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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

O HOMERO DOS PALESTINOS

por Carlos Adriano

Retrato do falecido escritor francês Jean Genet. 9 1/2 x 12 1/4, tinta, guache e aquarela sobre papel. Edward Kinsella, ilustrador.



Há 40 anos, o Journal of Palestine Studies estampava o último texto publicado em vida por Jean Genet, após uma década sem escrever – “Quatro Horas em Shatila” (1983). As vinte páginas assombrosas são a virada de sua existência, humana e literária. Versam sobre o massacre que a ONU condenou, em dezembro de 1982, como “ato de genocídio”. Com o comando logístico-moral de Israel e como vingança pelo assassinato do presidente eleito Bashir Gemayel, a milícia da extrema-direita libanesa-cristã chacinou 4.500 civis palestinos e libaneses nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, entre 16 e 18 de setembro de 1982. Em êxtase com a causa palestina, Genet chamou-a de “minha revolução”. Quis ser “o Homero dos palestinos”. Ao fim do derradeiro artigo, diz: “A luta por um país pode preencher uma vida bastante rica, mas curta. Foi essa, recorde-se, a escolha de Aquiles na Ilíada.” Em seu “textamento”, daria a deixa: “a fama dos heróis deve pouco à imensidão de sua conquista e tudo ao sucesso dos tributos que lhe são rendidos”.


Após “Shatila”, Genet fez o texto-testamento “Um Cativo Apaixonado” (1986), livro póstumo e inclassificável no rizoma de gêneros. A Palestina livre era árbitro de seu juízo. Volante da justiça e da justeza, que se tornou amigo de Derrida por causa do futebol, Genet escalou o time de França, Israel, Estados Unidos e países árabes reacionários contra o dream team de Panteras Negras, Palestinos e ele mesmo. A questão palestina é a questão da ocupação israelense do território palestino (essa ocupação militar é uma forma do pós-colonialismo que extravasa dos séculos 19 ao 21). Em 15 de maio de 1948, ocorreu a fundação do Estado de Israel, baseada em atrocidades como os massacres de Tantura (22 a 23 de maio de 1948) e de Deir Yassin (9 de abril de 1948) – que se propagariam em outros massacres, com os de Kafr Kassim (1956) e de Jenin (2002), e em operações brutais e cruéis como “Escudo Defensivo” (2002) e “Chumbo Fundido” (2008/2009).  A constituição deste estado israelense (que legitimidade política e moral pode ter um estado fundado sobre a expropriação do povo nativo?) converteu 750 mil palestinos em refugiados e condenou-os ao exílio – é a Nakba (Catástrofe). Genet não reparou que “Quatro Horas em Shatila” foi impresso justamente nos 35 anos da Nakba.


Com a Nakba (75 anos em 2023), Israel instituiu e institucionalizou a limpeza étnica da Palestina e um estado de apartheid (em 1948 foi criado o mesmo sistema na África do Sul). Sionismo não é judaísmo; mas é um programa de “colonialismo por povoamento”, cuja lógica de eliminação e desumanização dos povos nativos conduziria “naturalmente” ao genocídio. A devastação segue em Gaza, Jenin, Nablus, Ramallah, Cisjordânia e outros territórios ocupados. Práticas comuns da ocupação militar israelense são violações sistemáticas dos direitos civis e humanos, como detenções ilegais, torturas, deportações e assassinatos de cidadãos palestinos, e a destruição de casas e de plantações palestinas (principalmente de oliveiras). A instauração desse cruel estado de terror militar configura um desastre geográfico, ecológico e humanitário. Israel transformou Gaza num campo de concentração, e não apenas um anômalo campo de refugiados em sua própria terra. Não à toa Edward W. Said falou em “arquipélago gulag árabe”. Para descrever o que o exército de Israel tem feito desde 2006 na Faixa de Gaza, Ilan Pappe chama a política israelense de “genocídio incremental”.


Só em janeiro deste ano de 2023, foram assassinados 35 palestinos. Em 2022, 220 (incluindo 48 crianças) foram mortos por ataques de Israel aos territórios ocupados. Os novos historiadores israelenses e árabes, que recalibraram ao contexto os conceitos de colonização e limpeza étnica, revogaram a “solução de dois estados” como falácia do futuro, entrave para a paz entre Israel e Palestina.


Genet nasceu em 19 de dezembro de 1910, em Paris. Orfão, exerceu a delinquência como profissão (também de fé). Com o gene do crime, fez da contravenção a versão idealizada da vida pelas vias do mal. Em prêt-à-porter de porte e impostura, foi ladrão, michê e vagabundo. Sempre do lado de párias e deserdados, o revoltado e radical artífice da língua francesa era uma bicha levada da breca-barra-pesada. “Nossa Senhora das Flores” (1942) fez Cocteau adotá-lo. É autor de romances (“O Milagre da Rosa”, 1946), peças de teatro (“O Balcão”, 1956), ensaios (“O Ateliê de Alberto Giacometti”, 1958) e do filme “Um Canto de Amor” (1950). Sartre, o zarolho papa-pop do existencialismo, canonizou-o na hagiografia “São Genet: Ator e Mártir” (1952). Para Edward W. Said, “o desafio de sua escrita consiste no antinomianismo feroz” e ler Genet supõe o aceite da “singularidade indômita de sua sensibilidade”. Genet não usou o kaffieh (lenço palestino) como cafuné na boa consciência ocidental. Seu destino foi trançado ao dos palestinos – o acaso o levou à ocasião do genocídio em Shatila. Segundo Edmund White (“Genet: Uma Biografia”, 1993), “sua mente fluida permitia-lhe associar o heroísmo das trocas de sexo à coragem suicida dos soldados palestinos”. Ele até confessou sentir “atração erótica” pelo povo palestino.


Em 1968, na Tunísia, Genet viu poemas em iluminuras árabes louvando o Fatah (partido do Movimento de Libertação da Palestina). No maio de 68, na Sorbonne, reviu as plaquetes na barraca de agitação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Em 1969, a equipe da Tel Quel o apresentou ao delegado da OLP em Paris. “Os Palestinos”, seu texto-legenda para fotografias de Bruno Barbey, saiu na revista Zoom em 1971. Após o Setembro Negro, passou seis meses na Jordânia (1970-1971), encantado na experiência com os fedayin (combatentes-mártires). Encontrou Yasser Arafat, que pediu para ele escrever um livro sobre a revolução palestina e lhe assinou um passe de acesso aos territórios da OLP, xodó que Genet exibia em Paris com garbo e orgulho. Questionado por um palestino sobre quando terminaria o livro, cravou: “quando vocês terminarem sua revolução”. Genet foi um dos primeiros intelectuais europeus a abraçar a causa palestina, na difícil corda bamba e condão-bomba entre “eu e um outro”. A partir de uma filmagem inacabada de 1970 com Jean-Pierre Gorin e o Grupo Dziga Vertov, Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville realizaram o filme-ensaio “Ici et Ailleurs” (1974), imponderável reflexão sobra as posições de cá e lá.  Com a amiga e embaixadora Leila Shahid, Genet chegou à capital do Líbano em 12 de setembro de 1982. Sabia da ameaça aos campos palestinos na periferia de Beirute mas não imaginava a dimensão do horror que haveria. Na manhã de domingo (dia 19), foi a Shatila, fingindo-se jornalista. Primeiro europeu a ver a catástrofe do massacre, vagou por quatro horas em vielas de cadáveres dilacerados – “andei sobre os mortos como quem salta sobre um precipício”. Após dois dias trancado no quarto, rasgou as notas e deu descarga na privada: “se a coisa não ficar na minha cabeça, não merece ser escrita”.


No outubro parisiense de 1982, escreveu “Quatro Horas em Shatila”. Ao contrário da prosa rasa de um informe estrito, o magnífico ensaio é anamnese poética do horror intolerável. Foi publicado no Journal of Palestine Studies número 3, volume 12, na primavera de 1983 – quase três décadas antes do começo da Primavera Árabe. O texto justapõe os tempos de Amã e Beirute, e lhe devolve “o ato de escrever”. Sobre a beleza terrível, justificou à la John Keats: “este texto é belo porque é verdadeiro, e o que é verdadeiro é sempre belo”. No outubro marroquino de 1983, começou “Um Cativo Apaixonado”, que não veria em livro – o câncer na garganta o calou em abril de 1986. O Corvo de Poe diria: Genet, não há bálsamo em Galaad (resina também chamada “bálsamo de Meca”). Diante das provas do livro terminal, quis designar, mallarmaico, os espaços em branco: “só eu posso fazer tal programação gráfica”.


Não-muçulmano, foi sepultado no cemitério cristão-espanhol de Larache, com vista para a prisão e um bordel, típicos tópicos de seu imaginário. A cova foi orientada para Meca. “Três Pedras para Jean Genet” (2014, Frieder Schlaich) filma a jura peregrina de Patti Smith, poeta diva do punk-rock e devota do escritor, para quem compôs a balada “Wing”. Cativo de ruminações mnemônicas, Genet investiga sua amorosa experiência palestina em vertiginosa montagem cinematográfica de conexões inesperadas. No livro digressivo e transgressor, a meditação sobre a escritura é crucial, junto à memória do massacre – Shatila redux.


Uma imagem incomum: o corte de cabelo de Genet sob a luz do crepúsculo, com as mechas brancas ao chão sob o olhar dos fedayin e as estrelas. Uma passagem deslumbrante: “Tentar pensar a revolução é como despertar de um sonho e tentar ver sua lógica. Não há razão para, no meio de uma seca, pensar sobre como cruzar um rio que levou embora a ponte.”


No “textamento”, Genet glosa Dylan Thomas: “a felicidade de minha mão no cabelo de um garoto já conhece outra mão, e se eu morrer essa felicidade continuará”. Ele confia que “a revolução está no desafio de levar integralmente uma vida feliz”. Em 1974, em Tânger, Genet apresentou-se a Mohammed El Katrani (26 anos), seu último amante, não como francês mas como “um fedayn”. Não se sabe o que os fedayin achavam de Genet, que, por seis meses de 1970-1971, dormiu numa barraca com trinta soldados adolescentes. Ele relatou a camaradagem folgazã, o choque e a chacota deles ao dizer-se gay e ateu. Certa vez, um soldado palestino que jamais lera Genet, nem o conhecia, foi indagado sobre o objetivo da revolução: “criar um novo homem”. Tipo? Falou e disse: “Jean Genet”. Genet talvez teria escrito os prefácios dos livros de Ilan Pappe, “A Limpeza Étnica da Palestina” (2006) e “Dez Mitos sobre Israel” (2017). Provavelmente apoiaria as intervenções de Banksy, como a grafitagem em 2005 no muro (8 metros de altura e 700 km de extensão) que Israel começou a erguer há 20 anos (em 2003) para separar a Cisjordânia (o trabalho mostrava uma menina sendo levada para o alto do muro por balões, um trompe l’oeil esburacado no paredão revelando uma praia) e a doação em 2020 do tríptico “Vista para o Mar Mediterrâneo” para um hospital em Belém (o tríptico foi leiloado por 2,2 milhões de libras). Mas Genet não se hospedaria no Walled Off Hotel. O nome, que referencia o muro, parodia o nome do luxuoso Waldorf Astoria Hotel de Nova York. Foi inaugurado por Banksy em 2017, em Belém (perto do muro que separa Cis­jordânia e Israel), com “a pior vista do mundo”. Originais de Banksy decoram suítes de luxo e outros trabalhos seus estão afixados na recepção do hotel e no bar. Aos hóspedes pobres, cabe um quarto com beliches (um enclave tipo albergue nesse hotel boutique). O Walled Off Hotel abriga obras de artistas palestinos e uma exposição permanente sobre a história do conflito entre Israel e Palestina, a ocupação da Cisjordânia e a construção do muro. Alguém já o definiu como “uma fusão única entre ativismo, arte, história, política, turismo e empreendimento social”.


“Estou do lado dos que buscam ter um território, ainda que eu me recuse a ter um”, declarou Genet. Suas duas últimas obras honram uma emergência-urgência coletiva e formam uma poética do libelo palestino. Foram tema de livro (1993, Jérôme Hankins) e filme (1999, Richard Dindo) homônimos: “Genet em Shatila”. Para Said, a Primeira (1987-1993) e a Segunda Intifadas (2000-2005) seriam uma das razões para se querer Genet ainda vivo. Em “Um Cativo Apaixonado”, fala-se do “levante metafísico dos nativos”. Outra razão seria a Primavera Árabe (2010-2012). No Brasil, Genet usaria o boné do MST. A definição de Fernando Pessoa é boa (“gênio é inadaptação ao ambiente”), mas a de Genet é arrebatadora: “o gênio é o rigor no desespero”. Em “Os Biombos” (1961), onde argelinos seriam os futuros palestinos, propõe “uma deflagração poética”. Shatila foi gatilho. Para Genet, poeta maldito e militante do não-reconciliável, a Palestina foi signo de novos “vislumbres de espanto e compreensão”. Horrores de outras ordens teimam em coagular o cotidiano do mundo. Os genocídios dos povos yanomami e palestino chocaram os olhos de soslaio na aurora de 2023. Provavelmente apropriada de Benjamin, uma citação de Godard é pertinente: o apagamento do genocídio faz parte do genocídio. O asserto de Hölderlin no poema póstumo “Pão e Vinho” – “e para que poetas em tempo de pobreza?” – ecoa em Genet: “Não quero ser um intelectual. Sou um poeta. Defender os palestinos se ajusta à minha função como poeta.” Amém, Genet. Salam, Jean.

 

(Publicado originalmente no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 12 de fevereiro de 2023 - Página 10)


 

Carlos Adriano é cineasta. Doutor em Estudo dos Meios e da Produção Mediática pela ECA-USP, fez Pós-Doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP e Pós-Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais na ECA-USP.  Desde 1989, realizou 23 filmes (em película 16mm e 35mm e em vídeo, entre curtas, média e longa metragens), exibidos no MoMA de Nova York e na Tate Modern de Londres, e em festivais nacionais e internacionais (Bologna, Chicago, Havana, Osnabrück, Pesaro, Roterdã, Toronto, entre outros). Realizou “O Materialismo Histórico da Flecha contra o Relógio” (2023), “O que Há em Ti” (2020), “Sem Título # 1: Dance of Leitfossil” (2014), “Santos Dumont Pré-Cineasta?” (2010) e “A Voz e O Vazio: A Vez de Vassourinha” (1998), entre outros filmes.

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