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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

Mojubá: poesia, tradição oral e luta no romance poético de Claudio Daniel, por Rita Coitinho



Com o Livro dos Orikis (2015) e, após, com Marabô Obatalá (Poesia para os orixás), publicado em 2020, Cláudio Daniel apresentava ao público sua apropriação do universo poético que chegou ao Brasil junto com os povos africanos escravizados, os orikis, poemas cantados até os dias de hoje nos terreiros de umbanda e candomblé. Na poesia presente nessas duas obras, o poeta circula com desenvoltura pelo universo mítico afro-brasileiro, a partir do qual constrói o texto. Mas o mergulho de Cláudio Daniel na cultura afro-brasileira não se esgotou aí: eis que chega ao leitor de língua portuguesa o romance Mojubá. A obra, lançada simultaneamente no Brasil e em Portugal, tem pouco mais de cento e quarenta páginas e recebeu excelente tratamento editorial da editora Kotter.


O narrador é João Mojubá. Personagem-observador, ele está à espera a volta de seu mano e sua mina, Jerônimo e Bárbara, casal que deixou a Bahia por São Paulo em razão dos desentendimentos entre o primeiro e seu irmão, Jorge, de quem Jerônimo arrebatou a namorada, causando uma violenta briga. João Mojubá tem saudades do amigo Jerônimo, que se foi com Bárbara, a menina-tempestade. Vivendo em situação de rua, numa caixa em uma esquina soteropolitana, João se põe a contar os acontecimentos vinculados à vida dos amigos, em fluxo contínuo de memória, tendo por interlocutor alguém que não é identificado, à maneira de Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas.

Mojubá, palavra iorubá, é saudação a Exu. Ele é o orixá mensageiro, aquele que traz do Orum o recado dos deuses. No romance é João Mojubá quem traz a mensagem, tal qual Exu. Assim como o orixá, João Mojubá, o mensageiro, gostava de pregar peças, espalhar confusão. Sobre ele mesmo, conta que uma vez usou um chapéu de duas cores apenas pela diversão de ver se desentenderem os vizinhos sobre a cor que tinha posta. Mas é fiel aos amigos, por eles espera, acredita em seu retorno. E vai contando as histórias, que ao fim e ao cabo não são somente acerca de Jerônimo e de Bárbara, mas também sobre os outros irmãos de Jerônimo e sobre Conceição, que era namorada de Jorge, irmão de Jerônimo. Conceição deixou de Jorge para ir-se com Jerônimo, sendo depois deixada por ele, que algum tempo depois se enamorou de Bárbara, que era a nova namorada do irmão.

Os personagens são descritos com as características arquetípicas dos orixás. Cada um que é apresentado por João Mojubá é identificado pelos elementos da natureza, pelas cores e pelos traços de personalidade atribuídos às divindades. Conceição é mulher-água-do-rio, veste amarelo como Oxum e como ela dança lindamente. Jorge, irmão de Jerônimo, é o ferreiro, rapaz distraído dos amores e compenetrado no trabalho. Ele é de Ogum, o orixá dos metais, que conhece a sua arte e a pratica com maestria. Mas Jorge ofendido fica em pé de guerra, se torna furioso, vingativo, não conhece o perdão. Ferido pelas desilusões amorosas, peregrina pela Bahia e depois vai passar algum um tempo com seu outro irmão, Tião, o agrônomo estudioso que vive na casa-azul-turquesa, em um sítio agroecológico, com a mãe Janaína. Jorge se modifica nesse tempo e passa de homem discreto, concentrado no trabalho, a protagonista de uma iniciativa de resistência política. A história também nos dá a conhecer um pouco sobre Tião, o lavrador, o homem das matas, que tem em Oxóssi seu orixá. Tião, o irmão mais moço, tem o dom da palavra, fala da agroecologia nas escolas, coleciona a antipatia dos poderosos. Mas retira-se para viver um caso de amor que traz tristeza para a mãe, Janaína, mulher do mar. Sabemos também a história de Lazinho, o mano das palhas, arquétipo de Omolu, o orixá das doenças de pele. O filho adotivo de dona Janaína tinha a vida marcada, na pele e na alma, pela varíola. Lazinho tornou-se médico do povo, homem de hábitos simples e senso de justiça.

Jerônimo, o pivô da história, o amigo por quem João Mojubá aguarda, é homem-de-fogo, moleque-trovoada. É negro-vermelho, arquétipo de Xangô, rei-guerreiro, aquele que não mede esforços para conquistar outros terrenos, que não teme uma luta, mas que não tolera as injustiças. Com ele está Bárbara, mulher-ventania, em quem reconhecemos as características arquetípicas de Iansã. Bárbara é uma mulher de beleza arrasadora, sensual, explosão de cores. É mulher de lutas e vinculada às artes. Seu envolvimento com os dois irmãos é a razão da briga e da mudança dela e de Jerônimo para São Paulo.


O tempo da história é o nosso tempo. Época de mudanças bruscas e violência política, de mal-estar generalizado, em que as aflições do inferno estão soltas nesse país-tristeza. Os fatos particulares da vida de cada uma das personagens estão imiscuídos aos acontecimentos reais do Brasil contemporâneo. A fala do narrador é cheia de curvas, recuos e avanços, típica dos processos da memória. Ele sabe, no entanto, aonde vai com o relato e não raro reivindica a atenção do interlocutor, interpela-o, faz trocadilhos e observações que mesclam a tradição oral do povo baiano, suas máximas, na forma de “ditados populares” e uma prosa poética, onde a invenção está a serviço da imagem, como na passagem em que João Mojubá fala de Janaína: “enquanto a lua luar, ela rezará suas rezas, enquanto o azul azular, ela estará à espera dos filhos”. A prosa, entrecortada em certos momentos por poemas e relatos que resgatam a tradição oral iorubá, segue o percurso no qual os destinos dos irmãos se entrecruzam e se afastam, articulados aos acontecimentos do Brasil contemporâneo.

A prosa poética de Cláudio Daniel é carregada de sensualidade, ritmo e imagens, a ponto de termos a sensação de que certas passagens do romance têm cores. À maneira de autores de vanguarda, que buscaram romper os limites entre os gêneros literários, buscando incorporar à poesia “elementos de linguagem prosaica e convencional” (como escreveu Haroldo de Campos[1]), Cláudio Daniel incorpora as formas poéticas à prosa, recusando os limites costumeiramente adotados pelo gênero literário. À escrita de invenção combina-se o olhar sensível do analista político, de modo a traçar com arguto senso do real a imagem do ambiente político brasileiro de nossos dias. Aqui, Mojubá se apresenta como material histórico e sociológico para aqueles que buscarão explicar o Brasil de nossa época no futuro.

Em Mojubá, o real e o imaginado compõem o cenário onde se desenrolam os dramas particulares das personagens, tão genuinamente brasileiros quanto qualquer um de nós. É o choque do real que opera a transformação de Jorge, assim que tem notícias e passa a sofrer como se fosse a ele dirigida a violência contra pessoas queridas em um conflito em áreas tradicionais quilombolas na Bahia. Lazinho sofre também a dor dos excluídos, ao lado dos quais se coloca, como médico do povo, formado em Cuba. Conceição e Jorge, em Salvador, tornam-se porta-vozes dos agredidos, dos humilhados, dos perseguidos e sofrem as consequências da insanidade política que se alastra no país. Jerônimo, que é advogado, conhece Bárbara quando ambos ainda eram estudantes, no contexto de uma luta por direitos culturais do povo baiano, negados pelas autoridades que se colocam ao lado dos interesses da indústria da construção civil e do turismo. Indo viver em São Paulo, para evitar uma nova briga com Jorge, o casal Jerônimo e Bárbara se encontrará com as culturas imigrantes que habitam a grande metrópole, adotará um estilo de vida cosmopolita, ao mesmo tempo em que se enfrentam com as iniquidades do sistema. Ali, a luta pela reforma urbana se desenvolve no seio dos movimentos por moradia, ao lado dos quais Jerônimo se coloca e em razão do que será selado o seu destino. De João Mojubá não sabemos, ele não explica como chegou à situação em que se encontra. Mas ele sabe de cada um dos filhos de Janaína, conhece suas dores e encadeia essas histórias em uma, a do seu mano Jerônimo, o moleque-trovoada, que não voltou ainda, mas que há de voltar. Até lá, aguarda naquela esquina, naquele caixote, com os poucos farrapos que lhe restaram. Duvida? O senhor escreva. Ele é João Mojubá, ele sabe o que diz.




Rita Coitinho é socióloga, escritora e tradutora. É mestra em Sociologia (UnB) e doutora em Geografia (UFSC). Escreve mais frequentemente sobre relações internacionais, América Latina e pensamento social brasileiro e latino-americano. Autora de artigos, ensaios, capítulos de livros, contos e do livro Entre duas Américas: EUA ou América Latina? Publicado pela Editora Insular, 2019.

[1] Ver “A questão da ruptura dos gêneros na literatura latino-americana: o caso Cruz e Sousa”, de Cláudio Daniel. Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/251/213

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