Por Luís de Barreiros Tavares
"Fernando Pessoa em flagrante delitro": dedicatória na fotografia que ofereceu a Ophélia Queiroz em 1929.
“No habrá nunca una puerta. Estás adentro / y el alcázar abarca el universo / y no tiene ni anverso ni reverso / ni externo muro ni secreto centro.” (Jorge Luis Borges, do poema Laberinto)
Quarta-feira – 11-10-2023
Sobre a poesia
Em certa poesia não há ponderação na/da palavra. Esta é a baixa poesia que se limita ao enfeite, à tendência excessiva para a palavra como enfeite, adorno. A alta poesia joga a palavra, põe-na em jogo, mas não a usa nem dela abusa. Ela põe a palavra em jogo pensando-a. Não se embeleza um poema com palavras, no sentido de se servir delas. Elas não estão ao nosso serviço com esse objectivo. Aliás, o poeta serve as palavras. Se as escolhe, são elas também que se fazem escolher, sem que haja uma redução submetida à composição. A sensação de imprevisibilidade da palavra no decurso do poema reside nessa sua liberdade.
A poesia joga-se como palavra.
Sobre o poema, a poesia e o jogo, eis o que nos diz Giorgio Agamben:
“Que é um poema? Um poema é um discurso, um fenómeno de linguagem, da língua…sem dúvida, isso é feito na língua… não para lá da língua… mas o que é que se passa num poema? Vemos que num poema, o uso normal da língua, como instrumento de informação, de comunicação, é desactivado, tornado inoperante, e, a partir daí, [e isso é feito ao mesmo tempo], um outro uso da língua se torna possível… é a isso que chamamos poesia… […]. No jogo é a mesma coisa, as crianças brincam, jogam o quer que seja, desactivam e encontram um outro uso que é justamente o jogo…” Giorgio Agamben, on biopolitcs (vídeo Youtube).
Sexta-feira – 13-10-2023
“A poesia é a pesquisa da palavra” (M. T. R-Leal)
Manoel Tavares Rodrigues-Leal decidiu trabalhar a sua obra poética já nas últimas fases da sua vida e da sua escrita, com uma estrutura de inscrição que marcava e pontuava os versos e os textos, para além da letra minúscula recorrente, imprimindo assim um ritmo sobre o que escrevia e, ao mesmo tempo, uma articulação com o movimento de escrita, onde o corpo, a respiração e a ponderação da palavra ressoavam. Qual a sua explicação?
“esse ofício. fulcral. o de escrever. ainda aflora.” (M. T. R.-Leal)
“São pontos para estancar, digamos assim, a poesia, o fluxo, o afluxo da poesia. E, portanto, é uma maneira de estancar essa corrente de literatura ou de poesia. E, como dizer? Tentar enxugar o texto poético! Quer dizer, uma maneira de elevar o texto poético à essência, à essencialidade através da pontuação. […] Porque eu tinha tanta coisa para dizer… que tinha de estancar, parar…” (M. T. R.-Leal)
“Em busca da palavra perfeita que não há.” (M. T. R.-Leal)
Terça-feira – 17-10-2023
Não criar somente às claras – Proust, Kafka e Pessoa.
Proust
“Quando raciocinamos acerca do que se passará depois da nossa morte não será a nós vivos que por erro projectamos nesse momento?” (Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – A fugitiva – Albertine desaparecida)
“C’est que, pas plus que ce n’est le désir de devenir célèbre, mais l’habitude d’être laborieux, qui nous permet de produire une œuvre, ce n’est l’allégresse du moment présent, mais les sages réflexions du passé, qui nous aident à préserver le futur.” (Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – A l’ombre des jeunes filles en fleur)
(“É que, não é mais o desejo de se tornar famoso, mas o hábito de ser laborioso, que nos permite produzir uma obra, não é a alegria do momento presente, mas as sábias reflexões do passado, que nos ajudam a preservar o futuro.”)
Proust escreveu À la Recherche du Temps Perdu (Em Busca do Tempo Perdido) encerrado num quarto sem janelas e isolado com cortiça, protegido da luz e dos sons exteriores. Precisamente para vir à luz com a força de parto em 1913.
Kafka
“Pela primeira vez durante bastante tempo um falhanço completo em escrever. Sensação desagradável de um homem sujeito a exame.” (Diário – 06-05-1912)
“Sempre com mais medo ao escrever. É incompreensível. Cada palavra torcida nas mãos dos espíritos – este torcer de mãos é o seu gesto característico – torna-se numa lança que se volta contra o orador. Muito especialmente uma observação como esta. E assim «ad infinitum». A única consolação seria: acontece quer gostes quer não. E o que gostas não serve de nada. Mais do que consolação: também tu tens armas.” (Diário – 12-06-1923 – último registo no diário)
Kafka, no final da vida, já muito doente – desimportando-se definitivamente da escrita, após as dúvidas que sempre o assaltaram –, pediu ao seu amigo Max Brod que queimasse ou destruísse os manuscritos (inclusive O Castelo). Este, felizmente não o fez.
Pessoa
“Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora genios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lucidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobre e lucidas –,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?”
[…]
“Tenho feito philosophias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nella.”
(Álvaro de Campos, do poema “Tabacaria”)
Pessoa escreveu grande parte da sua obra para a arca. Com o zelo e o cuidado de a preservar para qualquer tempo outro. Esse tempo é fundamental para inscrever o traço de união e separação entre o estar cá (escrever para a arca) e o não estar cá (a arca a revelar-se).
Quinta-feira – 19-10-2023
Franz Kafka – breves apontamentos sobre O Castelo
“Embalavam-se na marcha das próprias palavras” Kafka, O Castelo
É extraordinário o modo como Kafka põe a personagem Olga a descrever a situação a K. num estado de grande confusão. Mas ao mesmo tempo a descrição é feita numa estranha serenidade – como se alguma coisa afinal fizesse ali sentido e merecesse plena atenção para se compreender o que se estava a passar. Uma atmosfera desesperante e exasperante, mas aliviada por tonalidades subtis e geniais de humor e loucura. Este imbróglio certamente produzirá também no interlocutor K. e no leitor uma perplexidade. Há que escutar e ler, aceitando e seguindo como um verdadeiro fio da meada.
“Diga-se de passagem que os criados do Castelo são muito parecidos uns com os outros e nem eu estava lá muito certa de vir a reconhecer o criado em questão. Começámos por ir procurá-lo entre a criadagem ao Albergue dos Senhores. É certo que se tratava de um criado de Sortini e Sortini já não vinha à aldeia, mas os Senhores do Castelo mudam frequentemente de criado, podia ser que o descobríssemos entre os criados de um outro Senhor e, mesmo que o não descobríssemos, talvez os outros criados nos soubessem dar qualquer indicação acerca do seu paradeiro.” (“Os projectos de Olga” in op. cit., p. 235)
Sábado – 21-10-2023
O labirinto parece também propagar-se na narrativa
“Era um mundo tão vasto, quase incrível, o que se lhe abria na narrativa de Olga” Kafka.
A narrativa parece a própria actividade de estruturação de um castelo ou de uma estrutura onde se encaixam e se imbricam peças. Enquanto salas, espaços, tempos, vias de acesso, funcionários, criados, interior e exterior. Mas ela estende-se numa teia que captura o leitor no universo de espaços e caminhos circundantes mas também abrangentes (veja-se a epígrafe de Borges).
“Era um mundo tão vasto, quase incrível, o que se lhe abria na narrativa de Olga, que K. não resistia à tentação de lhe roçar com suas pequeninas vivências pessoais, a fim de mais claramente se convencer da existência desse mundo, bem como da sua própria.”
[…]
Acresce que o Castelo tem várias vias de acesso, umas vezes é uma que está na moda, e então é por lá que passa a maior parte dos funcionários, outras vezes é outra, e, então afluem todos a essoutra. Quais as regras que regem tal alternativa, é coisa que ainda não se conseguiu descobrir. Certo dia, às oito da manhã, passam já por uma outra, dez minutos mais tarde por uma terceira, meia hora depois voltam se calhar à primeira e então assim fica para o resto do dia, o que não exclui, aliás, a possibilidade de uma nova mudança. Todas as vias de acesso confluem nas proximidades da aldeia, é certo, mas aí já todas as carruagens vão a uma velocidade doida, ao passo que nas imediações do Castelo vão ainda num ritmo um pouco mais moderado.” (“Peregrinações” in op. cit. pp. 231-232)
Não é por acaso que existe a famosa expressão: “isto é kafkiano”; ou “um universo kafkiano”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fernando Pessoa, Obra Completa de Álvaro de Campos, Ed. de Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello; Colab. de Jorge Uribe e Filipa Freitas, Lisboa, Tinta-da-china, 2014.
Franz Kafka, O Castelo, trad. Vinga Martins, Lisboa, Livros do Brasil, 1946.
Jorge Luis Borges, Antologia Poética (1923/1977), Madrid/Buenos Aires, Alianza/Emecé, 1986.
Manoel Tavares Rodrigues-Leal, A Duração da Eternidade, posfácio e desenhos por Luís de Barreiros Tavares, Lisboa, Edição de autor, Composição e impressão por João Luís Alves, 2007, (com o pseudónimo “Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo”).
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – A l’ombre des jeunes filles en fleur, vol. II, Paris, Gallimard – Folio, 1954.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – A fugitiva – Albertine desaparecida, vol. VI, trad. Pedro Tamen, Lisboa, Relógio D’Água, 2004.
Ligações:
Giorgio Agamben:
Franz Kafka:
Luís de Barreiros Tavares nasceu em Lisboa em 1962 e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa (2007). Autor de alguns livros, entre outros: O Acto de Escrita de Fernando Pessoa; Em Roda Livre, com Eduardo Lourenço; Sulcos, com Jean-Luc Nancy; 5 de Orpheu (Almada – Amadeo – Pessoa – Santa Rita Pintor – Sá-Carneiro). Colaborador regular em várias revistas (“Nova Águia”, “Caliban”, “Triplov”). Iniciou há pouco tempo publicações na revista brasileira “Mirada”. Já publicou nas revistas “Pessoa Plural”, “A Ideia”, “Philosophy@Lisbon”, “Comunicações e Linguagens”, entre outras. Vice-director da revista “Nova Águia”. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono (MIL). Editor das edições-vídeo “Passante”. Mantém com menos frequência a actividade de artista plástico. Já deu umas aulas. Responsável pelo espólio do poeta Manoel Tavares Rodrigues-Leal.
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