Por Claudio Daniel
Henri Michaux por Albert Harlingue
A expressão “poetas malditos” ficou conhecida graças a Paul Verlaine, que publicou a antologia Les poètes maudits em 1883. Esta coletânea reunia autores identificados com a estética simbolista francesa da segunda metade do século XIX, como Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Estes poetas eram singulares por sua escrita enigmática, imaginativa, sensorial, e também pelo seu comportamento – alguns eram alcoólatras, como Verlaine, homoafetivos, como Rimbaud, ou fizeram uso de entorpecentes, como Baudelaire. Todos eles estavam à margem de uma sociedade regida pelos princípios morais do cristianismo e pela ordem capitalista, baseada na rígida divisão da sociedade em classes, na exploração do trabalho, na família patriarcal, em um nacionalismo conservador, militarista, no puritanismo sexual e de costumes. Por essa razão, muitos poetas e escritores franceses foram censurados, presos, sofreram processos judiciais ou morreram, ainda jovens, vítimas de tuberculose, em situação material precária – Jules Laforgue faleceu aos 27 anos, e Tristan Corbière, aos 29 anos.
A rebelião romântica e simbolista do século XIX, que teve sua expressão máxima no satanismo literário de Lautréamont, teve continuidade nas primeiras décadas do século XX, graças a poetas como Antonin Artaud e Henri Michaux, igualmente fascinados pelo exotismo de antigas civilizações, distantes da europeia, como a africana, a caribenha e a asiática, pelas antigas religiões anteriores ao cristianismo, pela magia, pelo erotismo e pelo uso de alucinógenos, como a mescalina e o LSD, para se atingir “estados alterados de consciência” e conhecer outras dimensões da realidade. De todos os poetas do período, muitos deles alinhados ao grupo surrealista francês, liderado por André Breton, poucos foram tão radicais na expressão poética e na rebelião comportamental quanto Henri Michaux.
Nascido na Bélgica, em 1899, em uma família católica de classe média, Henri Michaux estudou em um colégio jesuíta em Bruxelas, com a intenção de ordenar-se sacerdote – projeto que encontrou resistência em seu pai, um advogado bem-sucedido. O jovem Michaux inicia então estudos de medicina, mas logo abandona a universidade e viaja pela América do Sul, como foguista em um navio da marinha mercante francesa. Por essa época, escreve os seus primeiros poemas e textos em prosa, impactado pela leitura dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e colabora em revistas literárias como Le disque vert e Nouvelle Révue Françoise. Entre 1923-27, publica os seus primeiros livros – Les reves et la jambe (Os sonhos e a perna) e Qui je fus (Quem eu era). Com a oposição da família ao seu estilo de vida, o poeta imigra da Bélgica para a França, estabelecendo-se em Paris, onde trabalha como professor e secretário, estuda ocultismo e inicia o seu trabalho como artista plástico, que os críticos associam ao tachismo, também chamado de expressionismo abstrato, pelo uso de traços densos e sugestivamente gestuais que incorporam elementos de caligrafia chinesa e japonesa.
O fascínio de Michaux pelo Oriente levou-o a visitar a Índia, a China e o Japão, entre 1930 e 1931, onde ele se encantou com a filosofia budista e as artes visuais asiáticas, que inspiraram muitos de seus poemas e desenhos, e sobretudo o livro Um bárbaro na Ásia, que reúne relatos de viagens a esses países. O poeta também viajou para a África e para o continente americano, visitou o Equador e o Brasil, onde residiu por dois anos, embora as informações sobre a sua estadia em nosso país sejam escassas. Em 1937, edita a revista esotérica Hermès e no mesmo ano inicia sua primeira exposição individual. Na década de 1940, Michaux já tem fama literária, é reconhecido por André Gide e outros escritores e intelectuais franceses e inicia amizade com o poeta e crítico literário mexicano Octavio Paz, a quem ofereceu uma antologia de poemas do autor indiano Kabir, quando Paz, que era diplomata, foi transferido para a Índia. Com a invasão da França pela Alemanha, Michaux foge para o sul do país, para escapar ao exército nazista.
Após a guerra, publicou Encore de nous deux, em que relata sua convivência amorosa com Marie Louise Ferdiere, com quem casou em 1943 e que morreria, vítima de um incêndio, cinco anos depois. Após a morte da mulher, que ateou fogo na própria camisola, por acidente ou suicídio, o poeta se concentra na pintura e nos relatos de suas experiências com as drogas – aos 56 anos de idade, começou a usar mescalina, substância que altera a percepção do tempo e cria alucinações visuais. Já na década de 1960, Michaux dirige um filme sobre o haxixe e a mescalina, apresentado na Salle de Géographie para um auditório repleto. Michaux foi selecionado para receber o Grande Prémio de Letras francês – ele recebeu a cidadania francesa dez anos antes – mas recusou-se a receber a premiação. O poeta faleceu em 1984, com 85 anos de idade.
Sua obra, volumosa, reúne livros de poesia, romances, crítica de arte, cartas, aforismos e relatos de viagens, além dos textos de suas experiências com alucinógenos, inclusive o LSD, como Milagre miserável, O infinito turbulento, As provações principais da mente e os incontáveis menores, estes últimos acompanhados de caligrafias do próprio poeta. Conforme escreveu Octavio Paz: “Sua prosa, seus poemas e seus esboços estão intimamente relacionados, pois cada meio de expressão reforça e ilumina os outros. Os esboços não são simplesmente ilustrações dos textos”. Octavio Paz escreveu o prefácio de uma tradução de Milagre miserável para o inglês, publicada pela New York Review Books, e neste texto o autor mexicano afirma: “A pintura de Michaux nunca foi um mero complemento de sua poesia: os dois são ao mesmo tempo mundos autônomos e complementares. No caso da ‘experiência da mescalina’, as linhas e palavras formam um todo quase impossível de decompor em seus elementos componentes. Formas, ideias e sensações se entrelaçam como se fossem uma única entidade em proliferação estonteante. Em certo sentido, os esboços, longe de serem ilustrações da palavra escrita, são uma espécie de comentário. O ritmo e o movimento das linhas trazem à mente uma espécie de notação musical curiosa, exceto que somos confrontados não com um método de registro de sons, mas com vórtices, cortes, entrelaçamentos do ser. Incisões na casca do tempo, a meio caminho entre o ideograma e o signo mágico, caracteres e formas ‘mais palpáveis do que legíveis’, esses esboços são uma crítica à escrita poética e pictórica, ou seja, um passo além do signo e da imagem, algo que transcende palavras e linhas. Pintura e poesia são linguagens que Michaux usa para tentar expressar algo realmente inexprimível. Poeta primeiro, ele começou a pintar quando percebeu que esse novo meio poderia capacitá-lo a dizer o que achava impossível dizer em sua poesia. Mas é uma questão de expressão? Talvez Michaux nunca tenha tentado expressar nada. Todos os seus esforços foram direcionados para atingir aquela zona, por definição indescritível e incomunicável, na qual os significados desaparecem. Um centro ao mesmo tempo completamente vazio e completamente cheio, um vácuo total e uma plenitude total. A obra de Michaux - seus poemas, suas viagens reais e imaginárias, sua pintura - é uma expedição serpenteando em direção a alguns de nossos infinitos - os mais secretos, os mais temerosos e às vezes os mais zombeteiros”.
Um poema que pode ilustrar o que Octavio Paz afirma sobre a escrita poética de Michaux – sua vocação para o indescritível e o incomunicável – é Iniji, que leremos a seguir, na tradução de Herberto Helder:
INIJI
Não pode mais, Iniji
Esfinges, esferas, falsos signos,
obstáculos no caminho de Iniji
Movem-se margens
Fundações afundam-se
Mundo. Não mundo
só o amálgama
As pedras já não sabem ser pedras
Entre todos os leitos da terra
onde está o leito de Iniji?
Menina
pá pequena
Iniji não pode fazer força
Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpo
um corpo já não tem imaginação
não tem paciência com nenhum outro corpo
Fluidos, fluidos
tudo o que passa
passa sem parar
passa
Ariadne mais fina que o seu fio
não consegue reencontrar-se
Vento
sopra vento em Arraô
vento
Ananoá Iniji
Anâã Animá Iniji
Orrenaniâã Iniji
e Iniji inanimada
Sai meio corpo
meio corpo morto
Ananejá Iniji
Anajetá Iniji
Anamajetá Iniji
A bilha não entorna a ciência
O fogo não derrama o leite
A chave,
onde está a chave?
Os insectos passam-na uns aos outros
As vassouras varrem-na
Tu sim, tu; mas eu não tem
Eva sou eu
orfã da ideia
saída, portas fechadas
Já não agarra, Iniji
Iniji fala com palavras
que não são as suas palavras
Djã
Djã Djã
Djã dã dã
que tornam Iniji inânime
sem regresso nos carris de Irritilili
Quantos vespões no verão da sua cabeça
Não te detenhas nele, Iniji
Se tu vais Njeu
Njá vá dá
Se tu não njá
njarrá rá vais
Reboques
que a rebocam
que ela reboca
Aonde regressar?
Foi-se o coração do quarto
Repetição sempre repetida
Oh Dormir, dormir numa ânfora
Paralisia nas águas
Paralisia nos campos
Sofre-se aqui a suprema fealdade
o ataque das agulhas voadoras
O avesso do perfume, não sabem, eles
O raio não é feito para cabeças de crianças
mas está lá
recreando-se, para ele, para nada, para criar um trovão
As montanhas de Niniji estão condenadas
Recôncavos, depressões, poços
Segundo o mundo, os males
Fechou-se a porta das viagens
no túmulo jaz Iniji
Misturados ao insalubre dos fundos
contrários caracteres ficaram nela,
o torturante do fogo junto ao monótono da água
junto ao inconsistente, ao imperceptível do ar.
E sempre
o corpo sem vida como a rotação da mó
Lá onde não exite nenhuma clareira
nascentes, oferendas
os infindáveis bordados da teia da aranha invisível
tecem árvores com os meus pensamentos
não posso fazer nada
Somente as amarguras grandes
somente a contínua continuação
As escalas devoram a melodia
debaixo do tecto, o telhado
debaixo do soalho, o leito
na estopa os sinos
Uma salamandra devorou o meu fogo…
Este coração já não se entende com os corações este coração
não reconhece ninguém na turba dos corações
Corações cheios de gritos, de ruídos,
de bandeiras
este coração não é desenvolto com estes corações
este coração esconde-se destes corações
este coração não se compraz com estes corações.
Oh cortinas, cortinas e ninguém vê Iniji
Stella, Stella constelada
já te não levantas para mim, Aurora
Tão pesados
tão pesados
tão taciturnos seus monumentos
tão impérios, tão quadriláteros
tão esmagadores bárbaros, tão vociferantes,
e nós tão nenúfar
tão espiga ao vento
tão longe do cortejo
tão mal na cerimónia
tão pouco da nossa idade e tanto a passear
tão farinha
tão peneirada
e sempre na peneira
asas de morcego
batendo sempre contra a cara
Bifurcações
e desuniu-se o uno
liames ligam lugares Lorenzo
O cisne erguido ao rés das águas não disse «minha filha»
Porque os gelos
porque a fuga dos espíritos
aconteceu
Quem agora há-de aportar à ilha?
As formas fogem em farrapos
mergulham, alongam-se, deformam-se
luas nos bordos de uma nuvem negra.
Tiram-se as luvas cheias de sangue
tira-se a camisa cheia de sangue
ah lasciate
lasciate
Silêncio
silêncio
Deixai-me nadar pelas paredes fora
Ouço murmúrios que me chamam
É ele. É o momento.
Enfim!
Espelhos recolhem-nos
Espelhos trocam-nos
a perdida deste mundo, a morte do outro mundo
Deixai-nos
Rorraá Roá Roarrá Rorrâã
Hoarre hoâã
Tornou-se depois tudo tão duro
tão detestável
velha mão nodosa
sobre um rosto de têmporas raiadas de veias
Outrora,
outrora
o rio de júbilo não tinha o leito ressequido
Iniji não vivia ainda atrás das portas de chumbo
Não acontecera ainda.
Vida, extremidade de um galho…
Ah o terrível, o trémulo que tão fácil dissipa o universo inteiro
Estes esgares à minha roda
sempre, sempre
que desejam eles?
Papéis sempre sempre redistribuídos
perdizes, folhas, loucas
Vapor
apenas vapor
pode acaso o vapor voltar a ser migração?
o fio passa
repassa
fio sem fim a fiar-se
casulo que me enclausura
Ah! O Juízo
sofrida sentença semelhante à síncope
vagas fustigantes
dedos aduncos
tudo são tormentos para a órfã
Iniji hóspeda efémera das covas,
pais, pinças, palavras
Eis a estrada longínqua que não vem de volta.
Dorme o seio de onde jorrou o leite.
Apagou-se o contorno… e a opala…
Ficou a sombra só o suspiro dos lábios
Vem, vem, vento de Aúrraú
tu, vem!
Tradução: Herberto Helder, in As magias (Lisboa: Hiena Editora, 1987)
Este poema, articulado em torno de uma palavra enigmática, de sentido desconhecido – Iniji – rompe com o discurso lógico-cartesiano, com o princípio da causalidade, com o discurso sintático, fraturado pelo uso da elipse e da parataxe e é todo desenvolvido a partir de associações de imagens e sensações, com ênfase na construção sonora, de efeito hipnótico, quase mântrico, reforçado pela incorporação de sons abstratos, que se assemelham a palavras mágicas de feitiços e encantamentos de antigas civilizações. A relação entre a poesia de Michaux e a magia, aliás, é o tema de um ensaio de Maurice Blanchot, intitulado A experiência mágica de Henri Michaux, em que o crítico literário francês: “A palavra magia é frequente na obra de Henri Michaux. Ele chamou uma de suas coletâneas de No país da magia, e várias de suas páginas também levam este nome. Mas se toda uma parte de sua obra aparece como o esforço de uma consciência mágica, como o engendramento de uma realidade mágica, é preciso imediatamente notar que o termo por ele empregado não tem o sentido vago, gasto, com o qual o uso habitualmente se contenta. Magia é coisa diferente de um poder de encantamento, e põe à disposição do homem recursos extraordinários.”
“ ‘Escrevo como posso [diz Michaux] Escrevo com arrebatamento e para mim...’ Uma grande parte de sua obra é marcada por essa presença de uma emoção violenta. A fúria lhe dá sua forma de perpétua agressão, de luta ardilosa e impulsiva. (...) O que a fúria construiu, a angústia ou o medo destrói. A construção é vertiginosa, instantânea, uma espécie de catarata, um acesso tão poderoso que num momento triunfa sobre a nulidade de seus próprios meios. (...) Mas a angústia desfaz lentamente, pacientemente, arruína por antecipação, anula, antes que ele venha a existir, o edifício da espontaneidade e da tempestade. Ela é a noite dos estorvos, projeta indefinidamente a desordem e o desequilíbrio. Tudo está sempre por ser refeito, tudo desaparece, e a própria morte, como na visão hindu, não passa da promessa de um recomeço sem termo. (...) “É por ser o produto direto da emoção que o mundo de Michaux é um mundo mágico. Na emoção, tentamos abrir para nós um caminho para um mundo que não seja mais regulado por relações razoáveis e inteiramente determinadas, mas pela magia. A fúria, por exemplo, é um comportamento mágico que tende a abater com um só golpe um ser ou um objeto que não temos tempo de combater realmente. O mundo real é difícil demais, lento demais. A fúria não quer esperar, não tem a paciência de seguir as vias sinuosas que a ela se oferecem para uma ação verdadeira. Ela apagará, portanto, todos os dados práticos, e substituirá a ação concreta da vingança por uma ação simbólica, uma ação mágica por gestos, ameaças, palavras nas quais, fora do tempo, ela se realizará em todo o furor de seu desejo. Assim começam para o homem novas relações com o mundo. Mas é apenas um começo. Pois assim que as coisas perdem sua estrutura racional e definida, elas se apoderam da consciência que as suscitou e forçam-na a uma catividade extenuante. A fúria, para se desembaraçar do mundo odioso que a afronta, se precipita num mundo de embaraços que ela jamais consegue superar. (...) Terríveis são os objetos de Michaux, de uma potência de agressão sem igual, de uma ferocidade maldosa inesgotável. Pois ele próprio, por sua fúria, os constituiu em um mundo de hostilidade, em uma muralha, sempre a ruir e sempre a renascer, de ferocidade e de malícia. E não se trata de uma projeção imaginária. O mundo da emoção é exatamente assim, retraindo-se sobre a consciência, engolindo-a pouco a pouco, encerrando-a em si mesma, dando-lhe a certeza de que ela está para sempre cativa e que, assim prisioneira, só pode justamente recorrer, para defender-se, a meios encantatórios, a meios que a libertam momentaneamente mas que ao mesmo tempo a afundam ainda mais, fazendo com que fique intimamente solidária do mundo mágico de que ela pretende alforriar-se ao tornar-se cada vez mais magia. (...) O mundo de Michaux é a um só tempo espontaneidade imprevisível e inércia infinita. Espontaneidade e passividade são as duas características do mundo mágico. A consciência perdeu-se entre as coisas. Ela própria tornou-se uma coisa. Não tem mais limites nem formas. Tende ainda a uma certa finalidade, mas realiza-a por meios absolutos. Ao mesmo tempo, tudo é possível: é a ilusão do ser interior que realiza tudo o que imagina - e nada é possível pois, tomado na espessura da matéria, o espírito nada mais é senão paciência petrificada, indiferença ao abismo, massa viscosa que não cresce mais.”. (...) “Se as intervenções de Henri Michaux nos parecem tão próximas e interessam nossa sorte, mesmo quando nada de nós está aparentemente envolvido, é primeiramente porque simbolizam esta condição geral de nosso destino que só pode encontrar um sentido por meio do esforço para escapar desse sentido e até mesmo de todo sentido possível - de maneira que a gratuidade de suas fábulas e de sua linguagem é o que mais nos importa. Porém, ao mesmo tempo, essa gratuidade, essa objetividade sem ressonância, essa placidez surda e cega faz parte de um movimento que, em sua outra extremidade, é potência de fúria e tempestade, ansiedade e desespero, emoção infinita.”
Como Henri Michaux pensava o trabalho criativo do poeta e a própria poesia? Em uma conferência pronunciada em 1936 em Buenos Aires, no XIV Congresso Internacional dos Pen Clubes, intitulada “A verdadeira poesia faz-se contra a poesia”, o poeta belga de língua francesa nos apresenta ao seu pensamento poético, em que encontramos ecos das ideias de Edgar Allan Poe e dos simbolistas franceses, e em especial Rimbaud e sua teoria do poeta-vidente, ao mesmo tempo que se afasta da ideia de engajamento político da arte, tal como praticado por alguns de seus contemporâneos, como Paul Éluard e Louis Aragon. Vamos ler agora trechos dessa conferência, traduzidos pelo autor português Rui Caeiro: “O poeta não é uma excelente pessoa que prepara cozinhados perfeitos para o gênero humano. O poeta não é uma pessoa que medita nessa preparação, que a segue com atenção e rigor para em seguida entregar ao consumo o produto acabado, com vista ao maior bem-estar de todos. O poeta não se entrega a essa operação e, mesmo que o quisesse, seriam magros os resultados. A boa poesia é rara em regime de patronato, tal como nas salas de reuniões políticas. Se alguém se torna fogosamente comunista, não resulta daí que o poeta que em si há, que as suas profundidades poéticas, sejam atingidas. Exemplo: Paul Éluard; marxista encarniçado, mas cujos poemas são aquilo que sabeis, de sonho, e do gênero mais delicado. Temos um exemplo análogo num poeta fascista de verbo extremamente violento, que se manifesta apaixonadamente e quase exclusivamente animado pela grandeza de seu país, cujos poemas, no entanto, ficaram intactos, belos e iguais, de acordo com um clima interior eminentemente sereno e clássico e sempre fora do domínio da política. Terceiro exemplo, um homem que em tempos foi um burguês descontente, e grande poeta. Depois de Louis Aragon se tornar militante comunista, devotado como ninguém à causa, mas medíocre poeta, os seus poemas de combate perderam toda a qualidade poética. Pouco importam, aliás, estes exemplos a que outros se poderiam opor, onde o talento poético seria sem dúvida discutível. Há muito que o fenómeno de que falo surpreendeu toda a gente e, em primeiro lugar, os poetas. (...) Não, o poeta não faz passar para a poesia aquilo que quer. Não é uma questão de vontade, nem de boa vontade. O poeta não é senhor de si próprio.
Identicamente, não está de forma alguma dentro das nossas possibilidades fazer entrar a realidade no sonho, nem o dia na noite. Não basta observar cavalos durante o dia para infalivelmente sonhar com eles à noite, não basta propormo-nos muito obstinadamente contemplá-los em sonho para aí os ver aparecer. Não há processo seguro de provocar a aparição de seres em sonho. Para isso não basta a vontade, nem a inteligência. Assim acontece, em menor grau, com a Poesia de inspiração.
Misteriosamente, determinado problema social, politico, que emociona e interessa o homem na prosa da existência, se assim posso dizer, perde, uma vez chegado à zona das ideias poéticas, todo o dom de perturbação, toda a vida, toda a emoção, todo o valor humano. O problema aí não circula, já não vive, ou não chegou a descer até essas profundidades. Em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de uma gota de água que cai em terra e comunicar esse estremecimento, do que expor o melhor programa de entreajuda social. Essa gota de água provocará no leitor mais espiritualidade do que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade do que todas as estrofes humanitárias. É isso a transfiguração poética.
O poeta mostra a sua humanidade por vias próprias, que frequentemente são inumanidade (aparente e momentânea, esta). Mesmo anti-social ou a-social, ele pode ser social. Para evitar a contradição relativamente a nomes atuais, prefiro escolher o exemplo de um artista criador, de um género muito menos puro que a Poesia, mas em relação ao qual há unanimidade de simpatia: Charles Chaplin. Criou um tipo de vagabundo, chamado Carlitos, nitidamente imoral. Pontapés, rasteiras aos polícias sempre que os encontra; escarnece de todas as autoridades, não trabalha. Se trabalha, parte tudo, engana o patrão, não respeita a mulher de outrem, é rapinante quando a ocasião se apresenta, é um não-valor social e, contudo, ele teve uma tal influência, de tal modo reconciliou pessoas com a vida que o podíamos considerar um dos benfeitores da nossa época. Não tenhamos pontos de vista professorais sobre arte. Porque é que Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, personagens muito pouco recomendáveis do seu tempo, representam não obstante tantas coisas para nós e são de alguma maneira benfeitores? Não seguramente pela sua moral, mas por terem conferido um novo impulso vital, uma nova consciência.
Por isso, em vez de os comparar a pregadores espalhando a boa ou a má nova, há que compará-los ao primeiro homem que inventou o fogo. Foi um bem, foi um mal? Não sei. Foi um novo começo para a humanidade. Uma sucessão de novos começos faz uma civilização. É isso também o que o poeta mais deseja, um novo começo, uma vitória sobre a inércia, sobre a sua, sobre a da época, sobre o entorpecimento sem fim dos reacionários. Vemos assim que a poesia, mais do que um ensinamento, mais até do que um encantamento, uma sedução, é uma das formas exorcizantes do pensamento. Pelo seu mecanismo de compensação, liberta o homem da atmosfera viciada, deixa respirar aquele que asfixiava. Transforma um estado de alma intolerável noutro satisfatório. É, pois, o social, mas de uma forma mais complexa e indireta do que se diz.
Sem o parecer, respondo desta maneira à pergunta: “Qual é a finalidade da poesia?” – A de nos tornar habitável o inabitável, respirável o irrespirável.
Para falar mais especialmente da poesia nova, esta tende a procurar obter o segredo do estado poético, da substância poética. Abandonando o verso, o versículo, a rima, a rima interior e até o ritmo, despojando-se cada vez mais, ela busca a região poética do ser interior, região que outrora era talvez a das lendas, e uma parte do domínio religioso. (Uma parte apenas. O poeta e meu amigo Jules Supervielle acaba de exprimir uma ideia análoga.) Uma confiança acrescida proveniente da confiança dada, uma confiança particular devida ao progresso da psicopatologia, da psicanálise, da etnografia, talvez da metafísica, e dum neo-ocultismo, um conhecimento cada vez mais circunstanciado das relações cérebro-inteligência, cérebro-glândulas, cérebro-sangue, espírito-nervos, o estudo dia a dia mais desenvolvido e experimental das perturbações da linguagem, da sinestesia, das imagens, do subconsciente e da inteligência, tende a dar ao poeta a curiosidade de tocar tudo isso do interior, e o gosto de incursões mais audaciosas nos estados secundários, nos estados perigosos do eu.
Por outro lado, as modificações na vida privada e social dos homens, cada vez mais rápidas graças ao maquinismo e à intrusão da ciência nos elementos mais humanos, obrigarão o poeta a criar paralelamente uma nova óptica. Tal é, segundo creio, o maior futuro imediato da Poesia. Mas um poeta (nasceu um hoje, talvez) subverterá sem dúvida esta nova poesia. Tanto melhor. Porque a verdadeira Poesia faz-se contra a Poesia da época precedente, não certamente por ódio, embora por vezes ingenuamente dê essa aparência, mas porque é chamada a mostrar a sua dupla tendência, que é em primeiro lugar trazer o fogo, o impulso novo, a nova tomada da consciência da época, e em segundo lugar libertar o homem de uma atmosfera envelhecida, gasta, viciada. O papel do poeta consiste em ser o primeiro a senti-la, a descobrir uma janela para abrir ou, mais exatamente, em abrir um abcesso do subconsciente. Foi talvez neste sentido que se disse: “O poeta é um grande médico”, como aliás o cômico. Assim ele manifesta a sua segunda tendência, que chamei exorcizante. Faz desaparecer a sedução da época precedente, da sua literatura e, em parte, também da época presente. Essas duas tendências conjugam-se, de resto, numa só força em direção ao futuro. Vemos que no início o poeta está sozinho, parte sozinho à descoberta. A sua verdadeira ação social vem mais tarde, quando a humanidade quase sem ele querer o incorpora. Esta incorporação faz-se de forma tão natural que muitas vezes imaginamos retrospectivamente, com algum simplismo, que o poeta deu o tom à época precedente. Assim se torna eternamente atual o poeta que teve a coragem de não o ser demasiado cedo.” omo exemplos da “transfiguração poética” de que fala Michaux, vamos agora ler dois de seus poemas, traduzidos por Henrique Rocha de Souza Lima:
O PORVIR
Quando os man,
Quando os man,
Os manguezais
As maldições
Quando dos manaha hahas,
Os mahaha borras,
Os mahaha mala dihahas,
Os matratrim atra trihahas,
Os hodregordematernais
Os honcucarachoncus,
Os hordanoploléis de puru para piri,
Os imuncéfalos com língua,
Os pés, as pestes, as putrefações,
As necroses, as carnificinas, as abocanhadas,
Os viscosos, os vencidos, os infectos,
Quando o mel se tornar pedregulho,
As geleiras perderem sangue,
Juízes apavorados resgatarem o Cristo apressadamente,
A Acrópole, os quartéis convertidos em repolhos,
Os olhares vendo morcegos, ou arames farpados, ou caixas de pregos,
Novas levas de maremotos,
Vértebras feitas de moinhos de vento,
A seiva da alegria vertendo em queimaduras,
E as carícias em estragos convulsivos, os órgãos do corpo colados por duelos de espada,
A areia de conforto ruivo transfigurando em chumbo sobre os amantes da praia,
As línguas tíbias, divagantes apaixonadas, convertendo em facas, ou em duras fisionomias,
O ruído refinado dos rios que fluem tornando-se florestas de papagaios e de martelos-pilões,
Quando o Horrendo-Implacável se espalhar enfim,
Sentará suas mil bundas infectas sobre o Mundo fechado, centrado, e como que pendurado a um prego,
Girando, girando sobre ele mesmo sem jamais se escapar,
Quando, última porção do Ser, a desgraça apontar atroz, sobreviverá só, em crescente delicadeza,
Mais e mais aguda e intolerável… e por todo lado perseverantes o pânico e o Nada…
Oh! Desastre! Desastre!
Oh! Última lembrança, pequena vida de cada homem, pequena vida de cada animal, pequenas vidas puntiformes!
Nunca mais.
Oh! Vazio!
Oh! Espaço! Espaço não estratificado… Oh! Espaço,
Espaço!
O título deste poema já é significativo, pois remete à ideia de um tempo futuro, tema frequente nas vanguardas das décadas iniciais do século XX. Na composição de Michaux, porém, ao contrário do que acontece em Marinetti ou em Maiakovski, não temos o canto de louvor à cidade, ao universo industrial, às máquinas e à tecnologia; ao contrário, Michaux nos fala de “necroses”, “carnificinas”, de “viscosos”, “vencidos” e “infectos”, em “quartéis convertidos em repolhos” e “vértebras feitas de moinhos de vento”. É um cenário apocalíptico, em que se destaca um personagem alegórico, o “Horrendo-Implacável”, que “sentará suas mil bundas infectas sobre o mundo fechado”. O poema, que se inicia com linhas breves, elípticas, de sintaxe reduzida ao mínimo, compostas de neologismos impronunciáveis, como manahahahas, mahahaborras, mahahamaladihahas, que recordam os timbres de línguas orientais, como o sânscrito, aos poucos vai se transfigurando, em versos longos, imagéticos e metafóricos, que compõem um amplo painel do fim do mundo. O discurso poético é construído por meio da sucessão de planos, como na montagem cinematográfica, e segue num crescendo até desaguar na aniquilação e no vazio. Em outro poema de Michaux, lemos:
O MAL, É O RITMO DOS OUTROS
Porquê toco o tambor agora?
Por minha fronteira
Para forçar suas fronteiras
Para atravessar a onda crescente dos novos censores
Para me escutar
Para tomar meu pulso
Para me arremessar
Para me desacelerar
Para cessar de me confundir com a cidade com ELES
Com o país com ontem
Para permanecer a cavalo
Contra Versalhes
Contra Chopin
Contra o alexandrino
Contra Roma
Contra Roma
Contra o jurídico
Contra o teológico
Contra Roma
Tambor crítica
Tambor transfigura
Tambor lúdico
Dorso ereto contra a tumba
Sem dinastia sem bispado
Sem tutelares sem repressores
Sem carícias sem curvar-se
Tambor do tórax da terra
Tambor dos homens coração parecendo murros
Contra Bossuet
Contra a análise
Contra a cátedra da verdade
Para quebrar
Para cortar
Para contraprovar
Para pulverizar
Para acatalepsiar
Para esvoaçar
Para por abaixo
Para desfazer a ancoragem
Para rir no fogaréu selvagem
Para desmontar
Para desmontar
Contra a harpa
Contra as irmãs da harpa
Contra os drapejados
Para desmontar
Para desmontar
Para desmontar
Para desmontar
Contra o número áureo
Tradução: Henrique Rocha de Souza Lima
Este é um poema construído em tom de manifesto, em que o poeta se rebela contra o direito, a teologia, o verso alexandrino, o Tratado de Versalhes e até mesmo contra Chopin, numa virulência que recorda os manifestos de Artaud; porém, ao contrário do autor do Pesa-Nervos, Michaux constrói um texto descontínuo, assimétrico, formado por linhas breves, anafóricas e rítmicas, como se fossem batidas de tambor – “Porquê toco o tambor agora?”, diz o poeta no verso inicial. A demolição de valores proposta por Michaux, assim como aquela de Artaud, não conduz, porém, a uma nova utopia; recorda antes o niilismo dos poetas dadaístas, em especial nestas linhas:
Para desmontar
Para desmontar
Contra a harpa
Contra as irmãs da harpa
Contra os drapejados
Para desmontar
Para desmontar
Para desmontar
Para desmontar
O pessimismo de Michaux adquire um timbre mais lírico neste dois poemas breves, traduzidos por Daniela Osvald Ramos:
Labirinto, a vida, labirinto, a morte
Labirinto sem fim, diz o Mestre de Ho.
Tudo afunda, nada libera
O suicida renasce para um novo sofrimento.
A prisão termina em uma prisão
O corredor termina em outro corredor:
Aquele que crê desenrolar o rolo de sua vida
Não desenrola nada em absoluto.
Nada desemboca em nenhuma parte
Os séculos vivem também sob a terra, diz o Mestre de Ho.
* * *
O tempo mais propício para nascer
não era
não é hoje
A Torre da Morte se ergue
já se vê de todos os lugares
não haverá semelhante
Em um círculo, um círculo imensamente amplo
os ciclos acabam
As vítimas estarão lá, sem tardar, presentes.
Simultaneidade sempre tão notável
dos sacrificados e dos armados.
Tradução: Daniela Osvald Ramos
Se o poeta descarta qualquer utopia social, e parece desacreditar da própria espécie humana, ele ao mesmo tempo projeta a sua fantasia em duas direções: a primeira, ao Oriente, em especial o imaginário relacionado à China, Índia e Japão; e a segunda, rumo à pura fantasia de países e povos inventados por ele. Como escreve o poeta e tradutor curitibano Ricardo Corona:
“O poeta belga (naturalizado francês) Henri Michaux empenhou-se a criar realidades e a inventar seres em uma busca por um tanto do ‘outro lado’. Para isso, parte significativa da sua vida foi dedicada a experiências externas, anotações de um ‘bárbaro’, em viagens a Ásia, Europa, América, e experiências internas, com uso de haxixe e mescalina. Daí a sua radicalidade ao inventar países e povos como o País da Magia, Poddema, etc. Para Michaux, inventar seres e realidades era também um modo de elaborar distâncias e alargamentos, ética encontrada nos povos visionários, da qual o poeta aproximou sua escrita. Desta poética da viagem é que se potencializa o estranhamento provocado pelos Meidosems. Seres descolados da realidade, que se movem entre o sólido e o fluido, que estalam e se alargam, seres esquisitos que desestabilizam o referente e rebaixam a metáfora, que são muitos, uma população, num país Meidosem. Seres desconfigurados, elásticos, com rostos abrasados e esgotados. Seres que ferem e estão feridos. Um Meidosem jamais possui imagem definida e talvez nem pertença à imaginação. Os vizinhos são os cronópios e famas de Cortázar, os marcianos de Ray Bradbury e o uapiti de Boris Vian. Mas vivem em realidades diferentes. Certamente os Meidosems têm algum grau de parentesco com o homem reduzido a fio de Ponge, as finas figuras de Giacometti e, claro, o Odradek de Kafka (que Michaux leu). Já se disse que os Meidosems são ‘seres surreais’. Melhor não repetir isso. Apenas coincidem com a chegada do surrealismo. Michaux sempre relativizou essa associação, chegando a dizer que em seus textos (entenda-se toda sua obra) não havia sequer duas linhas de escrita automática. Por isso, quem sabe, tenha se negado a participar de importante antologia surrealista. Porém, Michaux manteve ligações com os surrealistas e isso Blanchot o disse muito bem. Mas é uma ligeireza cômoda assimilar essa poesia somente via surrealismo. Há a relação destes fragmentos Meidosems com Marie-Louise, esposa do poeta. Chantal Maillard propôs recentemente essa leitura – sem reduzi-la a isso. O fato é que os fragmentos saíram publicados cinco anos após Marie-Louise sofrer um terrível acidente que marcou a vida do casal. Ao acender a lareira, a roupa de nylon de Marie-Louise pegou fogo e seu corpo sofreu queimaduras de segundo e terceiro graus, levando-a ao óbito um mês depois, por causa de uma embolia pulmonar. No entanto, das leituras dos Meidosems, talvez a mais interessante seja aquela que deixa os textos à sombra e no seu falar obscuro. ‘Um corpóreo-incorpóreo, um corpo-alma’, nas palavras de outro comentador, Raymond Bellour. O livro Meidosems foi publicado inicialmente por uma pequena editora, Le Point Du Jour, em 1948. Em edição de luxo com 70 fragmentos e 13 litografias do autor, com tiragem de apenas 271 exemplares. Um ano depois foi publicado sob o título definitivo de Retratos dos Meidosems, em edição comercial pela Editora Gallimard.”
Vamos ler agora alguns fragmentos dessa obra, traduzidos por Ricardo Corona:
Hoje é a tarde de descanso das Meidosemeas. Elas sobem nas árvores. Não pelos galhos, mas pela seiva.
Mortas de cansaço, perderam nos galhos, nas folhas, os liquens e os pedúnculos da pouca forma estável que possuem.
Subida bêbada, suave como sabão penetrando na sujeira. Rapidamente na ervinha, lentamente nos velhos álamos. Suavemente nas flores. Sob a ínfima, porém, forte inalação das trombas de borboletas, elas deixam de se mover.
Em seguida elas descem pelas raízes para dentro da terra amiga, abundante em tantas coisas, quando se sabe colher.
Alegria, alegria que invade como invade o pânico, alegria como ficar sob o cobertor.
Em seguida é preciso reconduzir ao chão as crias dos Meidosems que, perdidas, desvairadas nas árvores, não podem soltar-se delas.
Elas ameaçam as crias, ou, ainda, humilham-nas. Ao passo que, caem em si, facilmente as soltam, trazendo-as de volta cheias de sumo vegetal e ressentimento.
***
Fluxos de afetos, de infecção, fluxos residuais de sofrimentos, caramelo amargo de outrora, estalagmites lentamente formadas, com esses fluxos ele se movimenta, com eles apreende, membros esponjosos que saem da cabeça, atravessados por milhões de pequenos fluxos transversais, indo até a terra, derramados, como um sangue rompendo das artérias, mas não é sangue, é o sangue das lembranças, de alma transpassada, de frágil aposento central, lutando na estopa, é a água vermelha da veia da memória, fluindo sem desígnio, mas não sem razão em suas pequenas tripas que fazem água por toda parte; infimo e múltiplo rebentamento.
Um Meidosem estilhaça. Mil veiazinhas de sua fé estouram nele. Volta a cair, estira-se e se extravasa em novas penumbras, em novas lagoas.
Claudio Daniel é poeta, romancista e professor de literatura. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP). Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Atualmente, Claudio Daniel é editor da revista eletrônica de poesia e artes Zunái, da revista impressa Grou e ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, curso realizado à distância, via internet.
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