POESIA VOLUME 5 NÚMERO 2
DOMINGO DE PRAIA
Deitado sobre a areia, um
homem aguarda o mar.
Não presume o próprio
deserto porque tem em si
o mar de Sophia.
Sussurra o mar ao seu
ouvido o epílogo da vida.
Dias e horas de rabiscos na
página aberta do diário.
Os banhistas não reparam
a ausência do poeta nem
da poesia. Mais uma vez,
desperdiçam o mar.
ENTREMENTES
No deserto de Wenders, caminha a
urgência de temperança. Os
dentes afiados do
desamparo perscrutam a
dúvida e seu abismo.
O tempo dança passos
impostores. Entrementes a
intimidade das línguas cala a
crueza das dores.
PAIXÃO PELA PAIXÃO
O apaixonado entra no mar
sozinho, cego ao objeto, que,
esquecido entre as pedras, espreita-o.
A onda incita o prazer.
A espuma ameniza o desassossego.
A suposta metade, deitada na pedra,
sucumbe ao calor, enquanto ele
brinca na água como um garoto.
Ao seu coração entusiasta
o espelho cristalino basta.
Imiscível, a paixão prescinde do outro.
ELIOTEMPO
O tempo futuro de Eliot
cinge passado e presente.
Não pressupõe a espera,
esse monstro devorador
das noites e das intuições.
O futuro aprisiona a todos
como se fôssemos ladrões
da hora encarcerada
na caixa de aviamentos.
Que desenho faremos
com a linha obscura
que atravessa as veias do calendário?
Pagaremos para ver a costura
do tempo na malha do nada?
O futuro mostra-se muito caro.
DOMINGO NO PARQUE
A espera já dura semanas
Ela ajeita-se no banco
(as costas não doem mais)
Pisca uma dezena de vezes
sob a luz estroboscópica do sol
Puxa o vestido até os joelhos
Retira da bolsa a foto dos dois
A criança de fralda deixa
esvair-se da mão um punhado de areia
e pega outro punhado
Não espera
Não deixa para depois
ENVELHECENDO
Os buracos no tecido do
toldo de papel de padaria
são os olhos
da tartaruga hipnotizados
pela coreografia do tempo
As janelas estão abertas
A tartaruga com fome de
pão e fé gesticula minimamente
O tempo, porém, não olha para trás
Segue estoico hirto indiferente
I CHING EM 2020
Pelo olho mágico, vejo o teto encostar na cabeça
dos velhos em genuflexão, o cansaço de nada
vingar-se dos jovens que violam as saídas de emergência.
Avizinho-me do sonho e parto, com as três moedas
do I Ching, no ímpeto de desvendar
o hexagrama em tuas costas.
A raposa atravessa a grande água.
Os corpos celestes movimentam-se.
Pelo olho mágico, tu me vês atrás da porta.
O mundo sem sentimento perdoa
nosso inviolável abraço antigo.
As moedas ficaram no poço.
O desejo, comigo.
Noélia Ribeiro é pernambucana, radicada em Brasília. Formada em Letras na Universidade de Brasília (Português e Inglês), a poeta publicou Expectativa (1982), Atarantada (Verbis, 2009), Escalafobética (Vidráguas, 2015) e Espevitada (Penalux, 2017). Tem poemas em antologias, jornais, revistas e revistas eletrônicas. Integra a antologia digital As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira vol. 2, organizada pelo poeta Rubens Jardim. Em 2017, participou da exposição Poesia Agora, na Caixa Cultural (RJ), e recebeu, da Secretaria de Cultura (DF), o Prêmio Igualdade de Gêneros na Cultura. É membra da Associação Nacional de Escritores (DF) e da União Brasileira de Escritores (RJ).
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