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CUÉLE, O PÁSSARO TROÇADOR, DE JORGE ARRIMAR: EPOPEIA DA RESILIÊNCIA NO SUDOESTE ANGOLANO

Por José Luís Mendonça

 


0 RUMINAÇÃO


Uma justificação válida para que alguém leia o livro de Jorge Arrimar, Cuéle, o Pássaro Troçador, é a razão apontada na página 25, pelo autor: “Neste texto – pontualmente visitado pelo cuéle, o pássaro do canto trocista que persegue os nossos fracassos e contradições –, a história mistura-se com ficção, fazendo da realidade apenas um ponto de partida para a literatura. São poucos, dispersos, os vestígios que a história guarda da maior parte das pessoas que estão por trás das personagens que estruturam este livro. Uma das principais personagens é forjada a partir de António José de Almeida, (…) sobre a qual não se sabe muito, pelo menos à dimensão da importância que teve na sua época.


De outras figuras da vida e da história do Sul de Angola ainda menos se fala, menos se sabe. Chegaram até nós apenas breves apontamentos, quase sempre distantes do seu quotidiano, do seu pensamento, das suas alegrias ou das suas tristezas. Assim acontecia, e ainda acontece, com as figuras marcantes das sociedades tradicionais, dos seus sobas ou hambas, das suas famílias, das suas circunstâncias. E quando se aponta, se estuda, se conversa e se especula também, são quase sempre os mesmos (Jinga, a norte; Lweji, a leste; Mandume, a sul). Atrevi-me a imaginar como teriam vivido algumas pessoas do Sudoeste angolano, o que teriam pensado, desejado e sofrido. Algumas delas são Igura, do Cuamato Pequeno; Hangalo, do Mulondo; Amúli, de Quipungo; Nande, do Cuanhama; Cariparula, do Cuamato Grande; Tchakuhílua, do Caholo; Caturiende, da terra Cuvale. E é com uma dessas personalidades que inicio este livro, uma viagem onírica, um capítulo apenas, mas que é, afinal, a condensação metafórica do tempo (e suas gentes) em que esta narrativa se amarra.”


Este romance podia ter saído a público com outro título. Ninguém daria a uma obra ficcional de pendor historiográfico, um nome de pássaro. É preciso uma dose suficiente de alma poética e de guardador de rebanhos habituado ao campo, para imortalizar o pássaro troçador, cuéle, no extenso daguerreótipo que vai desde finais do século XIX até quase ao fim do século XX, o animal poisado sobre um carro bóer que a história dos suis de Angola guarda no seu pulmão. É preciso existir neste mundo a pessoa de Jorge Arrimar, com esse olhar troçador de eterno candengue na face, para nos brindar com este livro.


Esta e outras obras de Jorge Arrimar têm sofrido uma injustiça na história da literatura angolana contemporânea. Já é tempo de merecerem o devido reconhecimento e louvor, seja através do Prémio Nacional de Cultura e Artes, seja através do seu estudo por parte dos peritos na matéria.

 

Canta, então, ó Cuéle!

 


I TRAÇADO GEO-DISCURSIVO

 

Cuéle, o Pássaro Troçador é uma obra do género imortalizado por Homero, há milénios: estamos perante um imenso e intenso poema épico, uma epopeia, de cuja acção central nos ocuparemos mais adiante.


Estamos perante um subsídio valioso para a narrativa meridional da Literatura Angolana. Um hemisfério do campo literário angolano que já conta com nomes sonantes como Henrique Abranches, Ruy Duarte de Carvalho, Paula Tavares, Aníbal Simões, Sousa Jamba.


Para se construir um texto com esta dimensão lexical e histórico-cultural, o autor, como é óbvio nos cultores da grande literatura de qualquer país, bebeu de múltiplas fontes: anotámos mais de 100 fontes bibliográficas, sem contar com o elucidário iconográfico no final da obra, mais uma fonte viva, oral, que narra um episódio muito interessante, na página 342, sobre o esfriamento das pontas de flechas ardentes de zagaia.


Dando parte das suas características discursivas, diremos que esta epopeia se enquadra na linha sígnica, estética e mitológica do realismo feiticista, do qual emana um odor a pemba multicolor, um tanto ou quanto diferenciado dos odores do realismo mágico latino-americano, embora tenha com este algumas intersecções, ainda que atravessadas apenas pela imagiologia do intertexto. Faz parte do feitiço o pássaro cuéle, que entra com 26 cantares premonitórios ou meramente expletivos, do princípio ao final do romance, como que a troçar de nós próprios, leitores angolanos, nem o próprio Arrimar saberá porquê.


Na verdade, pela tessitura da fala eloquente dos narradores, e pela centralidade da fundação de novos povoamentos ou da sua extinção sob a égide do clã familiar, pela colação de mitos, línguas, e do esforço conjugado, por vezes, sacrificial, de muita gente num ambiente multicultural, sobretudo pelas narrativas das guerras e seus heroísmos e traições, este é um romance que bebe da sequência memorial de Cem Anos de Solidão. Contudo, este Cuéle contrasta com a Solidão de García Márquez, no compacto adobe feito de terra amassada e capim de que se compõe o choque de civilizações (a dos povos Bantu e a do povo Lusíada). Aqui há, não propriamente uma solidão caracterizada pelo remoto isolamento de Macondo, mas outra solidão, a que procede da constância da guerra, na qual os homens estão em interacção, só que isolando, negando o outro, com a solidão perene da morte, ou efémera da fome e do trabalho forçado.


Uma particularidade é a continuidade dos diálogos na própria narração, como parte intrínseca dela, sem recorrer aos dois pontos e ao travessão, ou às aspas. O estilo, a essência suprema da literariedade, apresenta uma riqueza verbal impressionante, para além das construções metafóricas e de outro âmbito figurativo. Este livro contém quase todos os nomes das coisas locais nas suas variadas línguas, tanta coisa capaz de preencher livros sobre botânica, fauna, geografia, antropologia, indústrias, e outros domínios que fazem de Cuéle um repositório dos usos, costumes, espaços e história dos povos do Sudoeste de Angola e que situam a sua narrativa no ideário dos fundadores do apócrifo Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, lançado em 1948, e que teve curta vida, mas que vive até hoje pelo seu slogan “VAMOS DESCOBRIR ANGOLA”. 

 

 

II PROPOSIÇÃO

 

Que Angola é que se descobre nesta epopeia de Jorge Arrimar?

 

Na proposição ou exórdio, Nande ya Hedimbi, o hamba da grande nação cuanhama, aparece como figura representativa do verdadeiro herói da epopeia, os povos de toda aquela região, diríamos mesmo, de toda a Angola inventada pela potência colonial, e na altura em que Nande fala, “entalados entre os interesses opostos dessas duas tribos de brancos” (alemães e portugueses). (32)


Serve como introdução do ponto central desta narrativa o falhanço da Sagrada Aliança Ovambo. Como sempre, desde que os portugueses entraram no litoral do território que hoje é Angola, “a formiga-branca nunca vem sozinha, tem sempre com ela o manhéu, a formiga-negra, que vai deixando o cheiro a morte por onde passa.” (33) E Nande prossegue: “A nossa terra está a passar por um tempo perturbado e perigoso, com salalé a esvoaçar cada vez mais perto, a construir uma cintura de morros – que eles chamam fortalezas – à nossa volta.”

(…)


Esgotado, deixa o olupale e entra na sua residência. Atira-se para cima da pele de dormir e, finalmente, encontra os caminhos do sono… e do sonho. Vê-se a cavalgar ao longo do rio Cunene, solitário, sem ter a segui-lo a sua guarda pessoal, a matilha de cães, os seus lengas. Só o seu cavalo relincha e a água do grande rio se agita junto às margens que não conseguem detê-lo. Um dongo, uma canoa escavada num tronco de mulemba leva Nande a favor da corrente. (…) Espanta-se por ir a cavalo ao longo da margem e, em simultâneo, encontra-se sentado num dongo. Mas o certo é que vai nos dois lados, no da água e no da terra e ouve a voz rouca das efumas, as grandes rãs, que as chuvas fazem engordar como bois. Ah, os bois! (…) O dongo leva-o para lá do leito inicial, junto a Xangongo, enquanto o cavalo o transporta a galope, sempre a galope. (…) Nande vê muitos guerreiros em batalha contra os soldados, brancos e pretos, do Exército português. (…) Nande vê o que nunca vira antes, a batalha que dera a maior vitória de sempre aos povos do Sudoeste. (…) Ergue-se na garupa do seu cavalo e no dongo que o leva e vê o seu homólogo do Cuamato, o hamba Igura, a rir-se para si. Para si, ou de si?, questiona-se, quando o ruído das armas deixa passar o som daquele riso que nunca mais lhe sairá da cabeça. E o do grande rio que ruge e lambe muitas margens das terras da Matala, de Capelongo, do Matunto, do Mulondo, do Quiteve, do Cáfu.(…) Ouve-se o cantar de um cuéle que se prolonga como se fosse um eco e as águias pescadoras, de peitos brancos alindados por uma penugem castanha-dourada, pescam kimáias que depositam no dongo, um tributo ao soberano Cuanhama.


Um arco-íris envolve-o já perto do Chitato e vê como a espuma se solta no ar, branca e fofa, como a que se forma no leite acabado de sair do úbere cheio das suas vacas. E as águas do rio engolem o dongo e o cavalo, mergulhando ambos por entre os penhascos e rochedos afiados como facas. No fundo, bem no fundo, um jacaré de dentes grandes como penedos abre a bocarra descomunal. Nande acorda apavorado e deixa escapar um grito que se confunde com o trovejar das quedas de água do Ruacaná.” (34 a 36)


Neste capítulo zero, se introduz também o tema central do romance: a tardia colonização dos territórios mais a Sul de Angola.


Sobre este tema, socorremo-nos, a título elucidativo, da trilogia “ANGOLA - Desde Antes da sua Criação pelos Portugueses até ao Êxodo Destes por Nossa Criação” de Carlos Mariano Manuel, médico patologista e Professor Universitário formado pela Universidade de Humboldt em Berlim. Lancemos um olhar sobre o capítulo XV (A Conferência de Berlim sobre a África).

Como escreve Mariano Manuel na página 953, Capítulo XVI, “o principal resultado da Conferência de Berlim não foi a divisão de África, pois as discussões limitaram-se às bacias do Congo e do Níger…” “O principal resultado do conclave consistiu no nascimento de um novo Estado, (o Estado live do Congo) forjado à margem da conferência…” “…depois dela, alguns países europeus tiveram de se dedicar denodadamente (…) às regiões onde reclamavam possuir direitos de soberania, adquiridos antes da realização da conferência”.


Assim aconteceu com os territórios do Centro-Sul, Sudoeste e Leste de Angola, cuja ocupação colonial efectiva só teve início após 1885, data do término da Conferência de Berlim. Esta empreitada, que consumiu milhares de homens em armas, e durou mais de um século, é descrita no livro de Jorge Arrimar, Cuéle, o Pássaro Troçador.



IV DEDICATÓRIA

 

Esta epopeia é dedicada ao Passado. Isso mesmo, o Passado, com letra maiúscula, “que, embora parecendo que fica para trás, ‘anda sempre connosco. Mais ainda, vai à nossa frente – o futuro só o vemos através desse passado’ (lê-se na página 11, citando Afonso Cruz), “Ou, como se diz em Shahryar e as Memórias Imaginadas, ´o meu modesto sucesso […] em decifrar os meus achados, pobres que eram, comprova apenas a necessidade de avançar para o futuro, sem hesitar e com o passado pela mão.’”


També Arrimar dedica este livro “a Carlos Estermann, meu amigo e mestre, pelo que me transmitiu e ensinou da cultura dos povos do Sudoeste angolano.”

Sobre estas dedicatórias, voltaremos a elas no final desta apresentação, quando falarmos sobre os efeitos indeléveis do Encontro de Civilizações nesta parte de África e da inerência da conflitualidade no território angolano e nos outros territórios do berço da Humanidade, até aos dias de hoje.

 


V NARRAÇÃO

 

A casa de campo do médico Cabral Lapa, na Várzea dos Casados, em Moçâmedes, província do Namibe, tem numa das salas, uma enorme árvore do Sul de Angola, uma marula, “cuja copa rasga o tecto e o telhado e se projecta frondosa no lado de fora. (…) Cabral Lapa explica que, sendo raras as árvores frondosas na terra, não fazia sentido abater aquela para fazer a casa. (…) Assim, ergui as paredes da casa com ela dentro. Foi a sua primeira habitante, antes mesmo de mim. E fico feliz pela minha decisão, pois tenho uma bela árvore, cuja copa faz sombra nos dias de calor e, assim, a minha casa conserva-se mais fresca. Para além disso, colho os seus frutos e com eles faço um bom licor, um óleo belíssimo para a pele e outras coisas interessantes e que um dia destes lhe conto. Ah!, e temos a melodia dos pássaros que nela poisam. António José está verdadeiramente encantado com as explicações do seu anfitrião e amigo.” (72)

 

Quem aqui chega na leitura de Cuéle, capítulo V do Livro I, já terá tido contacto, para além de Nande ya Hedimbi, hamba do Cuanhama, com António José de Almeida, “filho-do-país, cujas veias são irrigadas com o sangue misturado de África e da Europa, (e que) é dos mais respeitados habitantes do Sudoeste angolano” (37) António de Almeida é um morador, termo que designava, em 1895, quem vivia sob influência cultural europeia (brancos, negros e mestiços). A visita à casa do doutor Cabral Lapa, em Mossâmedes, é o fim de um itinerário que começou na Chibia e passou pelas terras de Jorge Mendonça, no Chão da Chella, onde António cairia de amores por Maria Mendonça, filha de Jorge. Tratou-se de uma viagem a partir da Chibia, ida e volta, para registar a Sociedade Almeida & Irmão, com o seu irmão Francisco. Não uma viagem qualquer, mas uma quase aventura sentados num carro-bóer puxado por uma espana de vinte bois de tracção e dez de reserva, “pois em média, quatro deles morrem em cada viagem, e é preciso ir substituindo os mais cansados e doentes por outros. Como exército de apoio desta navegação terrestrea que percorria três quilómetros por hora e vinte e cinco por dia, viajavam: o pastor Kakuêndje, o manobrador do travão Mbliki”, e outros cinco, entre carregadores, caçadores e guardas, sem esquecer o “candeeiro, o jovem que vai à frente da espana e que, sendo preciso continuar viagem quando já se faz escuro, leva um candeeiro de campanha a iluminar o caminho.” O capítulo narra o esforço denodado desta dupla para promover o desenvolvimento da Chibia com engenho e de açúcar e aguardente e plantação de diversas culturas, como algodão (o ouro branco de então) e café e negócios daborracha e marfim, gado, peles, urzela e até cera. Mas também nele se narram combates, se fala de um aguerrido chefe, Vita ou Orlog, de um pintor chamado Rosemberg, da pólvora com a qual se fez explodir Silva Porto no Bié, a 2 de Abril de 1890, por desentendimento com o soma Ndumduma, de Mutu iá Kevela, Também se conta o episódio da dupla Mutu iá Kevela-Samacaca, grande feiticeiro sacunganga da corte, aquando da investida contra os comerciantes brancos, alguns, os mais fortes feitos escravos e outros vendidos aos sobas aliados. Seriam estes libertos por um comerciante autóctone de nome António Cosme. “É, sem dúvida, uma grande ironia!, que alguns dos últimos escravos em Angola tivessem sido homens brancos, e o homem que os libertou um próspero e generoso comerciante negro." (125)


Em 1904, dez mil guerreiros, alguns possuidores de armas de fogo formam o exército de Igura, o grande hamba do Cuamato Pequeno, iniciam a caminhada bélica até ao Vau do Pembe (Umpungo), onde derrotam o exército português comandado pelo tenente João Roby. O chamado “Desastre do Vau do Pembe”, no Cuamato, ocorreu a 25 de Setembro de 1904.


No ano seguinte, dá-se desforrra. Em Mulondo, o exército português e seus auxiliares negros destroem tudo e todos com bocas de canhão e uma fuzilaria atroadora. Hangalo, o soba que tinha uma garfonola que tocava a Heróiva de Beethoven, é capturado, seviciado e é-lhe cortada a cabeça.


Em 1907, a tropa comandada por Alves Roçadas, oficial luso subjuga todos os povos Ovambo, até Chaúla. “Estava a vingança portuguesa concluída e todo o Cuamato rendido pela derrota.” (174)


O Livro 2 começa numa Chibia moderna, com carros a motor e com o filho de André Vidal de regresso à terra dos seus progenitores. Ali estão os espíritos da sua avó Beatriz, costureira e modista, e da sua comadre e amiga Comachine Alexandrina. A narrativa sofre uma analepse, e voltamos aos tempos de António José de Almeida, quando surge o pai de André, Joaquim Vidal, o tocador de flauta transversal, ou caçador de sons. Nele se fala da grande saga dos bóers chegados ali em 1881, cinco anos de trek pelo deserto, sessenta famílias transportadas em duzentos e vinte e sete carros puxados por bois. Esta parte do livro é prenhe de onomatopeias, cantos locais e gritos dos carreiros das expedições militares com degredados para se transformarem em agricultores e artífices. Há descrições impressionantes da vida no Quipungo, com a figura patriarcal de Amúli, o soba,  que distribui o jantar para as suas quatro mulheres. Joaquim conhece António José de Almeida. Também se fala da introdução do camelo nesta região.


Como se diz na página 273, “Tudo converge para o desastre total naqueles longos cinco anos, de 1910 a 1915, e que tiveram o peso das décadas. É um tempo, mais do que os outros, dos militares e dos guerreiros, das espingardas e das zagaias.” O tempo da Primeira Grande Guerra, com os alemães por perto. No dia 18 de Dezembro de 1914, a coluna de Alves Roçadas é desfeiteada em Naulila, pelos alemães aliados a Shetekela, soba do Cuamato Pequeno.


António de Almeida morre em 1924, de uma doença causada pela picada do mosquito, a biliosa anúrica. Poucos anos antes, tinha sofrido o maior desaire económico da Sociedade Almeida & Irmão, numa tentativa de comercializar com as Luandas, região de anharas e caminhos ínvios, onde bois e carros ficaram atolados numa caravana enorme, cuja perda foi igualmente colossal.

Nascem novos homens e mulheres que darão continuidade às vidas dos seus progenitores: uns brancos, outros, mestiços. Nos quimbos, os autóctones reproduzem-se. A famosa Casa Tchincóto ainda perdura. Em 1935, aparece a primeira avioneta na Huíla, saída de Benguela e pilotada por um descendente de António de Almeida. Novas famílias surgem, entretanto. A viúva de Joaquim, o rei dos sons, inaugura uma fábrica de manteiga. A maldição do Hongolo, os mosquitos cuja tradição diz serem os vingativos guerreiros humbe sacrificados pela ivasão colonial, continua a levar os melhores filhos da terra.


“… tudo se repete, repete, até ao final dos tempos”, lê-se no final do capítulo zero do Livro III. E logo no capítulo seguinte escutamos um pássaro que ronca como um porco selvagem”. “É um pássaro de ferro dos brancos que vem a planar como um falcão” e deixa cair “cabaças explosivas e uma chuva de flexhas ardentes” sobre os homens, mulheres e crianças da onganda de Sosina, “território que vai do Hoque à Tchicuêia”, na guerra total, ou Colombola, a guerra dos mucubais, de Novembro de 1940 até Julho de 1941.

 


VI EPÍLOGO

 

Assistimos ao deflagrar da nova Guerra do Nano, ou guerras do Planalto Central. Tudo recomeça nas vésperas da Independência, com o recrutamento e aliciamento de homens e mulheres para enquadramento nas fileiras dos três movimentos, FNLA, MPLA e UNITA. Verifica-se o êxodo de milhares de moradores da região para a Namíbia.


Até que chega o terrível e decisivo ano de 1987. Estamos no Kuito Kuanavale. Muitas batalhas já haviam pisoteado os povos de Angola independente. O salalé que tanto fez temer Nande, no início desta narrativa continua, aliado às formigas pretas, como sempre aconteceu desde que os portugueses aqui chegaram há cerca de 100 anos. Agora, são os povos de Angola divididos a auto-destruirem-se com ajuda de sul-africanos contra cubanos. 15 mil soldados cubanos aportam ao Nano. “Mesmo assim, os assaltos  do inimigo prosseguiram até 23 de Março de 1988, levando-nos a recuar para os arredores de Cuito Cuanavale, onde sofremos bombardeamentos de artilharia da aviação sul-africana, nas colinas de Chambinga. (…) Pelos vistos, derrotados não havia nenhum… só feridos e muitos mortos. E as forças estrangeiras tiveram de se retirar, por exigência do Acordo Tripartido entre Angola, Cuba e a África do Sul. Mas a guerra continuou mesmo sem eles…”, relata o narrador Caulilécua, filho de Caturiende, mucubal apanhado na infância pelos colonos na fatídica batalha do Colombola e criado, primeiro na Chibia e depois resgatado pela família de origem. Caulilécua é agora soldado das FAPLA.


Ferido em combate, Caulilécua vem para Luanda em tratamento. É aqui que conhece o comandante Cahosi, que não é outro senão um dos muitos netos mestiços de António José de Almeida.


Nas páginas 396 e seguinte, vemos este majestoso filme chegar ao seu epílogo. Caturiende regressa à sua onganda de Soiona, à sua família, aos seus bois. E como é belo este final, chave de ouro de uma narrativa feita com esmero e dedicação para nos apresentar muitas estórias da História desconhecida do Sudoeste angolano: “Um torvelinho de vozes chega até mim, a de meu pai Caturiende, a do comandante Cahosi e a da dona Beatriz…”

 

 

VII REGURGITAÇÃO

 

Fechamos a nossa apresentação, com um regresso às dedicatórias, tal como prometido. Qual o valor do Passado? Afonso Cruz, citado pelo autor, diz que o Passado “vai à nossa frente – o futuro só o vemos através desse passado” ou como se diz logo a seguir na mesma página 11 sobre “a necessidade de avançar para o futuro, sem hesitar e com o passado pela mão."


Este livro não é somente uma narrativa da História do Sudoeste angolano. Ele incita a um regurgitamento da sua leitura, que nos leve a avaliar e tirar dela uma lição sobre os efeitos indeléveis do Encontro de Civilizações nesta parte de África e da inerência da conflitualidade no território angolano até aos dias de hoje.


No capítulo zero da primeira parte do livro, Fala-se que o chefe cuanhama sonha com “um jacaré de dentes grandes como penedos (que) abre a bocarra descomunal. Nande acorda apavorado e deixa escapar um grito que se confunde com o trovejar das quedas de água do Ruacaná”. E é aqui que gostaria de lançar luz sobre este jacaré de dentes grandes como penedos.


Voltemos abrir outra vez a obra “ANGOLA - Desde Antes da sua Criação pelos Portugueses até ao Êxodo Destes por Nossa Criação” de Carlos Mariano Manuel. Lá se diz que o Governador geral, Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, na segunda metade do século XIX, reiterava para o seu governo central em Lisboa, que “a condição natural da administração d’esta colónia é fazer a guerra, e preparar-se para ela”. Este é a meu ver, o jacaré de bocarra grande e dentes descomunais que apavorou Nande no sonho e nos apavora ainda hoje: fazer a guerra. Este é o nosso pesadelo. Qual a origem deste jacaré e porque é difícil extingui-lo?


A obra de Carlos Mariano que nos serve de guia histórico, refere, a propósito da criação do Congo Belga, que “não se podia esperar que houvesse um sentimento e uma consciência nacionais e partilhados por todos os povos que nele ficaram delimitados.”


O mapa geo-político pós-colonial nunca poderia ter dado certo, por ter sido uma criação colonial, o que constitui um dos maiores paradoxos para com o movimento nacionalista. Em Angola (tal como noutros países africanos), este paradoxo compagina-se num país sob um estado de conflitualidade latente, uma espécie de estado de sítio mitigado, em que os direitos e as liberdades elementares são reprimidos sem apelo nem agravo.


Na obra do Professor Carlos Mariano, diz-se que o Governador geral, Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes, na segunda metade do século XIX, reiterava para o seu governo central em Lisboa, que “a condição natural da administração d’esta colónia é fazer a guerra, e preparar-se para ela”. Este é a meu ver, o jacaré de bocarra grande e dentes descomunais que apavorou Nande no sonho e nos apavora ainda hoje.


A angolanidade é uma ficção da língua portuguesa. Para deixar de sê-lo, temos de proceder à integração cultural, política e económica de todos os grupos que, antigamente, formavam as nações desta parte do continente. A integração cultural passa pela reconciliação linguística.

Carlos Mariano Manuel dá relevo à característica genesíaca de Angola no próprio título da sua obra “ANGOLA - Desde Antes da sua Criação pelos Portugueses até ao Êxodo Destes por Nossa Criação”. Os portugueses criaram Angola. Nós provocamos o seu êxodo de Angola. E depois do êxodo dos portugueses?


O próprio autor aponta para este caminho, na página 1696: “…o conhecimento e a génese das colónias deveriam permitir que não suscitassem escandalosa indignação perante eventuais pretensões de restauração das nações pré-coloniais, suscitadas pela preterição do desenvolvimento dessas áreas (áreas onde vivem os povos de outros grupos etno-culturais) pelas autoridades instaladas nas capitais, à semelhança da prática das autoridades coloniais e de outras práticas nefastas da governação.”


 

José Luís Mendonça nasceu em 1955, na província do Kuanza - Norte, no Golungo-Alto, Angola. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, também exerceu o jornalismo em diversos jornais angolanos.Publicou o seu primeiro livro, Chuva Novembrina, em 1981, integrando a chamada "novíssima geração", expressão escolhida para designar o conjunto de jovens poetas que surgiram nos anos 80, entre eles João Maimona, José Eduardo Agualusa, Lopito Feijoó, Ana Paula Tavares e, João de Melo Membro da União de Escritores Angolanos, José Luís Mendonça, escreveu os seguintes livros: Chuva Novembrina (s/d- saído em 1981), edição do INALD, galardoado com o prémio de poesia "Sagrada Esperança - 1981, no concurso de literatura Camarada Presidente; Gíria de Cacimbo, Prémio Sonangol de Literatura, edição da União de Escritores Angolanos; Respirar as Mãos na Pedra (1989), grande prémio Sonangol de Literatura de 1988, edição da União de Escritores Angolanos; Quero Acordar a Alva (1997), edição do INALD, prémio de Literatura "Sagrada Esperança - 1996" (ex-aequo com Se a Água Falasse, de João Maimona); Logaríntimos da alma. Poemas de amar (1998); e Ngoma do Negro Metal (2000), Edições Chá de Caxinde.

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