uma chama esbranquiçada se desprende a partir das cinco letras sangrentas e eis que relampejam as asas flamejantes da roda resplandecente. assim como um rei que incendeia o trono dos deuses, um olho perfurando o ápice das ossaturas, um lótus de mil crânios onde Liezi amputou seu próprio braço para ser dissolvido aos quatro ventos. assim como o estrondo dos primeiros redemoinhos. o velho dragão de sobrancelhas douradas que voa sobre os abismos dos séculos. um rosto que contém todos os rostos obscuros, um caracol dos doces eflúvios de Vishnu, circulando e se revolvendo dentro da infinidade de mil fluxos e refluxos. como o último espírito que arrebata o arcanjo na sua caverna tenebrosa onde as águas sulfurosas rasgam-lhe as vísceras, quando ainda nem se via o próprio ser, mas apenas o mero reflexo de um diamante solitário. enquanto o sangue do sol corresponde ao primeiro número da porta do castelo e como se, entre as suas paredes, uma chave quisesse apontar para o útero ferocíssimo da testa de Bodhidharma. a faca devorando os anjos da alvorada nesse intervalo que ressoa além dos ouvidos, nesse brumoso rouquejar dos hexagramas fulgurantes, nesse precipício dos anéis que arrastam o sono do demônio com intermináveis rugidos invadindo a esfera silenciosa, quando o uivo de Fu Xi dispersa o crucifixo enquanto a montanha de Kun Lun ao norte do Rio Vermelho vomita a estrela infernal onde somos as únicas sombras das panteras de ás de espadas, assim como se as formas inefáveis nos inundassem com as suas tropas marsupiais, com as máscaras dissecadas no sorvedouro da mesma frequência das marés zodiacais, como todos os símbolos que fluem incessantemente para um único e mesmo símbolo
do seio abominável, a noite excretou minha memória! – exclamava consigo, à espera de um antigo sacrifício: assim como uma faca afiada que se exalta nos círculos de uma massa opulenta. do seio mais íntimo, decorria o lúdico e sinistro balbucio que se esconjurava: lábios alfinetados por um magma ferroso sobre a fragilidade obscura do entendimento – pois haveria algum ponto discernível no meio desse arco-íris tragicômico? – contudo, indecifrável com todos os símbolos e números soteriológicos, nada a continha, nada a separava desse diluído orifício de frestas insufladas. sou trans? bicha? homem? mulher? – perscrutava a si mesma – minhas unhas atravessam as ruas tempestuosas? sou chinesa? venezuelana? nômade africana? assim, agarrada à sua própria mão para não se esmorecer, ouvia uma floresta de rumores. seria a única sobrevivente? impassível e permeável ao fogo? inumeráveis centelhas e cinzas onde, após tal adstringência, do seio da imagem ou daquilo que parecia ser um fragmento de imagem, apareceria-lhe um corpo crispado de pústulas? como uma gravura impregnada de riscos asquerosos? uma navalha se encravando num asco tremendo? ah, ritos, ritos, ritos imprecisos de sua imaginação! da outra margem da mesma encruzilhada, assomava-lhe o rosto repulsivo de um anjo enganchado num galho apodrecido em meio às telhas destroçadas e, atrás da porta da cozinha, moscas revoluteando em torno de uma xícara de café: guardanapos borrados na mesa, copos e cacos de vidro fulvo engolfados pela neblina. e, logo abaixo das escadas do seu quarto superior, sob um teto quase crepuscular, arderia por dentro só de saber que a morte poderia arrancá-la da paralisia. porém nem se importou mais com isso. embora ainda hesitasse entre um gesto e outro, caminhou até o banheiro do quarto. olhou-se no espelho. contemplou com serenidade os destroços do seu país em convulsão. ninguém mais a reconheceria! de repente, entre o passado desprezível e o porvir de cada rebentação, lá estava ela, como se pairasse numa espessa redoma de astros degelados: lá estava ela, resoluta e tímida, a um só tempo, bocejando e cuspindo uma gosma esbranquiçada: lá estava ela boiando naquela névoa espumosa e, atrás da poltrona onde estivera tanto tempo mergulhada em sono, boiavam outras criaturas avermelhadas, musgosas e encardidas. outros corpos estilhaçados numa mixórdia infindável, onde não se sabia se tal êxtase infame nos agrilhoava ou nos desvencilhava das massas hediondas da interdição. ninguém poderia reconhecê-la! assim se desvanecera todo o jogo imprevisível de idas e vindas, florações da carne, ritos de anjos cinzentos, vastíssima onda que arrastava as nádegas, as ancas, as bocas, os ossos, as vozes e os olhos de todos os seres
algo excede, por dentro e por fora. contudo, se somos impelidos ao limite, o que nos faz ver aquilo que vemos? seria o ver mais do que o simples ato de ver? nada pode nos deter quando silenciamos. e só o silêncio revela. só o silêncio da noite, esse vago rumor de estrelas que enternece. só essa única e fulgurante exalação de centelhas brancas brilhando acima de nossas cabeças. pois se o único silêncio que habita o vazio se faz ausente, o que se retrai para o interior da visão? há um momento em que estamos distantes da órbita. estamos à margem, fixando os olhos para aquela figura sem contorno. olhamos sem olhar. ficamos pasmos à beira de um abismo de flores inauditas. e, em poucos dias, eflúvios emergem de todos os rios em declive. estamos descendo ou ascendendo aos céus? nossos corpos nos expelem por dentro e para fora de nós mesmos. estamos cada vez mais à margem do sol. e, no entanto, este último resplende, silenciosamente, com sua exalação ardente e secreta. pois agora não sabemos se estamos inspirando ou expirando, se estamos próximos das ondas tenebrosas de um fundo ilimitado ou vagando de um lugar para outro, errantes e noctívagos. pois, ao olharmos aquela figura sem contorno, sentimos que algo nos suplanta, como um mar de bocas e peles excruciantes. eis que algo também nos envolve com sua espessa camada viscosa e nos ergue acima do horizonte manchado de estrelas túrgidas. pois quando nossos passos se silenciam, há um momento em que nos tornamos mais vulneráveis ao rumor tempestuoso e mais absorvidos por um fluxo descomedido. assim como se um cascalho emanasse à margem das águas e nos queimasse por dentro. ínfimo, infernal, mas inominável felino que se alastra com os seus saltos alucinados. flexuoso marulho de ostras e ventosas. salitroso. gasoso. sinuoso esvoaçar de asas escuras. como se na margem da órbita inaudita, entre as frestas da alvorada, uma cabeça foliculosa nascesse do rochedo e despontasse no abismo insano de tantos ossos. como se entre as lágrimas da noite e essa cabeça encravada no rochedo, fôssemos apenas os suspiros diáfanos acompanhando o declínio do astro. o que era espantoso era o fato de que não nos chegava nenhum vestígio. e mesmo que aparecesse repentinamente algum ser desconhecido, ele jamais nos surpreenderia, já que estávamos submersos numa espécie de redemoinho infernal. ora assomava um vulto, ora uma correnteza se revelava uma felina cheia de melífluas carícias. assim, os dias e as noites transcorriam com as nossas cabeças soterradas. no entanto, o sol continuava a se infiltrar sob a negra cabeleira de uma paisagem adormecida. e tudo parecia ruminar numa cadência indistinta. numa velada e gélida transparência. embora jamais fosse nítida a paisagem, havia sempre um instante em que as súplicas se multiplicavam, os lábios vigorosos do sol se enrugavam e uma vagarosa incandescência continuava a se intumescer por dentro de todas as escamas da montanha. como se também aquela muda fantasia se transpirasse e nos precipitasse nas labaredas ardilosas de uma aurora resfolegante. e ainda que estivéssemos dispostos a viver, de repente nada se movia na noite silenciosa em que jazíamos. e ainda que o sol fosse entorpecido com as nossas angústias, se vivêssemos com o silêncio, seríamos capazes de suportar a visão? mal sabíamos se a noite nos submergiria, ou se o anjo da luxúria nos acariciaria com seus cálidos abraços. no entanto, caminhávamos por alguns instantes, atentos à marcha ascendente da lua, quando ela tingia de um fulgor violeta as fissuras viscosas do rochedo. e sob as frestas da escuridão, as nossas mãos se entrelaçavam como constelações surgidas ao acaso e o amor ressoava por dentro de nossas raízes insaciáveis. uma sede inexprimível atravessando o corpo de uma mulher vestida de branco, enquanto o sol era esquadrinhado pelas ventosas da morte. um levíssimo estremecimento acordando as melodias de um piano solene, onde tudo parecia um sonho indevassável que me deixava insone numa espécie de surdo enrubescimento, onde de repente o sol se transformava numa mulher vestida de branco. e tudo exalava uma névoa completamente inviolável. uma ternura indizível me possuía e eu era uma lua viscosa encravada no rochedo. entre as fissuras da visão, o que eu via? ou será que não estava suficientemente lúcido para ver? e ainda que o anjo da luxúria me acordasse do sonho, meu pescoço continuava colado ao seu ombro, como um anel de aço flamejante ou como um astro suspendido para fora das órbitas, cascalho abandonado, mulher vestida de branco numa rua deserta, enquanto tudo se empalidece e, ao mesmo tempo, se rejuvenesce como aquele menino solitário, híbrido de anjo e lobo feroz que suavemente sacode as sobrancelhas da noite com seu cortejo de músicas e ventosas. assim, como em outros tempos onde os homens dançavam ao redor dos lagos e as árvores eram montanhas incandescentes, como se ainda a chuva pudesse nos acariciar entre anjos e animais, como se a noite penumbrosa fosse uma legião de pétalas esbranquiçadas que se evaporam com o sussurro insonoro de certas lagunas consteladas, como se um lobo saltasse de um rochedo a outro, à margem das fissuras gélidas da lua, à margem de um pântano abissal encravado no dorso de um imenso sol foliculoso, como se a voz daquele piano descortinasse a transparência obscura, e no limiar do silêncio alguém cruzasse a rua solene, como se a visão submergisse por si mesma numa névoa de fogo, como se eu, o sol e a vida nunca existíssemos senão nas correntezas do sonho.
enquanto as radículas se infiltram noutras palavras e os pedúnculos se dilaceram em íngremes cadências, vejo ritmos de cores irisadas, matérias mesclando-se às marés indomáveis, pensamentos que se desgarram em intrépidas confluências: de ressonância a ressonância, de renúncia a renúncia, criei um terrível bosque de pandemônios, o pólen da elegância, a seiva que se propaga nas veias. inventei folhas sorridentes de raio vespertino. amei a fulgurância e até mesmo a ignomínia. embora com asperezas, agarrando-me ao inexorável, abracei os ramos e a árvore num único amplexo. devorei amores. arranquei frutos a fim de esquecer de mim mesmo. não sei mais se amo estar vivo ou morto, pois, meu corpo deixou de ser um luxuoso jardim e, no mesmo influxo, se refundiu para além dos limites da vida e da morte
sob as ruínas das relíquias, efusivamente um rio caudaloso escava a sua face escabrosa. sombras ávidas e páginas abstrusas assomam na sua mente expurgada. o que se destila na carne, o que nasce por entre as constrições dos seus ossos? ora faiscando, ora se apagando e se aniquilando a si mesma, como ferida se contraindo numa cruz sem desengano, impiedosamente, ora se dilatando, ora se esquivando num adstringente escárnio, desfalecimento onde os seus ombros são bruscamente ofuscados por um séquito de clamores esganiçados, como se um relicário de fagulhas e blasfêmias fossem se revolvendo em torno de uma lareira abandonada, onde na insone imprecação as miríades de lâminas se arrastam para um tabernáculo colossal, e como se cada saliência se alargasse com as pálpebras conspurcadas, cada mão invejosa viesse a se estender sobre as lápides das antigas famílias, enquanto as bordas úmidas do carvalho respingam o fétido e mórbido amargor, e cada forma em mutação se desmembrasse com as rodas atiçadas, com fricções de estrelas ácidas se digladiando entre músculos pressurosos, entre braços e desalentos esfolados, entre clavículas, flores de mármores de berços esfomeados, como se cada eclipse de vibrações se revoluteasse em torno de sensações impossíveis, em torno daquilo que não se vê nas órbitas do desassossego, quando os corações são derretidos pelas manchas impassíveis, quando a luz esmorece na sepultura das raízes de um diamante fragoroso, num desmoronamento sem nenhuma clemência, ora decaindo e se erguendo sob o turbilhão das veias amotinadas, se ocultando e se desocultando como raposas de lábios cinzentos amordaçando as distâncias entre uma placa de bronze e a montanha das cegas maldições, num ranger de inóspitas crateras avolumando-se até a altura das névoas desventradas, num ressonante aguilhão de flocos desvelados, num espicaçar de fios assombrosos arrancando as lavas do abismo, as quais por entre as frestas de um monumento se dividissem ao infinito, com movimentos indistintos, tanto se agitando como se apaziguando num torvelinho que se recrudesce ao longo das ressonâncias esculpidas em vales e grutas insondáveis, como se cada folha desprendida fosse o próprio rumor de um vórtice sem retorno, girassol da fúria de Deus na encruzilhada dos espectros, e assim num átimo, cada morte derramasse o seu sono de cúpulas de sangue para além das súplicas humanas e para longe da muralha dos desamparos, das tormentas e dos naufrágios
Chiu Yi Chih (邱奕智) - professor de filosofia taoísta e mandarim (leitura instrumental). Filósofo, tradutor, poeta, praticante de Tai-Chi, instrutor de meditação e de canto de mantras taoístas. Visite seu site: www.mandarimtaoismo.com
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