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O LIVRO DO VAZIO PERFEITO, DE LIEZI - POR CHIU YI CHIH

Liezi ao vento, c. 1810-1813, de Katsushika Hokusai.



Liezi foi um pensador e mestre taoísta. Também conhecido como Lie-Tsé ou Lie-Tsu, viveu no período chamado de Primavera e Outono Chinês da dinastia ocidental de Zhou (770-446 a.C.) Segundo os estudiosos, é considerado um dos três principais pensadores que desenvolveram os princípios básicos da filosofia taoísta, juntamente com Laozi e Zhuangzi. Apresentamos aqui um fragmento de seu Livro do Vazio Perfeito, com tradução de Chiu Yi Chih.

 

海上之人有好沤鸟者,每旦之海上,从沤鸟游,沤鸟之至者百住而不止。其父曰:“吾闻沤鸟皆从汝游,汝取来,吾玩之。”明日之海上,沤鸟舞而不下也。故曰:至言去言,至为无为;齐智之所知,则浅矣。

 

Havia um homem que vivia à beira do mar e amava as gaivotas. De manhã, ele entrava no mar e brincava com uma multidão delas. Em certa ocasião, seu pai lhe disse: “Ouvi dizer que as gaivotas vêm brincar com você. Poderia trazer uma delas para eu brincar?”.


Na manhã seguinte, o homem retornou ao mar. Entretanto, as gaivotas que dançavam no céu não desceram. É por esse motivo que os antigos diziam que a suprema linguagem é aquela que abandona a linguagem. A suprema ação é a Não Ação. Portanto, é inútil tentar compreender inteiramente a essência da sabedoria.


Comentário do tradutor


É muito difícil abandonarmos as nossas crenças, hábitos, condicionamentos e pensamentos. Nossa mente sempre deseja nomear, classificar e enquadrar os acontecimentos numa determinada interpretação. E, na medida em que estamos acorrentados aos conceitos já construídos e permanecemos apegados às ideias fixas, deixamos de perceber a realidade tal qual se manifesta no momento presente. Criamos interpretações que distorcem o fenômeno de tal maneira que até perdemos a capacidade de experienciar o novo e o real.


Contudo, se pudermos "escutar" o fenômeno sem buscar nele uma razão ou finalidade específica, por exemplo, se pudermos acolhê-lo dentro de um estado de Naturalidade onde não precisaremos mais projetar nenhuma ideia preconcebida, onde não nos prenderemos mais à linguagem verbal, então poderemos fluir com as experiências e ir além das limitações da linguagem. Nesse sentido, mergulhando num silêncio interno, estaremos imersos num estado de atenção extremamente sutil. É nessa sutileza despojada de intencionalidades que estaremos livres e íntegros para viver dentro e não na superfície do mundo.


Quando deixarmos de exercer o esforço no sentido de se empenhar forçosamente em direção a um objetivo programado, ou seja, quando abandonarmos os padrões de pensamentos e nos entregarmos ao estado de Vazio, alcançaremos a essência da sabedoria que, segundo o mestre taoísta Liezi, se encontra no princípio da Não-Ação. Isso implica em estarmos no mundo sem criarmos prejulgamentos e captarmos os fenômenos com sensibilidade e percepção atenta. Durante uma determinada experiência, se pudermos senti-la com todo o ser, com toda a sensibilidade do corpo, teremos alcançado uma compreensão nova e diferente, um entendimento que não será meramente interpretativo. Ou seja, um entendimento que envolve todo o nosso ser autêntico.


Mas, segundo a filosofia taoísta, para sermos autênticos, precisamos apenas cultivar um estado de ser próximo da pureza do recém-nascido. Como a mente é excessivamente sobrecarregada de crenças, sistemas de ideias e valores, ficamos quase impedidos de aceitar o fluxo natural dos acontecimentos. É nesse sentido que precisamos nos esvaziar, desaprendendo de muitas noções supérfluas e se interconectando com as riquíssimas preciosidades do mundo. Em outras palavras, com menos interferência da mente, precisamos nos abrir para um estado de maior porosidade e de maior entrega às singularidades indizíveis de cada omento. Desse modo, retornando ao estado do Sublime Vazio (无极-wújí) e reaprendendo tudo novamente, voltaremos a "brincar com as gaivotas", tal como as crianças extasiadas em estado de alegria e naturalidade. E, nesse caso, brincar com as gaivotas é simplesmente brincar com elas sem uma explicação lógica, uma justificativa racional ou um plano previamente traçado pela nossa mente. É aceitar as gaivotas tais como elas se aproximam de nós sem nenhum desejo de dominação, pois, caso contrário, se quisermos agarrá-las, perderemos toda a beleza de sua dança.


Por isso, o verdadeiro conhecimento não é algo que pode ser possuído e capturado como se fosse um objeto. O verdadeiro conhecimento se desenrola na simplicidade e na Naturalidade. Eis o que seria a essência da sabedoria com a sua sutileza, fulguração e espontaneidade. É o próprio fluxo da Naturalidade se desdobrando num movimento indizível, onde não há mais pressuposições de nossa mente, onde o mundo se revela para nós com profundidade, harmonia, beleza e esplendor.


 

Chiu Yi Chih (邱奕智) é chinês nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro, professor de filosofia taoísta e de mandarim (leitura instrumental) nos cursos online de Taoísmo. Filósofo, poeta e tradutor de obras clássicas como “Dao De Jing” de Laozi , “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte da guerra” de Sun Tsu, todos publicados pela Editora Mantra. Praticante de Tai Chi e meditação. Mestre em Filosofia Antiga Grega (USP) e graduado em tras (Grego Clássico-Português/USP). É autor dos livros “Naufrágios” (Multifoco-2011), “Metacorporeidade” (Córrego-2016), dos e-books “Meditações e comentários sobre Dao De Jing", "Ensinamentos de Bodhidharma", "Caminho taoísta", "A filosofia de Liezi", "Osso Vazio", "Meditações com I Ching" e "Mantras taoístas". Visite seu site www.omandarimtaoismo.com

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