cultura, ela passaria a experimentar de tudo aquilo que o novo ambiente lhe proporcionava: “Estava contente de iniciar desde já o ritual da nova vida”. (LISPECTOR, 1998, p. 121)

Aqui, voltamos novamente para a questão do olhar selvagem como modelo de apreensão da realidade. O que Lucrécia não havia entendido é que sua natureza selvagem, seu modo antropófago de se relacionar com o mundo, acompanhá-la-ia onde quer que ela estivesse, mesmo que o lugar fosse uma cidade maior, mais desenvolvida, ou mesmo com hábitos culturais que a personagem jugasse melhor do que aqueles de São Geraldo: “Lucrécia mesmo fora apanhada por alguma roda do sistema perfeito. Se pensara que se aliando a um forasteiro, sacudir-se-ia para sempre de São Geraldo e cairia na fantasia? Enganara-se.” (LISPECTOR, 1998, p. 126)

O trajeto de Lucrécia é interessante porque nele está contido uma pauta temática acerca de natureza e cultura, que, de certo modo, é corroborada pela cena em que a moça está tomando café com o advogado contratado para resolver os tramites do casamento e um cachorro invade a ocasião. Lucrécia tenta enxotá-lo e o narrador heterodiegético comenta: “ No meio de todos ele a reconhecera” (LISPECTOR, 1998, p. 121). Apenas o animal reconhece o outro animal ou o humano reconhece o outro humano.

Meses e meses depois da convivência com aquela cidade, Lucrécia, tomada por um súbito de cólera, pede ao marido que voltassem ao subúrbio que, para surpresa da senhora Correia, agora já havia se transformado.

A antropofagia cultural de Lucrécia culmina com o retorno para sua casa. A grande questão projetada por meio dos gestos que a personagem realiza em A cidade sitiada é uma síntese a respeito da nossa humanidade. A questão da experimentação de uma cultura outra, por mais que propiciasse um processo dialético, contudo, não modificou o seu olhar selvagem: “ o olhar continuando a ser a sua reflexão máxima” (LISPECTOR, 1998, p. 198).

Como tentamos demonstrar, a relação entre humanidade, natureza e cultura é um dos aspectos basilares que engendram a trama romanesca que se inicia focando, de modo panorâmico, a cidade e culmina no seu deslocamento para consciência individual de Lucrécia. Tal movimento, de certa maneira, possibilitou a problematização e o questionamento de algumas categorias da cosmologia ocidental ao passo que tentamos colocar no centro da discussão traços específicos do pensamento ameríndio.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades. 1970. P. 124-131.

CASTRO, Eduardo Viveiros. A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

EAGLETON, Terry. A ideia de Cultura. Trad. Sofia Rodrigues. Lisboa: Temas e debates, 2003.

KIENING, Christian. O sujeito selvagem: pequena poética do novo mundo. Trad. Silvia Nauroski. São Paulo: Edusp, 2014.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 8 ed. Trad. Tânia Pellegrini. São Paulo: Papirus, 1989.

LÉVI-STRAUSS. Natureza e Cultura. Revista Antropos – Volume 3, Ano 2, Dez de 2009.

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice Vanguarda no Modernismo Brasileiro. In: Outros escritos. São Paulo: Rocco, 2009.

NUNES, Bendito. O Drama da Linguagem: Uma Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989

NUNES, Bendito. Um conceito de Cultura. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 2004.

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NUNES, Bendito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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COUTINHO, Eduardo F. “Literatura Comparada: reflexões sobre uma disciplina acadêmica”. IN: REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, n. 8. Rio de Janeiro, 2006. p. 41-58.



Anderson Luiz Teixeira Pereira[1]

André Luiz Moraes Simões[2]

Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (UFPA)[3]

[1] Mestre em Letras/Estudos Literários (PPGL/UFPA). Participa do grupo de “Estudos Estético-Recepcionais acerca da Literatura de Língua Portuguesa”, coordenado pelo prof. Dr. Sílvio Holanda (ILC/UFPA).


[2] Mestrando em Estudos Literários (PPGL/UFPA). Participa do grupo de “Estudos Estético-Recepcionais acerca da Literatura de Língua Portuguesa”, coordenado pelo prof. Dr. Sílvio Holanda (ILC/UFPA).


[3] Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na Universidade Federal do Pará.


[4] “Precedendo a antropofagia oswaldiana, cujo manifesto data de 1928, há toda uma temática do canibalismo na literatura européia da década de 20. Essa temática, associada a motivações psicológicas e sociais, exteriorizou-se por certas metáforas e imagens violentas, usadas, como meio de agressão verbal, pela retórica de choque do Futurismo e do Dadaísmo.” (NUNES, 1970, p.14)


[5] Na verdade, Benedito Nunes, no texto citado, refere-se a dois outros da nossa cultura, o animal e o primitivo. Coube-nos destacar apenas este último.

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