Claudio Alexandre de Barros Teixeira[1]
RESUMO: Camilo Pessanha reimaginou a poesia chinesa no idioma português a partir de uma estratégia de leitura e tradução que valoriza o jogo de ideias, a recriação da imagem poética e a modulação sentimental dos textos originais. O autor português desconsidera a regularidade métrica em suas traduções e mantém a construção sintático-discursiva linear, que valoriza a clareza do pensamento, em versos longos, próximos à dicção da prosa. Já nas composições de sua própria autoria, reunidas no volume Clepsidra, Camilo Pessanha incorpora de maneira criativa algumas características originais da língua e da poesia chinesas, como a concisão, a parataxe, a visualidade, a sutileza, numa síntese original das propostas estéticas do Movimento Simbolista com a percepção do Oriente pelo olhar de um poeta português do século XX.
PALAVRAS-CHAVE: ideograma, visualidade, concisão, fragmento, metáfora, tradução.
Camilo Pessanha lecionou Filosofia no liceu de Macau, então colônia portuguesa, onde escreveu ensaios sobre a história, civilização e artes do Império do Meio, colecionou objetos de arte chineses – pinturas, esculturas, caligrafias, cerâmicas, peças de bronze, bordados, joalheria, indumentária –, organizou o primeiro manual que se conhece para aprender chinês: Kuok Man Fo Shu – Leituras chinesas, redigido em colaboração com José Vicente Jorge, e publicou traduções de oito elegias da época da dinastia Ming (1368 a 1644 d. C.), valendo-se de seu conhecimento do idioma chinês – conhecia nada menos que 3.500 caracteres ideográficos. Em carta de 1912 endereçada a Carlos Amaro, o poeta português escreve: “Bem desejaria publicar um dia meia dúzia de pequenas traduções, mas a empresa, a ser a coisa como eu a tenho esboçado, é cheia de dificuldades” (PESSANHA, 1993: 8). Considerando as características da língua chinesa — “monossilábica, escrita sem modulações gramaticais, apenas uma morfologia posicional, com entonações musicais, que servem para diferenciar muitas sílabas que são idênticas”, conforme escreve Donald Keene (LEMINSKI, 1983: 33) e a forma concentrada da quadra tradicional chinesa (絕句, jueju, gênero poético dividida em dois dísticos, com métrica de heptassílabos), o poeta escolheu realizar versões literais, quase todas em oito versos, distribuídos em duas estrofes (mantendo, assim, a relação estrutural com o número quatro, que é duplicado), sem regularidade métrica ou rímica, predominando os versos longos de doze, treze ou catorze sílabas. Na introdução que escreveu para as suas Oito elegias chinesas, publicadas inicialmente no jornal O progresso, de Macau, o poeta escreve:
Traduzi literalmente – tanto quanto a radical diferença entre o gênio das duas línguas o permite. Esforcei-me por não suprimir nenhuma das ideias contidas no original, por adjetiva e acessória que fosse – embora tendo por vezes de sacrificar a essa imposição de fidelidade os longes de ritmo e a relativa simetria da forma que eu desejaria dar à tradução de cada quadra chinesa, na impossibilidade de as traduzir em quadras de versos portugueses. Menos ainda acrescentei fosse o que fosse no intuito de revelar pormenores, ou com a preocupação de falsos exotismos. Isolei a tradução de cada um dos versos, e dentro dela conservei, nos limites do possível, às ideias e símbolos a ordem original. Isto é, da poesia chinesa busquei trasladar com exatidão o que era trasladável – o elemento substantivo ou imaginativo –; porquanto o elemento sensorial ou musical, resultando de uma técnica métrica especialíssima (em que há sabiamente aproveitados recursos prosódicos de que as línguas europeias não dispõem), é absolutamente inconversível (PESSANHA, 1993: 9).
Podemos aqui estabelecer um breve paralelo entre os métodos tradutórios de Wenceslau de Moraes e de Camilo Pessanha: enquanto o primeiro recriava os haiku japoneses (reunidos no livro Relances da alma japonesa, publicado em 1924) na forma da quadra, acrescentando, muitas vezes, informações ausentes no texto de partida, para realçar a paisagem e o clima emocional de cada composição, Camilo Pessanha escolhe outro caminho tradutório, buscando a máxima fidelidade ao sentido original, mesmo que ao custo de fazer suas versões em linhas que se aproximam da prosa. O autor de Clepsidra submetia cada uma de suas traduções à revisão crítica de um eminente sinólogo, o já referido José Vicente Jorge, que, conforme testemunha o poeta, “não só me fez o favor de emendar em alguns pontos a tradução, aproximando-a mais da intenção original, mas forneceu-me ainda, espontaneamente, grande cópia de notas elucidativas” (idem, 77), que acompanham os poemas recriados. Pessanha valoriza a intervenção crítica do sinólogo, apontando que, sem essas notas, “a inteligência dos textos (mesmo sob o ponto de vista estético) ficaria deficiente” (idem).
A importância da literalidade na poesia chinesa, do ponto de vista de Pessanha, reside no “gosto exagerado pela alusão histórica ou literária, que faz com que numerosas passagens, e até poemas inteiros, tenham duplo sentido – um superficial e direto e o outro referido ou simbólico, erudito e profundo” (idem). Portanto, conclui o poeta, “em tais condições, o tradutor que não esteja aparelhado com uma vasta cultura sinológica, navega em permanente risco de soçobrar de encontro a inevitáveis, traiçoeiros cachopos” (idem). A compreensão do sentido literal, colocado em primeiro plano em suas traduções, não significa que o autor desconhecia ou menosprezava a extrema poeticidade inerente à escrita ideográfica, bem ao contrário: o poeta português faz referência à “singularidade estrutural” dessa linguagem altamente concentrada, ao “grande poder de evocação visual” e ao “intrínsico valor estético desses caracteres”, cada um dos quais “é fundamentalmente um desenho estilizado do mais puro gosto e do melhor efeito decorativo” (idem, 59-60). Pessanha menciona ainda a “euritmia musical da frase escrita, na sua transliteração prosódica, que, pela sábia valorização dos tons, é mais rica, mais expressiva e mais perfeita na literatura chinesa do que o de nenhuma métrica europeia” (idem). Sua ênfase na versão literal, portanto, radica numa hipótese de impossibilidade de recuperação plena das qualidades estéticas da escrita chinesa em línguas ocidentais.
Escrevendo sobre esse idioma estrangeiro, tão radicalmente outro, Pessanha destaca o seu caráter tonal, que considera “um elemento prosódico” de “alto valor oratório e poético” (idem, 14), a “imprecisão da linguagem, que no chinês literário é qualidade fundamental, chegando as palavras a não ter significado próprio – tão divergentes e, até, opostas são as acepções de cada uma (idem, 77)” e ainda a “falta de leis sintáxicas que presidam à sua estrutura” (idem), tornando uma frase suscetível a “interpretações mais contraditórias” (idem), qualidades que podem comparar com os princípios da escola simbolista, que valoriza as imagens imprecisas do sonho e a supremacia da música sobre o sentido. “A vagueza da emoção suscitada por uma melodia (que deve ser indefinida e nunca muito fortemente sugestiva) é precisamente o que devemos buscar em poesia”, escreveu Edgar Allan Poe, o herói dos poetas simbolistas (POE, 1999: 54), prenunciando o famoso verso de Paul Verlaine (leitor do Princípio poético de Poe), “De la musique avant toute chose” (VERLAINE, 2011: 72). As afinidades estéticas entre a escrita e poesia chinesas e as pesquisas formais do simbolismo são evidentes e não escaparam à atenção de Pessanha, que ressalta ainda “a concisão epigráfica – ou, se o leitor assim quiser, telegráfica” (PESSANHA, 1993: 77) da escrita ideográfica, que “manda suprimir quase completamente as palavras designativas das relações lógicas”, exigindo do leitor ocidental um esforço imaginativo para a interpretação — “e essa intensidade de sugestão é um dos intraduzíveis encantos da poesia chinesa” (idem, 77). Considerando todas essas dificuldades, Pessanha não intenta uma reengenharia estrutural da poesia chinesa no idioma português, nem utiliza os padrões da versificação portuguesa, optando pelo verso livre, quase em prosa narrativa — recurso utilizado, mais recentemente, por Yao Feng e Régis Bonvicino no livro Um barco remenda o mar, antologia de poetas chineses do século XX, em que a literalidade se sobrepõe a uma concepção mais formalista, adotada por Haroldo de Campos em Escrito sobre jade. O poeta concretista, também notável tradutor / recriador de haicais e do teatro nô japonês, intentou
compensar os aspectos caligráfico-visuais de uma poesia monossilábica, escrita por meio de ideogramas, adotando técnicas de espacialização gráfica da poesia moderna para dispor o texto no branco da página e usando, quase exclusivamente, a composição em caixa baixa, dispensada a pontuação habitual. No plano Fõnico e prosódico, não sendo possível reproduzir os módulos sonoros de uma língua tonal e, consequentemente, os esquemas de rimas do original, compenso esses aspectos através da extrema concisão (característica do chinês clássico, língua isolante) e do minucioso trabalho de orquestração das figuras fônicas e rítmicvo-sintáticas, levando em conta, nesse sentido, a lição da poética jakobsoniana. Exploro, ainda, sempre que semanticamente rentável, a etimologia metafórico-visual dos ideogramas. (CAMPOS, 1996: 13-14)
Feng e Bonvicino, por seu turno, concentraram-se na versão literal do significado dos versos. Conforme escreve Feng, poeta e tradutor chinês radicado em Macau:
A poesia é uma arte alquímica que não só não se limita à mera função designativa como também se empenha em atribuir à palavra ritmo, rima, figuração, ambiguidade semântica, silêncio, vazio etc. esses aspectos muitas vezes são impossíveis de transportar automaticamente de uma língua para outra, uma vez que ‘qualquer domínio cultural, qualquer cultura-língua, tem a sua historicidade, sua contemporalidade (total) com as outras’[2]. Daí que o tradutor de poesia está confrontado com um permanente quebra-cabeça. Por um lado, se o tradutor insiste em manter as particularidades do original, arrisca fazer com que a tradução se deturpe; por outro, caso o tradutor se desligue dessas particularidades, limitando-se à transposição do sentido, poderá banalizar o efeito poético do poema original. Eis uma dificuldade que se coloca ao tradutor, mas constitui, ao mesmo tempo, o encanto que o leva a descobrir as potencialidades de sua língua na enunciação do poema original em sua própria voz. (FENG, 2007: 137-138)
A estratégia tradutória assumida por Camilo Pessanha, que se defrontou com esse dilema tradutório seis décadas antes, revela-se fiel ao programa expresso no texto de introdução que escreveu para as Oito elegias chinesas, no qual “o poeta recusa o exotismo fácil que resultaria da imitação do arranjo sintático chinês, bem como da crueza imagética que resultaria de uma tradução muito colada ao original” (PESSANHA, 1993: 77). Ao mesmo tempo, o poeta “dá especial atenção ao jogo das ideias e à ordem em que elas aparecem, ou seja, à modulação sentimental que resulta da sua apresentação numa dada sequência” (idem). Pessanha “não reproduz nem o paralelismo do poema chinês, nem o assindetismo da sintaxe chinesa (que, inclusive, diga-se de passagem, caracterizam alguns dos seus poemas de maturidade, como Imagens que passais pela retina e Foi um dia de inúteis agonias, entre outros)”, escreve Paulo Franchetti (PESSANHA, 2009: 38). “A leitura da tradução mostra mesmo um movimento contrário”, prossegue o ensaísta brasileiro: “a suspensão do pensamento é expressa por reticências e é evidente a preocupação em coordenar as frases e manter uma sintaxe desprovida de grandes sustos” (idem). Como exemplo da poética tradutória de Pessanha, transcrevemos abaixo sua versão da terceira elegia, a mais concisa do conjunto das oito elegias chinesas, dedicada a Wenceslau de Moraes[3]:
SOBRE O TERRAÇO
(A Wenceslau de Moraes)
Os antigos mortos, invisivelmente
Vêm ainda ao seu terraço antigo...
Já sopra da nona lua o vento lamentoso.
De os três rios[4]devem estar a chegar os gansos da arribação.
Cobrem nuvens a vastidão dos dois Kuangs[5].
Declina, pálido, o sol, sobre Pang-Lai[6].
Desterrado da pátria e sem notícias dela,
Para essas bandas volvo de contínuo os olhos.
(Idem, 85)
A quadra chinesa é aqui reinventada em dois quartetos, sem medidas métricas ou rimas; o ritmo aproxima-se ao da prosa e o enjambement é empregado nos dois primeiros versos e nos dois últimos. Neste poema, assim como nas demais peças da série, Pessanha mantém palavras em chinês – nomes de rios, pássaros, montanhas, mosteiros – num deliberado hibridismo semântico que enriquece a sonoridade dos versos. As mudanças súbitas de paisagem (o terraço dos mortos / o vento / os rios e gansos / o sol sobre Pang Lai) aproximam-se das técnicas de montagem da poesia chinesa e japonesa, propiciadas pela própria estrutura do ideograma, e representam, metaforicamente, o estado emocional do autor do poema, que nas duas últimas linhas lamenta a condição do exílio e o afastamento da mulher amada. É inevitável pensarmos aqui na biografia de Pessanha, em seu desencontro amoroso com Ana de Castro Osório e no exílio voluntário em Macau. A tradução poética pode ser pensada nesse caso como heteronímia ou máscara poética poundiana, em que Pessanha usa a persona de um poeta chinês da Dinastia Ming para expressar sua subjetividade – hipótese formulada por Paulo Franchetti, para quem “a escolha de Camilo Pessanha deve-se provavelmente ao fato de estes poemas espelharem os mesmos traços da sua vivência: solidão, exílio, fuga a um mundo real insuportável e nostalgia da pátria abandonada” (PESSANHA, 2009: 34), ao que podemos acrescentar a afinidade filosófica do poeta português com a visada “ao mesmo tempo niilista e estoica” (idem, 76) dessas oito composições. Devemos assinalar também a presença, nas traduções de Pessanha, de características de sua própria poética, como a musicalidade, as imagens concisas, a alternância de nasais e sibilantes (como acontece nas rimas do poema Viola chinesa), os jogos de aliterações e assonâncias, o elemento sobrenatural (“Os antigos mortos, invisivelmente”), o tom enigmático, a temática do fluir temporal e a relação analógica entre os planos objetivo e subjetivo, característica da poesia chinesa tradicional e também da poesia simbolista, desde os ensaios de Edgar Allan Poe, que antecipou as ideias basilares do movimento, em textos como A filosofia da composição e O princípio poético, até os exemplos fundamentais dessa estética, em especial as Flores do mal, de Baudelare, Festas Galantes, de Verlaine, e Uma temporada no inferno, de Rimbaud, livros de cabeceira do próprio Pessanha.
No prefácio que escreveu para o seu conjunto de elegias chinesas, Pessanha ressalta a unidade existente entre as peças, “tão parecidas na métrica – de um andamento calmo e dolente” (idem) e “tão homogêneas no vibrar de uma idêntica emoção – amorosa e grave”, culminando na “predileção de imagens análogas e no vigoroso e rápido processo de as evocar – que, à sua leitura, no próprio original chinês, se acredita serem produção de um mesmo espírito e fragmentos de uma obra única sistematizada” (idem). Uma questão que merece ser discutida com cuidado é o da seleção dos poemas chineses traduzidos por Pessanha. A terceira elegia, que comentamos há pouco, é uma composição de autoria do obscuro Wang Ting Hsiang, não pertence ao Livro das Odes ou dos Cantares[7] coletados por Confúcio no século VI a.C. nem ao período áureo da poesia chinesa – a Dinastia T’ang[8] (618-907), em que destacaram autores como Li T’ai Po (ou Li Bai, na transcrição fonética mais recente), Wang Wei e Tu Fu –, mas à Dinastia Ming, célebre pela sua porcelana, engenharia e arquitetura (datam desse período a conclusão da Grande Muralha e a construção da Cidade Proibida). Pessanha justifica a escolha destes oito poemas de celebração da natureza, da solidão, do exílio e da morte no prefácio que escreveu para as suas traduções, onde afirma: “começarei por uma minúscula antologia de dezessete[9] elegias da dinastia Ming – elegias pelo acento de dolorida melancolia que a todas domina, porquanto a forma, incisiva e curta, é a de verdadeiros epigramas”, escolhidas “de entre os inúmeros e vastos cancioneiros da referida época, por um dos mais delicados estetas do Império do Meio nos princípios do século XIX, para presente de despedida a um amigo íntimo que para longe se ausentava” (idem, 75). O compilador dessas composições, escreve Pessanha, “foi o ministro Iong Fong Kong, que ao tempo (no reinado de Chia-King) exercia em Pequim os mais elevados cargos do estado, inclusive o de mentor do príncipe herdeiro” (idem). Tais poemas chegaram a suas mãos “trazidas de tão longe como relíquia preciosa – adaptadas a álbum (com capa de rica madeira das Filipinas, em que havia esculpido o nome em um breve elogio do Mestre), e encerrado tudo em um estojo de tamarindo de dupla tampa” (idem). Na dedicatória ao conjunto de poemas, prossegue, “se declara que os versos são do tempo dos Ming. Nenhuma informação acerca do autor ou autores, senão que viveram nesse período (1368 a 1628)” (idem). A identificação da autoria de cada composição foi possível graças “à direção de um letrado chinês” (idem), e, a partir das indicações fornecidas por ele, Pessanha nomeou, nas notas, a autoria de cada peça. Por qual motivo esta coleção de poemas chamou a atenção de Pessanha, mais do que as peças líricas de um Li T’ai Po, considerado o maior poeta da China? Não temos nenhum registro do autor – carta, ensaio ou resumo de conferência – que permita chegarmos a uma conclusão definitiva, e é bastante provável que sua obra tradutória, em grande parte, tenha sido perdida. Uma hipótese formulada por Paulo Franchetti é que o poeta teria escolhido composições da Dinastia Ming exatamente por serem “poemas inéditos em línguas ocidentais, produzidos não por luminares da poesia chinesa, mas por autores menos divulgados e apreciados pelo público” (idem, 33). A seleção feita pelo autor da Clepsidra, prossegue o autor brasileiro, “deveria ser suficiente para sugerir, mesmo aos menos atentos, a amplitude de referências chinesas do poeta, bem como para indicar o seu grau de conhecimento do idioma, pois não pode apoiar-se em traduções para outras línguas ocidentais” (idem).
A morte prematura do poeta, aos 59 anos, bem como o extravio de parte de seus papeis, não nos permitem saber qual era exatamente o seu projeto tradutório, se intencionava traduzir também excertos do Livro dos Cantares e outras joias de uma literatura milenar, ou se a sua seleção fora principalmente temática, por afinidade com a sua própria poesia, à maneira da heteronímia. Este é um problema que poderá talvez ser elucidado em anos vindouros, caso venham à luz obras extraviadas de um autor de memória prodigiosa, incansável curiosidade intelectual e rara sensibilidade para a compressão de uma cultura tão distante da sua. Além das Oito elegias chinesas, Pessanha legou-nos os artigos, ensaios e resumos de conferências que tiveram publicação póstuma, sob o título de Escritos sobre a civilização chinesa, principal fonte de informação para o presente texto.
O profundo interesse[10] e respeito de Pessanha por uma tradição poética radicalmente diferente da europeia e o desejo de relacionar-se com ela por meio da tradução e da reflexão crítica terão desdobramentos em sua própria poesia, especialmente nos três poemas de Clepsidra que dialogam, de modo bastante tênue, com as paisagens e referências culturais do país de Confúcio e Lao Zi: Viola chinesa (“Ao longo da viola morosa / Vai adormecendo a parlenda”, idem, 86), que apesar do título tem uma arquitetura poética mais próxima ao engenho barroco, pelo jogo lúdico das rimas e permutação de palavras-chave entre as estrofes; Ao longe os barcos de flores (“Só, incessante, um som de flauta chora / Viúva gácil, na escuridão tranquila”, idem, 87), em que a agudeza seiscentista predomina sobre a simplicidade, com a repetição do primeiro verso entre as três estrofes; e sobretudo Desejos, onde lemos:
Se medito no gozo que promete
A sua boca fresca e pequenina
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete,
Desejo, nuns transportes de gigante,
Estreitá-la de rijo entre meus braços,
Até quase esmagar nestes abraços
A sua carne branca e palpitante;
Como, d’Ásia nos bosques tropícais,
Apertam em espiral auriluzente,
Os músculos hercúleos da serpente
Aos troncos das palmeiras colossais...
E como ao depois, quando o cansaço
A sepulta na morna letargia,
Dormitando repousa todo o dia
À sombra da palmeira o corpo lasso;
Eu quisera também, adormecido,
Dos fantasmas da febre ver o mar,
Mas sempre sob o azul do seu olhar,
Envolto no calor do seu vestido;
Como os ébrios chineses delirantes
Aspiram, já dormindo, o fumo quieto
Que o seu longo cachimbo predileto
No ambiente espalhava antes...
(idem, 54-55)
Nesta composição de temática erótica, dividida em seis quartetos, com versos decassilábicos e rimas distribuídas na sequência A-B-B-A, o cenário descrito na última estrofe é quase fotográfico, com o close em um referente concreto, substantivo – o cachimbo utilizado no consumo do ópio, hábito adquirido pelo próprio Pessanha em sua estada em Macau. A escolha semântica de termos como letargia, dormitando, lasso, adormecido, fantasmas, ébrios e delirantes reforça o caráter alucinatório do poema, que amplifica a experiência sensorial do ato amoroso, mesclando-a com os transportes imaginativos da viagem opiácea. Convém destacar ainda, nesta composição, a imagem retratada na terceira estrofe, que faz referência direta à Ásia (que funciona como metonímia de China): a serpente enroscada ao tronco de uma palmeira num bosque oriental é comparada ao abraço dado pelo amante à amada, na estrofe anterior. O Oriente, portanto, aparece aqui não como previsível metáfora da sabedoria, da filosofia, da iluminação espiritual, mas como território do desejo, das sensações físicas e da imaginação. Diálogo mais explícito com a poética de Cathay acontece no poema de abertura de Clepsidra, composto de apenas quatro versos – assim como a quadra tradicional chinesa:
Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme
(idem, 53).
A concisão e os cortes sintáticos desta peça altamente concentrada, assim como a referência ao “país perdido”, parecem sinalizar ecos chineses, ainda que o tom melancólico e o desejo de extinção remetam antes à filosofia de Schopenhauer, autor de importância decisiva na formação intelectual de Pessanha (recordemos aqui a afirmação do poeta português em carta a José Benedito Pessanha, a respeito da organização temática de Clepsidra: Dividi-lo-ia em duas partes. A primeira havia de ser a luta pela realização do prazer, com a certeza de lutar por uma aspiração falsa. Seria talvez pessimista: o prazer, não tendo realidade sua, era o aniquilamento do desejo, de forma que esta luta representaria ansiar a morte”) (idem, 13). O jogo de claro-escuro que se estabelece no texto (“Eu vi a luz em um país perdido” / “No chão sumir-se, como faz um verme”), por outro lado, é novamente um recurso barroco, apropriado pelo leitor fino que foi Camilo Pessanha, para quem a descoberta da China – ao contrário do que aconteceu com Pound – não teve impacto radical em seu método de criação poética. Conforme escreve Paulo Franchetti, “o mais adequado, no caso das relações entre a poesia de Pessanha e a poesia chinesa (...) não é pensar em influência, mas em reconhecimento, em descoberta de similaridades” (idem, 31), em especial a riqueza imagética, a sonoridade e o caráter sugestivo das linhas – elementos da estética simbolista –, que solicitam a participação imaginativa do leitor para sua decodificação. Camilo Pessanha, leitor da poesia chinesa, intérprete da cultura do Império do Sol Nascente, nunca deixou de ser ele mesmo: um poeta-palimpsesto, onde encontramos ecos e ressonâncias do barroco, do simbolismo, de misticismos do Oriente e do Ocidente, que tanto fascinariam os poetas portugueses da geração de Orpheu, sobretudo Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000.
CAMPOS, Haroldo de. Escrito sobre jade – Poesia clássica chinesa. Tipografia do Fundo de Ouro Preto, 1996.
FENG, Yao, e Bonvicino, Régis. Um barco remenda o mar: dez poetas chineses contemporâneos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LEMINSKI, Paulo. Bashô, a lágrima do peixe. São Paulo: Brasiliense, 1983.
MESCHONIC, Henri. “Propostas para uma poética da tradução”, in A tradução e seus problemas (Lisboa, 1990)
PESSANHA, Camilo: China: estudos e traduções. Lisboa: Vega 1983.
________: Clepsidra. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. São Paulo: Globo, 1999.
VERLAINE, Paul. A voz dos botequins e outros poemas. São Paulo: Hedra, 2011.
NOTAS:
[1] Claudio Daniel: Claudio Alexandre de Barros Teixeira é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Sua dissertação de mestrado, A estética do labirinto: barroco e modernidade em Ana Hatherly foi publicada em livro, em 2010, pela Lumme Editor. Lecionou Literatura Portuguesa durante um ano na UNIP. Atualmente, cursa o pós-doutorado na USP, com supervisão da profa. dra. Annie Gisele Fernandes, realizando uma pesquisa sobre as interfaces criativas entre a poeta portuguesa Ana Hatherly e o brasileiro Haroldo de Campos. E-mail: claudio.dan@gmail.com
[2] MESCCHONIC, 1980: 86.
[3]Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes se conheceram em Macau. A possível correspondência entre os dois escritores, infelizmente, se perdeu, conforme escreve Daniel Pires no prefácio ao volume Correspondência, dedicatórias e outros textos, de Camilo Pessanha, publicado em 2013, que reúne 19 cartas do poeta português. Além das dedicatórias que o poeta português oferece a Wenceslau de Moraes na terceira elegia e no poema Viola chinesa, que integra Clepsidra, há uma breve menção ao escritor no artigo Macau e a gruta de Camões, que Pessanha publica no jornal A Pátria, em 7 de junho de 1924. Em sua edição da Clepsidra publicada em 2009 pela Ateliê Editorial, Paulo Franchetti inclui, na página 135 do volume, uma rara fotografia que registra o encontro de Wenceslau de Moraes com Camilo Pessanha em Hong Kong, em 1895.
[4] O poeta se refere ao rio Hiang-tsz-kiang e aos seus dois afluentes.
[5] Referência ao Kuang-Tung e o Kung-Hsi atuais.
[6] P’ang-Lai-Hsian-Kuan, mosteiro taoísta situado a oeste do Cantão. P’ang-Lai – as sarças revoltas – é o nome de três ilhas da mitologia chinesa habitadas pelos Imortais, ou santos taoístas.
[7] Existe uma tradução integral do Livro dosCantares realizada pelo jesuíta português Joaquim A. Guerra, publicada em 1979, em Macau, na coleção Clássicos chineses.
[8] No Brasil, foi publicada a Antologia da poesia clássica chinesa – Dinastia T’ang – com organização e tradução de Ricardo Portugal (São Paulo: Unesp, 2012).
[9] O número total de poemas chineses traduzidos por Pessanha é desconhecido, já que boa parte extraviou-se. No texto de apresentação que escreveu para as suas traduções, em 1914, o poeta declara: “Satisfazendo uma antiga dívida para com o ilustre diretor de O Progresso, entrego hoje ao mesmo semanário umas poucas dúzias de pequenas composições chinesas com cuja decifração tenho entretido os ócios dos últimos seis anos de residência em Macau” (PESSANHA, 2009: 33). Em seguida, afirma que o início dessas publicações seria um conjunto de dezessete elegias, das quais conhecemos apenas oito, publicadas no referido jornal.
[10] Camilo Pessanha, em seus textos em prosa sobre a cultura e civilização chinesas, nem sempre adota a mesma postura ética e metodológica, resvalando, por vezes, em preconceitos eurocêntricos: considera a arte chinesa “apenas decorativa ou de aplicação. A sua escultura não é estátua: é ícono, ou alfaia, ou bibelot. A sua pintura é mera decoração mural” (idem, 14-15). Segundo avaliação do poeta português, “é pasmosa a ignorância que esses artistas têm da anatomia humana e da dos animais superiores” (idem). Tais incompreensões, porém, pouco afetaram o diálogo poético que estabeleceu com a lírica chinesa, tema específico abordado em nosso trabalho. Uma avaliação crítica do conjunto de ideias apresentadas por Camilo Pessanha sobre a história e a cultura da China merecerá, em nossa opinião, um ensaio futuro, enriquecido pela discussão detalhada de suas cartas, resumos de conferências e outros textos em prosa.