ENSAIO VOLUME 5 NÚMERO 1
por Claudio Daniel
RESUMO: Sophia de Mello Breyner Andresen, considerada uma das maiores poetas de língua portuguesa do século XX, que recebeu o Prêmio Camões em 1999, é conhecida por seus poemas que falam sobre a natureza, o mar, as memórias da infância, a antiguidade grega e romana, o amor, o erotismo, a oposição à ditadura salazarista e o louvor à Revolução dos Cravos – ela assumiu uma cadeira parlamentar pelo Partido Socialista português. Uma faceta menos conhecida de sua poesia é a presença da cultura japonesa, tema do presente artigo, por ocasião do centenário de seu nascimento.
PALAVRAS-CHAVE: poesia portuguesa, Período Namban, ironia, sátira, concisão, visualidade, montagem, Sophia de Mello Breyner Andresen.
Um dos períodos mais fascinantes da história japonesa, a partir da segunda metade do século XVI, é o chamado Período Namban, em que aconteceram intensas atividades comerciais entre Japão e Portugal. Os “navios negros”, como os japoneses chamavam os barcos portugueses, traziam vinho, armas, pólvora, especiarias, tecidos, e compravam prata, cerâmica, porcelana e outros produtos das ilhas japonesas. O intercâmbio comercial era acompanhado pela atividade missionária dos jesuítas portugueses e pelas trocas artísticas e culturais entre os dois países. Nesse período, os japoneses assimilaram diversas técnicas de pintura europeias. Segundo Armando Martins Janeira, em seu livro O impacto português sobre a civilização japonesa (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988), em meados do século XVIII, “a pintura holandesa exerceu grande influência, sobretudo no emprego da perspectiva, da divisão da luz e da sombra, sobre a escola do Ukyioe, escola que preferia as figuras e assuntos populares, os temas dos teatros, dos artífices, dos bairros do prazer das grandes cidades”. O autor comenta ainda que “o estímulo da pintura europeia ia fazendo um número crescente de pintores japoneses, que procuravam a síntese entre as técnicas e os valores europeus e os tradicionais”. Apesar de todo esse rico intercâmbio, o choque cultural era inevitável: os portugueses viam os filhos do Império do Sol Nascente como “pagãos” que precisavam ser convertidos ao cristianismo, enquanto os japoneses viam os portugueses de um modo quase caricatural, conforme lemos na obra Teppo-ki, ou “Crônica da espingarda”, que traz uma curiosa descrição dos lusitanos, de acordo com a ótica nipônica: “Estes homens, bárbaros do Sul, são comerciantes. Compreendem até certo ponto a distinção entre superior e inferior, mas não sei se existe entre eles um sistema próprio de etiqueta. Bebem um copo sem o oferecerem aos outros; comem com os dedos, e não com pauzinhos como nós. Mostram os seus sentimentos sem nenhum rebuço. Não compreendem o significado dos caracteres escritos. São gente que passa a vida errando de aqui para além, sem morada certa, e trocam as coisas que possuem pelas que não têm, mas no fundo são gente que não faz mal”.
Essa visão histriônica comparece inclusive nos famosos biombos japoneses, utilizados para separar os cômodos de uma casa, que eram construídos em madeira ou bambu, com dobradiças, e decorados com pinturas, geralmente de paisagens. Nos biombos do Período Namban, segundo Armando Martins Janeira, “o tema favorito é a chegada dos portugueses ao Japão”, em que eles são retratados, de forma satírica, com “narizes enormes, largos chapéus e largas calças apertadas nos tornozelos, chamadas ‘bombachas’”. Sobre a rica arte dos biombos japoneses, a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu um poema, incluído em seu livro Ilhas, publicado em 1989:
OS BIOMBOS NAMBAN
Os biombos Namban contam
A história alegre das navegações
Pasmo de povos de repente
Frente a frente
Alvoroço de quem vê
O tão longe tão de pé
Laca e leque
Kimono camélia
Perfeição esmero
E o sabor de tempero
Cerimónias mesuras
Nipónicas finuras
Malícia perante
Narigudas figuras
Inchados calções
Enquanto no alto
Das mastreações
Fazem pinos dão saltos
Os ágeis acrobatas
das navegações
Dançam de alegria
Porque o mundo encontrado
É muito mais belo
Do que o imaginado
O poema, dividido em estrofes com número diferente de versos, sem métrica e uso livre das rimas, apresenta uma concisa e fragmentária narrativa em versos, na qual encontramos o contraponto entre referências ocidentais e orientais, usando figuras como a metonímia (“Laca e leque / kimono e camélia”), e deliciosas caricaturas verbais, que mostram os portugueses vistos pela sarcástica ótica nipônica (“Narigudas figuras”, “Inchados calções”). Sophia, nessa composição, deixa de lado o seu habitual tom lírico, quase solene, para realizar uma bem-humorada pintura em palavras. O elemento teatral-circense, nas linhas finais (“Os ágeis acrobatas / das navegações”) sugere alusão às pantomimas dramáticas realizadas nas cortes japonesas, muitas vezes com a presença de comerciantes e missionários lusitanos, em que era encenada, de forma cômica, a chegada dos portugueses ao Japão e os rudes costumes demonstrados pelos “bárbaros do sul”, conforme referido pelo autor quinhentista Fernão Mendes Pinto, um dos primeiros europeus a visitar o Japão em sua obra Peregrinação, comentada por Wenceslau de Moraes, escritor, militar e estudioso da cultura japonesa, em seu livro Fernão Mendes Pinto no Japão (Lisboa: VEGA, 1993): “Pode bem imaginar-se a ironia sarcástica, explodindo em girândolas de riso, daquele nobre dáimio, de sua esposa, de sua filha, de todas as damas da sua corte, ao poisarem os olhares naqueles cinco brutamontes, naqueles tremendíssimos alarves, educados na rude boémia das viagens e no convívio íntimo dos povos menos cultos, atirados ali sobre as esteiras, comendo com as mãos, como os macacos, os finos acepipes, que os japoneses levam à boca entre as pontas de duas varinhas de marfim!...”
A convivência entre os portugueses e as autoridades nipônicas, porém, durou pouco tempo. Segundo a pesquisadora Daniela de Carvalho, no artigo Nambanjin: sobre os portugueses no Japão, “os comerciantes eram de fato bem recebidos, mas o mesmo não se passava com os missionários”. Os japoneses tinham interesse especialmente no comércio com Portugal, que facilitava a importação de artigos chineses e novidades europeias para as casas aristocráticas, o que por si só não significava receptividade à conversão ao catolicismo. “Compreendendo isto”, prossegue a autora, “os missionários resolveram explorar o interesse pelo comércio para evangelizar os japoneses”. Deste modo, “comerciantes e missionários completavam-se nas suas atividades”. O elevado número de japoneses convertidos – cerca de 350 mil, em 1590 --, a participação dos novos cristãos em protestos contra os impostos feudais e a suspeita de que a atividade missionária era utilizada pelo império português para conquistar o Japão, porém, levaram o xogum (ditador militar) Tokugawa, no início do século XVII, a expulsar os europeus do país, proibir a atividade missionária e restringir o comércio ao porto de Nagasaki, iniciando assim uma longa era de fechamento do Japão, que durou até 1867, quando o Comodoro Perry, à frente de uma esquadra de guerra norte-americana, obrigou o Japão a abrir seus portos para o Ocidente, sob a ameaça de guerra. Mas isto já é uma outra história.
Claudio Daniel é o nome literário de Claudio Alexandre de Barros Teixeira, mestre e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).
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