Capítulo VI
«O casamento da filha do Boticário, o Duarte, proprietário da Pharmácia Pernambuco, foi uma festa de arromba, e todo o povo se divertiu, e à grande. A família Duarte tinha vindo do Brasil, e, com outras famílias, fizera parte da primeira colónia brasileira […] que, por volta de 1849, viera fixar-se na costa e nas areias do deserto do Namibe. […] A igreja de Santo Adrião, naquele sábado à tarde, rebentou pelas costuras […]». (Tosé Figueiredo, Chuva Tomba Capim, p. 144)
À medida que se vão aproximando do litoral começam a sentir o cheiro a maresia. Estamos quase a chegar, diz Francisco. Finalmente!, exclama António José. Os animais parecem ficar mais excitados, como se pressentissem que a longa viagem estava a chegar ao fim. Há mugidos e relinchos no ar. Mais umas léguas percorridas e o casario começa a notar-se na paisagem sobre o fundo azul do mar. Mossamedes cresce em casario e actividades piscatórias. Depois de Loanda e Benguella, não há estabelecimento que se lhe compare. Na rua dos Pescadores e na das Hortas, encontram bonitas casas, a rivalizarem com as melhores das outras duas urbes. António José anda absorto, distraído, o que não é nada habitual nele. A não ser quando anda encantado com um rabo de saia, murmura Francisco. Maria Mendonça tinha tocado fundo o seu irmão. Aliás, como outras antes dela, muitas outras, Helena Gongololo, do Humbe; Isabel e Rita Luzia, do Cuanhama; Maria, de Quipungo. Carolina, Emília, Velitalela, Laurinda, Tchintiki e Calenga, e ainda outras das quais não ficou o nome e que foram marcando o caminho das suas viagens e das suas estadias. Agora era Maria Mendonça, mestiça como ele, filha de um morador do Bruco e de uma mbali de Capangombe. Uma jovem de famílias com alguma projecção social entre os moradores das diversas povoações e fazendas de Serra Abaixo.
António José mostra-se ansioso pelo regresso, por se aproximar de novo do local onde Maria se encontra. Por isso, está a pensar na possibilidade de, após irem ao tabelião formalizar a Sociedade, despacharem mais depressa as compras, adquirindo apenas o mais necessário dos materiais que não existem na Chibia. Geralmente ficavam pelo menos uma semana, pois as viagens entre o planalto e o litoral eram longas e maçadoras. Desta vez, ficariam apenas quatro ou cinco dias. Daria tempo para tratarem dos assuntos que os trazia a Mossamedes e ainda o de fazerem algumas visitas de cortesia a velhos amigos. De entre eles, destacava-se o excêntrico doutor Cabral Lapa, dos raros médicos-cirurgiões que, logo nos anos seguintes à da fundação do povoado, passara a viver em Mossamedes [1]. Hoje, com pouco mais de sessenta anos, ainda está de perfeita saúde e com bastante vigor, não deixando de ir no seu carro para todo o lado, ora visitando algum amigo, ora viajando de sua casa da vila para o chalé da Aguada.
Os irmãos Almeida tinham passado uns bons serões na sua casa da rua das Hortas das outras vezes que tinham vindo a Mossamedes, pois o seu proprietário fazia jus à fama de bom anfitrião. Mesmo que não entrassem na moradia, ficavam deliciados só em vê-la, única no seu estilo, e em sentarem‑se no maravilhoso jardim em amena cavaqueira. Os Almeida nunca encontraram nenhuma parecida em todas as terras por onde haviam passado. E sempre que olhavam para ela, interrogavam-se como é que aquele homem a tinha construído num tempo e numa terra em que até a madeira faltava, em que não havia experientes construtores de casas de pedra e cal, entalha‑ dores e gravadores da pedra e estucadores. Era um enigma, pois aquela casa indiciava mestria em todas essas artes. Na Humpata, na Chibia e no Lubango ninguém tinha conseguido construir algo que se assemelhasse. António José confessava que tinha pena de não ter nenhuma parecida. Mas a variedade de interesses e de actividades, a falta de especialistas e a sua própria falta de jeito para orientar a edificação de uma obra do género, levara-o a ter boas casas, sim, mas nada artísticas como aquela.
Cada um dos irmãos ia no seu cavalo, bem mais fácil de manobrar do que o carro-bóer que deixaram nos terrenos de um comerciante com quem fizeram negócio. António José não podia deixar de tentar encontrar-se com o doutor Cabral Lapa, como sempre acontecia. Um homem extraordinário!, exclama, lembrando que é hospitaleiro e bom conversador. Francisco tem a mesma opinião de seu irmão e não se esquece de que ele o tinha salvado de um forte acesso de sezão de que tinha padecido, quando por ali passara, há uns anos, vindo do Humbe.
António José deixa-se levar pelo anestesiante trotar do cavalo, até começar a ver ao fundo, na curva da poeirenta rua, aproximar-se um carro de estilo pouco habitual, mesmo único, que vai afrouxando a velocidade até parar perto de si. O rapazinho mundombe [2], que guia o insólito carro, puxa o bridão do boi e fá-lo parar ao lado do seu cavalo que relincha assustado. É o doutor Cabral Lapa que chega. Mais ninguém anda num transporte daqueles, pois foi ele próprio que o projectou e mandou construir sob a sua directa orientação. Mal a nuvem de pó se dissipa, vêem-no sair do interior daquela espécie de andor processional, onde viaja comodamente sentado e ao abrigo do sol e da poeira. Enquanto os irmãos fazem os cavalos acalmarem-se, o médico aproxima-se, ainda de chicotinho numa das mãos. Um sorriso ilumina-lhe o rosto ao reconhecê-los.
Então o que traz por cá os irmãos Almeida? Cansaram-se do verde das Terras Altas? Os irmãos, agradados pela calorosa recepção, saltam das montadas. Boa tarde, caro doutor! Como está? Vamos neste momento a caminho de sua casa. Mas já vimos que não vale a pena continuar, pois não está lá e… António José é interrompido por um abraço do médico. Não senhor! Vão a minha casa, sim, mas comigo, no meu carro. Cabemos os três?, interroga-se Francisco. Claro que cabemos! E já agora, alguma vez andaram nele? Não!, responde António José, cheio de vontade de experimentar aquele inusitado meio de transporte. Francisco agradece, mas vendo que a visita vai demorar, diz que precisa de regressar, pois ainda tem de tratar de alguns assuntos no centro da vila. António José aceita com evidente prazer o convite do médico. Mas!, e o meu cavalo? Não tem importância, responde Cabral Lapa, vai à arreata do carro. E assim vamos embalados entre os relinchos do cavalo e os mugidos do boi. Uma gargalhada bem-disposta sela o encontro e o início do passeio. É bem cómodo este carro! Cabral Lapa explica que é um transporte adaptado a terrenos com muita areia, como é o caso. Se reparar, os rodados abrem-se como as patas dos camelos. Aliás, foi a observá-los que concebi estas rodas. Para além disso, tem uma estrutura leve, só há metal onde é estritamente necessário. A maior parte é feito com tunga, bordão e fibra de palmeira. Quanto ao boi-cavalo, é mais resistente do que o cavalo, exige menos cuidados e não é tão sujeito a doenças.
O visitante está verdadeiramente admirado com a comodidade do carro. Anda sobre a areia com bastante suavidade e as cortinas são altas o suficiente para não deixar que o calor se torne sufocante, enquanto protege os passageiros do pó. E é bastante espaçoso!, comenta. Já o construí a pensar nos meus companheiros da caça; cabemos quatro pessoas ao todo, explica Cabral Lapa, apontando para o lugar onde a arma era colocada com segurança. Mas, afinal, por quanto tempo vai cá estar, meu caro? Já regresso depois de amanhã. Não posso demorar, pois tenho muitos assuntos pendentes, vários projectos por realizar. Pois!, como sempre, anda muito ocupado, diz o médico. E eu que já estava a pensar organizar uma caçada consigo e com o seu irmão. Gostaria muito, creia, responde António José. Ficará para outra altura. O médico abana a cabeça desapontado. É pena! Teria a oportunidade de caçar com o mais famoso caçador de Serra Abaixo. Quem? O grande caçador de leões da Bibala, que já deve ter ouvido falar. Ah, o Nestor! Claro que conheço. Já cheguei a ficar hospedado, numa das minhas viagens entre o planalto e o litoral, na fazenda Nascente, que ele possui junto ao rio Munhino, diz António José. Já foi uma boa propriedade! Mas, na verdade, o que lhe deu sempre mais prazer nesta vida foi a caça. Cabral Lapa concorda com um acenar afirmativo de cabeça. E quanto mais perigosa melhor. É um durão, sempre pronto a pegar na espingarda, confirma o médico. E não só para caçar…, completa António José. O que quer dizer? É que eu… Bem!… quase que assisti à guerra que ele levou ao Vale do Lubango. Não me diga! Quando? Há cerca de dez anos. Ah! Já foi há bastante tempo… Pensei que me estava a relatar algum confronto recente. Não!, acho que desde aí o Nestor deixou de se meter em aventuras que não as da caça. Então conte lá essa da guerra que ele levou ao Lubango. Se calhar até sei qual foi. António José pensou que nada escapava àquele homem sempre atento a tudo. Pois, tinha eu saído do Humbe, onde na altura residia, para uma viagem a negócio quando, ao passar na Mapunda, encontrei os vestígios da refrega que tinha havido entre os quimbaris do Nestor e os guerreiros de Cabeça Grande, o soba do Lubango. Só que desta vez os homens de Nestor saíram de lá maltratados. Não teve muita sorte, não!, comenta o médico. Cheguei a tratar de alguns feridos nessa refrega. O Nestor, na altura, disse-me que tinha mandado os seus homens ao encalço duns bois que lhe tinham sido rapinados pelos do Nano. Bem! Não sei se foi essa a razão, mas as guerras do Nano têm costas largas, lá isso têm. Pois, quem sabe?!, interroga-se António José e a conversa morre por ali, quando percebem que o boi-cavalo abranda e a belíssima casa de Cabral Lapa lhes aparece em frente.
Tudo naquela casa contrastava com as que a rodeavam. Tinha uma fachada singular, com original ornamentação e um jardim que a emoldurava, contrastando com a secura dos outros quintais. Até se tem a sensação de que neste lugar há um microclima e o ar é mais fresco e mais húmido, admirava-se António José. Ambos se encaminham para a casa, mas ficam pelo jardim, pois a intenção era de que a viagem continuasse por mais umas duas léguas, até às Hortas, onde o médico passava, ultimamente, mais tempo. Veja aquela árvore ali!, aponta o anfitrião para um sítio de vegetação mais densa. É um espécime raro a sul do Cuanza e foi-me trazido por um camarada meu da Marinha. Já aquele arbusto ali, de estranha forma, veio de Caconda, pela mão do meu amigo e ilustre naturalista, José Anchieta [3]. Caconda, minha terra natal!, exclama António José [4]. Olhe que eu pensei que era natural da povoação da Huilla, a antiga Alba Nova, comenta Cabral Lapa. Mas já que falámos em Anchieta, é um homem muito estranho, não acha? Cabral Lapa sorri e vai dizendo que, apesar de estranho, excêntrico mesmo, o naturalista é um homem muito sabedor e de muita coragem. Foi ele que me ajudou a salvar muita gente do grave surto de febres palustres que cá houve, em 1868. Vendo que a situação se iria complicar, e porque tínhamos criado uma grande amizade nos tempos em que ele aqui viveu, enviei‑lhe um pedido de socorro. Pois, apesar da distância imensa que é daqui a Caconda, não deixou de vir. Foi uma ajuda providencial, pois eu também já contraíra o mal e rapidamente fiquei confinado ao leito. Estive às portas da morte. Eu e todos os outros doentes. E ainda por cima o quinino esgotou na própria botica. Felizmente, Anchieta tinha estudado as propriedades curativas de algumas plantas e não tinha desdenhado os conhecimentos dos curandeiros tradicionais. Assim, desenvolveu medicamentos que ministrava não só a ele próprio, quando adoecia, como aos moradores e gentios de Caconda. Dava-nos muito jeito ter uma pessoa assim na Chibia!, interrompe-o António José. Isso também eu queria aqui para Mossamedes, mas nada o tira de Caconda. Por lá ficará até morrer, diz Cabral Lapa, convicto. Mas para terminar o que lhe estava a contar… Quando Anchieta chegou, vi uma luz brilhar no escuro. Depressa começou a ministrar um medicamento, à base de leite e de essências de algumas plantas, cuja casca tem as mesmas propriedades da cinchona. Olhe que estive quase a ir desta para pior!, diz a sorrir Cabral Lapa. Estou aqui a passear consigo graças ao Anchieta. Ainda bem! Gosto muito que ainda ande por cá, a receber os amigos como só o senhor sabe fazer, diz Almeida com um sorriso. O médico não esconde o seu agrado pelo que ouve. Ah! Olhe aquela planta ali! Foi trazida por si, lá das Terras Altas. António José espanta-se que tenha resistido e crescido. Mas ali, naquele jardim, a secura não entra. Isto é mesmo um milagre o que consegue aqui de verdura, diz com admiração. Admiração que se repete sempre que vem a este jardim.
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De novo no carro, Cabral Lapa vai dizendo que prefere viver no campo e que por isso mandara edificar nos arredores, na Várzea dos Casados, uma casa onde, nos últimos anos passa mais tempo, sobretudo desde que se reformou da Armada e que outro médico passou a residir na vila. Acho que o meu amigo ainda não a conhece, pois não? Sim, de facto nunca lá estive. E a viagem foi-se fazendo por umas duas léguas, que era quanto distava da Vila. O caminho, que só aquele carro especial torna menos forçado, é irregular e poeirento. Uma grande parte do pó levantado pelas patas do boi-cavalo e pelos rodados do carro não entra na carlinga, protegendo os passageiros. O jovem mundombe, que monta e guia o boi, quase deixa de se ver, envolto na nuvem de poeira. Tudo é aridez, a contrastar com o verde das Terras Altas. António José admira-se como aquela gente conseguiu singrar em lugares tão inóspitos, onde somente os mundombes tinham conseguido «ir-se fixando», calcorreando as terras à procura de pasto para o seu gado, nem sempre fácil de encontrar, a não ser nas margens dos rios Bero e Giraúl quando lhes corre a água pelo sinuoso leito, ou nas dambas enquanto não secam, ou mais próximo de Serra Abaixo. Todos estes pensamentos lhe passam pela cabeça, velozes como os antílopes do deserto, enquanto a voz de Cabral Lapa se vai ouvindo como ruído de fundo. E lá fora, sempre que espreita ao arrepio do cortinado protector, vê ao fundo um ou outro monte escalvado de tons acastanhados e à esquerda o corpo serpentino do rio Bero, seco agora como quase sempre, mas que hoje apresenta uma leve crosta de lodo no lugar do leito, como se quisesse fazer ver que é mesmo um rio e que por ali já houve caudal a correr. Em alguns lugares, a camada de lodo encontra-se gretada pelo sol e por isso faz um arco como se fosse o telhado de uma casa engolida pela areia.
Já na Várzea dos Casados a paisagem muda e começa-se a divisar ao longe uma casa apalaçada, com um estilo pouco vulgar, cujo efeito visual vai aumentando de beleza à medida que se aproximam. E ali está, na margem esquerda do rio Bero, uma vistosa casa, conhecida por chalé da Aguada [5]. O carro entra numa álea de frondosas amoreiras até parar em frente à casa de campo de Cabral Lapa, que convida António José a entrar, após uma pequena pausa ainda dentro do carro para que a poeira se dissipe. Ao jovem condutor são dadas algumas orientações e depois ambos seguem em direcção à porta principal, à qual se chega por uma escadaria de pedra que abre em leque. Chama a atenção os dois pedestais trabalhados que se encontram no início de cada corrimão, suportados por balaústres de pedra de cambongue. Subida a escadaria, logo passam a uma sala cuja geometria não é nada habitual. É triangular, espaçosa, com umas cadeiras de rota onde se sentam. Uma jovem mbali aproxima-se silenciosamente e pergunta se querem limonada ou refresco de goiaba. Almeida diz que prefere o refresco de goiaba, que é menos ácido. Só tenho de agradecer aos fundadores de Mossamedes, que se esforçaram bastante para introduzir, na região, novas espécies de árvores de fruto, trazidas das terras brasileiras de onde vieram, como a goiabeira e a pitangueira. Gosto da goiaba ao natural e também da goiabada. Maravilhoso encontro do fruto com o açúcar. O Brasil!, exclama António José, é uma terra que hei-de visitar um dia. Se tiver saúde. O que podemos aprender com o que lá se faz!! Mas é preciso muito tempo para uma viagem destas. Cabral Lapa interessa-se pelo tema. Também é um entusiasta pelo desenvolvimento de Angola, nomeadamente pelos produtos naturais que necessitam de um clima semelhante. Sim, os fundadores não ficaram pela goiaba, pois quiseram ter à sua disposição outros frutos, como a uva, a azeitona, a lima, a tâmara, a romã, o pêssego e outras mais. Se o clima o permite, porque não introduzir e fazer frutificar todo o tipo de árvores?, regozija-se Cabral Lapa. Concordo consigo!, responde Almeida, com entusiasmo. Mas sabe qual é a árvore por que tenho um especial interesse, até pela forma curiosa como veio cá parar? E não veio do Brasil, não… diz com suspense. Não faço ideia! Tenho-o visto falar sobre todas elas com tanto interesse… Cabral Lapa sorri, confirma com um gesto de cabeça e predispõe-se a contar. Pois, essa árvore é a morus nigra! Como é mesmo?, pergunta António José. Meu amigo, este é o nome em latim da amoreira que dá a amora preta. Ah!, exclama Almeida, pensando que não era de estranhar que aquele homem de ciência começasse por designar a amoreira pelo seu nome erudito, sem ser por exibicionismo. E Cabral Lapa vê ali o momento ideal para contar como a morus nigra tinha chegado a terras mossamedenses.
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Então conte-me lá essa estória das primeiras amoreiras. Parece-me que sei qualquer coisa por alto, mas não me recordo dos pormenores. A sério? Essa é das minhas preferidas, admirou-se Cabral Lapa. Encontrava-me em Loanda, a prestar serviço na Estação Naval de Angola, desde 1850. Tinham decorrido apenas três anos da minha formatura em medicina e da entrada na Armada Real. Em 1854, viajei com um grupo de militares até aqui perto, a Porto Pinda, onde organizámos um estabelecimento militar na margem esquerda do rio Curoca, junto à foz [6]. Não admira que tenha acabado por ficar por cá, comenta Almeida. E foi durante essa estadia que me habituei às curtas viagens até estas bandas, onde fui estabelecendo bons contactos com os moradores, a maior parte deles chegados havia pouco de Pernambuco. Acredito que, para os moradores, ter um médico à mão era um achado, diz António José. Mas ficaram desiludidos quando lhes disse que o dever me chamava a Loanda, aonde regressei em 1855. Contudo, a capital já não me atraía! Tinha ficado definitivamente ligado a Mossamedes e perpetuamente preso ao deserto. Os areais sem fim que uma e outra damba cortavam como lâminas de água, o silêncio mágico dos grandes espaços, ficaram-me na cabeça e comecei a pensar seriamente em regressar a este imenso Sul, o que fiz no ano seguinte e daqui nunca mais saí. Para mim, que adoro plantas, o deserto era um grande desafio. Mas voltando atrás, continua Cabral Lapa, um dia aportou em Loanda uma corveta francesa para fazer aguada e eu, como oficial da armada, recebi-a na Estação Naval. Foi quando conheci o meu camarada francês, também médico, pessoa muito simpática, a quem falei de Mossamedes, que valeria a pena pararem na sua grande e abrigada baía. Perante a minha sugestão, lá trouxeram a corveta até aqui, tendo os seus oficiais sido convidados a passar o dia na Fazenda dos Cavaleiros, que pertencia a Bernardino Abreu e Castro, um dos moradores mais importantes do Estabelecimento, àquela época. Anos depois, quando para cá vim viver, soube do desembarque e da bonita recepção que lhes foi feita.
Almeida já conhece todos estes episódios, mas ouve-os sempre como se fosse a primeira vez. O seu anfitrião mostra-se satisfeito em falar desses tempos, já um tanto longínquos, talvez fingindo, como o seu interlocutor, que são novidades. Ambos falam e ouvem, com o mesmo prazer de sempre, as repetidas estórias que envolvem pessoas, animais e plantas. De tudo se fala e se volta a falar.
Mas diga-me, amigo Almeida, não quer mudar-se para Mossamedes? Gostaria de o ter como vizinho. E apesar de tudo, esta é a mais importante povoação do Sudoeste angolano. Precisamos de si aqui, uma pessoa de iniciativa, com rasgo para os negócios, inovadora. Venha para cá! António José sorri e sugere um não com um leve abanar de cabeça. Caro doutor, o litoral não é para mim, que sou um homem nascido e criado nas terras altas, habituado à água doce dos rios e à verdura dos matos. Gosto de cá vir, passar uns dias, tratar de assuntos, ver amigos, mas não é a água salgada do mar que me mata a sede enorme que estes areais suscitam. Preciso de verde, de chuva e de animais. Que pena!, exclama Cabral Lapa. A Chibia encontra-se em pleno desenvolvimento e tem uma óptima localização, entre o Humbe, onde continuo a manter actividades, a Humpata e o Lubango, que ultimamente também se têm desenvolvido bastante. Agrada-me viver lá, tem um clima suave como o do resto do planalto, e dá-me a tranquilidade necessária para eu tratar das múltiplas tarefas a que me dedico. Pelo menos tente!, insiste o sim‑ pático anfitrião. Olhe que o deserto tem muitas miragens que nos atraem. António José sorri. As miragens que me atraem não são as do deserto, são as das florestas que produzem a borracha, as dos canaviais que produzem o melaço com que se faz o açúcar e a aguardente, as das chanas onde nasce o capim que alimenta os bois. Este foi e será sempre o meu mundo, caro doutor. Está visto que não consigo fazer com que mude de ideias e de morada. Mas não faz mal, desde que venha até cá, mesmo de longe a longe, já não é mau. Entretanto, Sapalo volta a aproximar-se, silenciosamente como sempre, trazendo sumo fresco de fruta para os dois amigos. António José saboreou a sua aproximação com mais gosto do que o próprio sumo. Cabral Lapa, atento a tudo, teve a certeza agora do que já desconfiara. O que para ele não era nada de estranhar, pois conhece a fama de dom Juan do seu amigo. Mas tal não o incomoda, pois Sapalo é solteira e aberta nos seus relacionamentos. Ele também sabe que uma relação sem compromisso entre os senhores e as suas criadas ou trabalhadoras não é nada fora de normal. Todos o sabem.
Que bom este sumo!, comenta António José, olhando para Sapalo. Por falar em fruta, não quer levar para a sua terra uns pés de algumas das nossas árvores de fruto? E, já agora, termino o que lhe estava a contar sobre a amoreira. E Cabral Lapa fala da recepção dos franceses, em que estes fizeram larga referência à amoreira preta e ao facto de ser muito resistente, ter um bom porte, dar muita sombra e produzir bom fruto. Essas referências levaram Bernardino Castro, o anfitrião, a mostrar aos franceses ter muito interesse em poder vir a receber exemplares dessa espécie de amoreira em Mossamedes. E assim aconteceu. O comandante francês, mal chegou à sua terra, tratou de enviar alguns pés da planta. Chegado aqui, António José interrompe, perguntando se as amoreiras que ladeavam o corredor de acesso à casa tinham origem nessas. Claro!, exclama Cabral Lapa. Todas as amoreiras pretas de Mossamedes, infelizmente muito poucas hoje, são descendentes da que chegou cá por essa via. De França tinham enviado um caixote com quatro plantas, protegidas num casulo de musgo, para que se conservassem vivas na longa viagem. Entre Loanda e Mossamedes, morreram umas e desapareceram outras, chegando um exemplar apenas ao destino. Um só? Sim, um só! E foi o suficiente para ser o primeiro antepassado das amoreiras desta terra, diz Cabral Lapa. Sobrevivente essa que foi entregue à nova terra já com a minha ajuda. Era um exemplar monóico, pois garantiu a possibilidade de se reproduzir, acrescentou com alegria. Mas os moradores acabaram por se desinteressar da amoreira e empenhar-se muito mais no algodão, na cana sacarina, na videira e nas oliveiras, que é o que vê mais por estas hortas.
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Cabral Lapa, apontando para Sapalo, diz que ela é sobrinha dum grande artista. Pintor?, pergunta Almeida, interessado. Pintor de escopro e martelo. É pedreiro? Mais cantoneiro do que pedreiro. Faz estelas e cruzetas funerárias em pedra de cambongue e pedra sabão, muito apreciadas e procuradas pelas famílias mbali quando lhes morre alguém. Foi Victor Jamba, o tio de Sapalo, que decorou a escada exterior por onde entrámos, a partir do desenho que fiz dos balaústres dos corrimãos, assim como as esculturas onde eles terminam. Reparei nessa escada, refere Almeida. E passa-lhe de seguida pela cabeça um breve, mas saboroso pensamento: «Difícil mesmo seria não reparar nela… na Sapalo.» Cada vez mais se sente atraído pela beleza singular da jovem quimbari. De Maria Mendoça há como que um leve esvaziar de interesse, cujo vazio vai sendo ocupado por Sapalo. O anfitrião, que o conhece bem, nota a sua momentânea distracção e apercebe-se do seu olhar matreiro para a criada. Então? O que ia a dizer sobre a escada? Ah!, pois… é que não é coisa de se ver com facilidade por estas terras, onde a arquitectura ainda é incipiente, tirando a de Benguela e Loanda. Isso é verdade, diz o anfitrião, sem esconder o agrado com que ouve o convidado. O artista foi escravo de um dos mais proeminentes proprietário da região, com fazendas no Curoca e no Bentiaba. Vendo que o rapaz tinha uma grande habilidade de mãos, quis desenvolver-lhe as qualidades artísticas no trabalho da pedra, pelo que o alforriou, enviando-o depois a Lisboa para ali refinar a arte da cantaria. Interessante!, diz António José, voltando a distrair-se com Sapalo. Esta mostra-se feliz. Fica sempre assim quando enaltecem as qualidades artísticas de seu tio, pois intui que esse enaltecimento abarca a família Jamba por inteiro. Está a ver, caro amigo, como consegui decorar a fachada da minha casa da vila? Eu desenhava e o Victor Jamba replicava na pedra. António José admirava-se de como havia sempre qualquer coisa surpreendente com o seu amigo Cabral Lapa. Confirmou que já tinha ido a cemitérios mbali e que sempre os achara muito interessantes. Para a próxima não posso deixar de ver as estelas que foram trabalhadas pelo tio de Sapalo, disse, olhando para ela, que, sorrindo, baixa os olhos.
Bem! Como já passa do meio-dia e deve estar com fome, vamos ao almoço, diz o anfitrião. António José agradece, avançam para a sala seguinte e encontram ali a senhora da casa, dona Celeste, que orienta os serviçais na organização do almoço. António José cumprimenta-a cerimoniosamente, mas dona Celeste acolhe-o com afabilidade, alegrando-se com a companhia. Se a primeira sala é estranha por ser triangular, esta é-o mais ainda, pois tem dentro uma grande árvore cuja copa rasga o tecto e o telhado e se projecta frondosa no lado de fora. Percebendo a admiração do convidado, Cabral Lapa explica que, sendo raras as árvores frondosas na terra, não fazia sentido abater aquela para fazer a casa. Não se sabe como aquela marula tinha nascido e crescido ali. É a única marula da zona, explica. Talvez tivessem trazido alguma semente do Mucope, onde são vulgares. Assim, ergui as paredes da casa com ela dentro. Foi a sua primeira habitante, antes mesmo de mim. E fico feliz pela minha decisão, pois tenho uma bela árvore, cuja copa faz sombra nos dias de calor e, assim, a minha casa conserva-se mais fresca. Para além disso, colho os seus frutos e com eles faço um bom licor, um óleo belíssimo para a pele e outras coisas interessantes e que um dia destes lhe conto. Ah!, e temos a melodia dos pássaros que nela poisam. António José está verdadeiramente encantado com as explicações do seu anfitrião e amigo e sabe que na Europa se desenvolvem as artes arquitectónicas e decorativas com aqueles pormenores que ali vê. Dona Celeste completa alguns pormenores e outras vezes admoesta mansamente o seu marido para não ser maçador. António José pensa para si como é engraçado este casal, cuja matriz europeia se mantinha tão forte, apesar de se encontrarem há tanto tempo afastados da Europa. Dona Celeste até já havia nascido em Pernambuco e chegara criança a Mossamedes. Ambos, pela educação e pela força dos apelidos, deixavam transparecer uma origem, provavelmente, aristocrática. Mas integravam-se de uma forma invulgar, um tanto excêntrica até, no meio. Amavam aquela terra e empenhavam-se, notavelmente, no seu desenvolvimento.
Após a refeição, Sapalo traz-lhes um doce de colher delicioso. Cabral Lapa explica, com ar maroto, que é baba-de-moça, um segredo culinário da família de sua mulher, trazido de Pernambuco. E ficam na sala, de facto bastante fresca, não só por causa da árvore, mas porque há um sistema engenhoso de correntes de ar. Bebem, então, do licor de marula que o dono da casa prometera, seguido de um saboroso café da Bibala. António José conhece bem a marula, muito vulgar nas suas terras, assim como a bebida, bastante alcoólica, que se produz a partir do fruto. Mas confessa que um licor como aquele nunca tinha tomado. Está mesmo delicioso!, exclama. E levado pelo entusiasmo homenageia dona Celeste com um brinde, enquanto olha de soslaio para Sapalo. Os copos tilintam, a alegria aumenta. E, no início da tarde, continua a observar como Cabral Lapa é um ser especial, caracterizado por uma independência de espírito fora de vulgar, amigo do seu amigo, bom médico e, para além dessas qualidades, dono de uma habilidade de mãos singularíssima. Em visitas anteriores, já se tinha admirado ao perceber que o seu amigo era tão bom no manejo do bisturi como no da enchó, da plaina, do martelo ou da agulha. A sua autonomia ia ao ponto de ser ele quem fazia o que vestia, o que calçava e até os chapéus, que usava com graça. E tudo com muita qualidade, a tal ponto que havia muita gente que acredita que ele os recebia da Europa ou do Cabo, através dos navios que, por vezes, faziam aguada no porto de Mossamedes. António José ficou a saber que é ele próprio que os desenha, os corta e os acaba. Tudo com um gosto refinadamente europeu, de facto. António José aproveita para contar ao seu amigo que tinha dado um uso muito especial ao chapéu que ele lhe tinha oferecido em visita anterior. Cabral Lapa admira-se. Pois ficou para a posteridade esse chapéu, que está representado numa pintura a óleo feita por um pintor que passou pela Chibia, o Rosemberg. Tenho esse óleo na parede de minha casa e, como vê, é com muita frequência que penso no meu amigo. Cabral Lapa fica feliz com o elogio e logo aproveita para pedir a António José o contacto de Rosemberg, pois anda com a ideia de embelezar ainda mais as paredes de suas casas e queria encomendar-lhe alguns quadros. É o meu chapéu preferido! Todos os outros são feitos pelas mãos rudes dos bóeres, bons, muito resistentes, mas sem graça.
Terminada a bebida, o simpático anfitrião convida a sua visita a dar um passeio higiénico no exterior, pois já o calor abrandara e a tarde estava linda. Quando se dirigiram ao pomar, Cabral Lapa diz-lhe que irá mandar recolher uns pés e umas sementes para os oferecer a Almeida, para que este as plantasse e semeasse na Chibia. Vai levar daqui sementes de pitanga e pés de romã e de amora. Óptimo!, exclama Almeida, satisfeito. Vamos ver se consigo que cheguem lá em boas condições. Acho que o clima do planalto é favorável ao seu crescimento e desenvolvimento.
Meu caro, não o vou deixar sair daqui a esta hora. Fica cá esta noite e amanhã, pela tardinha, vai ter com o seu irmão. Ele não estranhará que não regresse hoje. Eu avisei-o, não se preocupe. António José ainda esboça uma desculpa, mas é em vão. Para além da persistência do seu anfitrião em querê‑lo mais algumas horas a fazer-lhe companhia e a ouvi-lo nas suas inúmeras estórias, ele próprio sente-se bem ali, tem todas as comodidades já desejadas pela longa e dura viagem de carro-bóer e gosta de ter Sapalo por perto mais algum tempo. Amanhã podemos dar um salto até às margens do rio Bero para lhe mostrar a amoreira Eva. A amoreira Eva? Nunca ouvi falar, diz Almeida a fingir surpresa. Cabral Lapa ri-se e diz-lhe que trata assim a tal primeira amoreira que nasceu, cresceu e sobrevive ainda no paraíso das margens do Bero. Oh! Se vou gostar de ver! Sairemos cedo, pela fresquinha e vamos até lá. Vai ser um bom passeio, vai ver, diz Cabral Lapa. A tarde decorre em passo lento pelos arredores da casa e em conversas que crescem em estórias e enredos. A bebida com que tinham iniciado a tarde desinibiu a conversa, até que Cabral Lapa é claro para com o seu convidado, dizendo-lhe que se quiser ter uma noite mais animada lhe ensinará o caminho para a mais bela das miragens. Lá vem o doutor com as suas miragens! Eu já lhe disse que não troco o meu planalto pelo litoral. Cabral Lapa sorri. Mas o quarto de Sapalo é uma miragem das que gosta, ou não? Pareceu-me… António José suspira e faz um sinal afirmativo com a cabeça. Mas ela não espera por mim, como posso ter a certeza de que me receberá bem? No quarto ao lado do seu, só terá de ver se a porta não está fechada à chave. E ambos entrelaçam suas gargalhadas bem-dispostas e seguem um carreiro estreito que os leva aos fundos da casa.
[1] Mossamedes, Moçâmedes: estabelecimento fundado em 1849-1850 por luso-pernambucanos. Passou a vila em 26 de Março de 1855.
[2] Mundombe: havia na época um conjunto de ongandas na vizinhança do Vale dos Cavaleiros, na Quipola (Kipola), habitadas por mundombes (ova-ndombe), povo do grupo étnico herero, hoje denominado cuvale (kuvale). (H)
[3] José Alberto de Oliveira Anchieta: explorador e naturalista português que, entre 1866 e 1897, viajou intensivamente em Angola, recolhendo e coleccionando animais e plantas. Nasceu em Lisboa, a 9 de Outubro de 1832, e viria a falecer em Caconda, onde residia, em 1897.
[4] Caconda: povoação antiga do interior de Angola, fundada no século XVIII.
[5] Chalé da Aguada: também conhecido por Chalé da Horta da Nação. (Dispon. em: < http:// mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/2011_06_27_archive.htm >)
[6] Porto Alexandre: povoação fundada em 1860, em Porto Pinda. Com a independência de Angola, passou a designar-se Tômbua.
Jorge Manuel de Abreu Arrimar nasceu em Chibia, Huíla (Angola), em 1953. Na década de 1970, criou com amigos o Grupo Cultural da Huíla (Grucuhuíla). Estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Luanda, tendo concluído a licenciatura em História e especializando-se em Ciências Documentais. Foi professor de português em Açores, onde dirigiu, com Carlos Loureiro, um suplemento literário chamado Página Africana.
Publicou, entre outros títulos, Ovatylongo (1975), Poemas (1979, em parceria com Eduardo B. Pinto), 20 Poemas de Savana (1981), Murilaonde (1990), Fonte do Lilau (1990), Secretos Sinais (1992) e Confluências (1997, em parceria com Manuel Yao). Em 1985 radicou-se em Macau, onde ocupou o cargo de diretor da Biblioteca Nacional. É colaborador do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro e prepara uma Antologia de Poetas de Macau em parceria com Yao Jingming. Reside hoje em Portugal.
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