Por Leonardo Castro da Silva [1] e Ana Carolina Amaral de Souza [2]
RESUMO
O objetivo deste trabalho, de diálogo entre os estudos literários e filosóficos, é a aproximação entre a crônica “O mau humor de Wotan” (Guimarães Rosa), presente no livro Ave, palavra (1970), texto esse que cita acontecimentos de 1938 em diante, e a obra Ser e Verdade (Martin Heidegger), volume 36/37 das obras completas (trabalhar-se-á apenas com o volume 36, A questão fundamental da filosofia), escrita pelo filósofo no semestre de verão de 1933.
PALAVRAS CHAVE: Nazismo; Guimarães Rosa; Heidegger.
A metodologia que se utiliza neste trabalho se vincula à Estética da Recepção. Faz-se uma leitura da concepção de Guimarães Rosa, tendo, como contraposição, a filosofia de Heidegger. Assim, geram-se expectativas diferentes de quando se tem apenas um posicionamento sobre o tema. Partindo dos pressupostos da Estética da Recepção formulada por Hans Robert Jauss, em seu texto Por uma hermenêutica literária, tendo como base a articulação do teórico que, para a experiência com obra literária, não como artefato, mas em sua abstração é necessário partir de uma premissa que o autor define da seguinte forma:
Quando se interrogava especialmente sobre a “literariedade” dos textos e aí se viam as próprias premissas da interpretação, desembaraçava-se muito frequentemente da reflexão hermenêutica. (JAUSS, 1982, p. 12)
Todavia, respaldando-se em Jauss, utiliza-se a premissa do Nazismo nos anos 30 discutidos em Guimarães Rosa e será feita a crítica de “O mau humor de Wotan”. Não tendo em outro lado simplesmente um texto que se opõe por ser filosófico, diz-se isto, devido a Literatuta ser arte e expor imagens ficcionais no texto e a Filosofia ser conceitual questionadora, mas por Ser e Verdade, ser um texto de “aprovação” ao nazismo. Partindo desta premissa presente nos textos, que ambos estão dispostos a tratar, o nazismo, de modo a desenvolver a concepção de Guimarães Rosa e de Heidegger, a Literatura será criticada.
Tendo como base de sustentação o pensamento de Benedito Nunes de que, em toda análise literária, há uma pré-conceituação filosófica, propõe-se trabalhar um autor da Literatura e outro da Filosofia que desenvolvem uma mesma temática e não interpretar Guimarães Rosa com base em Heidegger, fazendo do pensamento do filósofo um método interpretativo. Trata-se de um mesmo tema em dois campos diferentes, o pensamento de Heidegger se apresenta, neste trabalho, como corpus. O que está em questão é uma comparação interdisciplinar entre a visão literária de Guimarães Rosa e a filosófica de Heidegger sobre o nazismo na década de 1930.
O tema deste trabalho situa-se na abordagem de um mesmo acontecimento histórico e de uma mesma década, o nacional-socialismo na Alemanha na década de 1930, porém, são colocados aqui dois olhares distintos, o olhar literário de Guimarães Rosa em sua crônica “O mau humor de Wotan” e o olhar do filósofo Martin Heidegger, também, sobre o nazismo, em seu curso Ser e Verdade. Com base em abordagens distintas, uma na Literatura de Guimarães Rosa e outra na filosofia de Heidegger, é possível constatar que se estar diante de um embate ideológico[3] que, obviamente está em campos abstratos, mas, este mesmo embate se encontra também no terreno político, social, cultural e econômico. O que se gera de uma discussão abstrata de uma realidade impactante a humanidade, a Segunda Guerra Mundial?
O sustentáculo de uma discussão entre Guimarães Rosa e Heidegger surge quando ambos se dispõem a tratar de um mesmo tema (o nazismo na década de 1930). No que diz respeito a Guimarães Rosa, este mostra, em sua crônica “O mau humor de Wotan”, seu posicionamento oposto ao nacional-socialismo devido às consequências que levaram à Segunda Guerra Mundial. Tais consequências apresentam-se como um atentado ao humano, destruição de cidades, a morte, a fome, entre outros, eram fatos de que o personagem Hans-Helmut não queria falar. Em vez disso, preferiu dizer: “Da guerra, vi apenas cavalos e cachorros mortos, felizmente...” (ROSA, 1970, p. 6). Falar desses animais levava o personagem a evitar as atrocidades da guerra. Tratando-se de Heidegger, em seu curso Ser e Verdade, o filósofo apoia o nacional-socialismo, fazendo, porém, objeções a respeito do nazismo, pois, na visão do pensador, o partido carece de base ideológica a ser construída por meio de seu pensamento.
Segundo Heidegger, o povo alemão, ser-aí popular humano [menschlichen volklichen Daseins] precisa de orientação [Führung] para estar à altura da missão [Auftrag] espiritual do povo que o destino [Schicksal] lhe reserva, este movimento de estar à altura se inicia nas universidades. A missão do povo alemão de colocar-se e permanecer na questão fundamental da filosofia, tocada e encoberta na filosofia antiga, é uma missão única entre os povos, esta é, explicando com as palavras do filósofo: “a tarefa de espiritualizar e enobrecer a realização cabal da revolução nacional socialista” (HEIDEGGER, 2007, p. 24). É possível comprovar que cabe unicamente ao ser-aí popular alemão o movimento de apropriação da questão fundamental, pois, para o filósofo alemão, a origem de seu povo entre os gregos antigos lhe dá esse privilégio entre os povos. O povo alemão necessita, em um movimento transcendental, de colocação, para estar na questão fundamental da filosofia, porém a questão foi encoberta entre os gregos antiquíssimos e permaneceu assim durante toda a História da filosofia.
A Filosofia foi encoberta na Antiguidade clássica por um acontecimento fundamental, após este momento, o que se considerou filosofia era um desvirtuamento do que o questionamento é de fato. Desvinculada de sua essência, foi pensada erroneamente, em toda sua história como: epistemologia (ciência), conceituação do que somos (sociologia), “fundamentação do saber” (relação entre filosofia e ciência), “saber absoluto” (equivalente a um deus) e “preocupação com a existência particular do homem individual como tal” (espécie de autoajuda). O ser-aí popular[4] (povo) alemão precisa reconhecer este desvirtuamento que se deu na história da filosofia para iniciar sua espiritualização.
Na concepção heideggeriana, o desvirtuamento da Filosofia teve seu início em Aristóteles nas discussões acerca da Metafísica. Assim, começa o encobrimento[5] da Filosofia, logo, passou-se a compreender apenas pelo termo metafísica e não pela “força estimulante da própria coisa” (HEIDEGGER, 2007, p. 36). Na Idade Media, o encobrimento da Filosofia foi no campo da metafísica compreendida como teológica em que Deus é superior (transcendente) a todos os entes criados por ele no campo da natureza. O radical “meta”, de metafísica, torna-se “não”, e “física”, natureza. Assim, Deus é a não-natureza, o absoluto e o superior, assim, foi compreendida a metafísica da época. Por fim, na Idade Moderna, foi com Descartes, com método matemático, que a Filosofia, mais uma vez, se desvinculou de sua origem entre os gregos antiquíssimos e se mostrou novamente científica.
Em Heidegger, na contemporaneidade, a filosofia hegeliana é uma concentração de toda sua história, de tudo que ela não é. O estado e a práxis alemãs são hegelianos e, Hegel deve ser um antimodelo para o ser-aí-popular. Em um confronto histórico com Hegel (por meio da Filosofia no terreno da Metafísica onde se encontra o problema originário, não a que é vigente, mas a que Heidegger compreende como um questionamento incessante a partir de si mesma, um conflito) será o caminho para o ser-aí popular, cujas características são: cultural, material e histórico, colocar-se na questão fundamental da Filosofia. Desta forma, o ser-aí popular cria o estado (ser) que o guiará, este estado será alimentado pela Filosofia (a ser construída com bases no pensamento de Heidegger). Como se pode ver, a história da filosofia, nos termos do autor de Ser e Tempo, é uma decadência e ainda não é a concepção ideal de Estado.
O ser-aí popular alemão tem a necessidade [Notwendigkeit] da decisão [Entscheidung] para se colocar na questão fundamental da filosofia, tocada pelo antigo povo grego que lhe deu origem, porém, foi encoberta durante a História da filosofia, na antiguidade. A decisão do povo alemão de apropriar-se da questão fundamental depende de cada membro do ser-aí popular, que em seu modo de ser-com [Mitsein], a comunidade do povo germânico apropriara-se de seu ser próprio. Heidegger adjetiva de preguiçosos e covardes aqueles membros do ser-aí alemão que querem estar à parte da decisão e estão acomodados pelas tarefas do dia-a-dia. O filósofo alemão expõe que:
De fato — mesmo que a necessidade de questionar a questão fundamental da filosofia nos chegue bem perto com a demanda de toda a história de nosso [ser-aí] alemão (a questão nunca vai se impor com violência), ainda assim ela permanece sempre em nossa decisão, uma decisão que [nos encontramos] em favor de nosso [ser-aí], isto é, em prol de nosso ser-com [histórico], de nossa convivência com os outros, na articulação de membros do povo. Depende sempre só de nós mesmos se terminarmos por dar guarita à preguiça do espirito e à covardia da vontade; se escamotearmos para nós mesmos a preguiça e covardia atrás de tarefas aparentemente urgentes de nossa atividade diária; se nos retrairmos para a comodidade e aparente segurança de deixar correr as coisas. Ninguém vai impedir os senhores de agir assim e de colocar-se à margem da história. (HEIDEGGER, 2007, p. 31)[6]
O ser-aí alemão pode escolher entre se colocar ou não na questão fundamental, porém, liberdade, no contexto de vinculo politico filosófico para Heidegger, é um compromisso consigo mesmo e com o povo. Fazendo um diálogo entre Ser e Verdade e A Autoafirmação da Universidade Alemã em que o filósofo alemão critica a liberdade acadêmica[7] vigente e redefine-a, afirmando que: “O conceito de liberdade do estudante alemão é reconduzido agora à sua verdade” (HEIDEGGER, 2009, p. 9). Reconduzir o universitário alemão a sua verdade é reconduzir-se a si mesmo e ao povo alemão que faz parte, Heidegger define três vínculos relacionados à liberdade dos estudantes:
O primeiro vínculo é o vínculo à comunidade do povo. Ele obriga a uma participação, que transporta e age em comum, nos esforços, aspirações e capacidades de todos os estados e membros do povo. Este
vínculo é de agora em diante solidificado e enraizado na existência estudantil através do serviço de trabalho.
O segundo vínculo é o vínculo à honra e ao destino [Geschick] da nação no meio dos outros povos. Ele exige a preparação, assegurada no saber e no poder, e centrada através do cultivo, para a mobilização até ao último. Este vínculo abrange e penetra futuramente toda a existência estudantil como serviço militar.
O terceiro vínculo do estudantado é o vínculo ao encargo espiritual do povo alemão. [...] o serviço do saber [...]É porque o político e o professor, o médico e o juiz, o pároco e o arquiteto guiam a existência popular-estatal, vigiando-o e fixando-o solidamente nas suas relações fundamentais às potências formadoras de mundo do ser humano, que estas profissões e a educação para elas são da responsabilidade do serviço do saber. (HEIDEGGER, 2009, p. 09-10)
Portanto, pode-se ver como o conceito de liberdade do filósofo alemão, nestes textos de vínculos políticos e filosóficos, mostra como Heidegger está compromissado com os membros do ser-aí alemão e estrutura, nos três vínculos de serviço, o Estado que é o ser que guiará o povo.
Em Ser e Verdade, a problemática gira em torno de poder-se ou não afirmar que Heidegger quer tornar sua filosofia uma práxis; o filósofo afirma que a práxis alemã e o estado atual são hegelianos. Heidegger quer tornar-se ideólogo[8] nazista e quer que sua filosofia conduza o Estado. Seria isto um argumento para afirmar que o filosofo quer tornar sua filosofia uma práxis? Mesmo em questionamentos culturais, materiais, práxis etc. pois o ser-aí em jogo é o povo, mas especificamente alemão, o filósofo continua tão fenomenólogo como sempre foi.
Em sua obra central Sein und Zeit (Ser e tempo), Heidegger mostra seu método hermenêutico fenomenológico: “A expressão ‘fenomenologia’ significa primeiramente um conceito metodológico”[9] (HEIDEGGER, 2001, p. 27), que Benedito Nunes entende da seguinte forma:
A fenomenologia é ontologia, e, como ontologia, é uma hermenêutica, porque a descritividade fenomenológica tem o alcance de um trabalho de interpretação aplicado ao Dasein (NUNES, 2004, p. 11 e 12).
Portanto, este método permanece em todo pensamento heideggeriano e, obviamente, em Ser e Verdade apesar do ser-aí ser cultural, material, social... o filósofo alemão é tão fenomenólogo quanto em Ser e Tempo, porém, estas características citadas do ser-aí da década de 1930, Heidegger elabora novas condições pensáveis.
Diferentemente dos anos de 1920, em que Heidegger trata do não-encobrimento[10], seu foco nos anos de 1930 é o encobrimento. Na década de 1930, o olhar de Heidegger está direcionado à concepção do histórico do ser, esta historicidade dá acentuação política ao pensamento do fenomenólogo na segunda fase de sua filosofia, ou seja, no segundo Heidegger. Em seu escrito de 1930, Da essência da verdade, comentado por von Herrmann em Wahrheit — Freiheit — Geschichte (Verdade — Liberdade — História) já se mostra direcionado à historicidade do ser:
O texto “Da essência da verdade” mostra como Heidegger tem a questão da verdade para sua primeira elaboração fundamental-ontológica, em uma condução ulterior à maneira já se localiza o caminho da questão na transição para o histórico do ser[11]. (HERRMANN, 2002, p. 44) [Tradução nossa]
Pode-se comprovar que o pensamento filosófico de Heidegger não se separa de seu pensamento político, na obra Compreender Heidegger, de Marco Antonio Casanova quando o autor afirma:
Com certeza, nenhum outro tema referente ao pensamento heideggeriano, possui um caráter tão controverso e explosivo quanto o tema da relação entre Heidegger e o nazismo (CASANOVA, 2009, p. 150).
Portanto, o autor, ao falar do “pensamento heideggeriano”, mostra uma relação não somente entre Heidegger e o nacional-socialismo, mas entre o pensamento político e o filosófico do autor. Este vínculo entre pensamento politico e filosófico de Heidegger tornou-se compreensível a partir da publicação das obras completas (Gesamtausgabe) que, após a disponibilidade total dos textos os estudiosos do assunto poderão detectar que, não há um caminho linear para o entendimento do pensamento heideggeriano[12], e sim um primeiro Heidegger referente à década de 1920, um segundo da de 1930, um terceiro dos anos 1940 em diante, que não há pensamento politico filosófico fora de algumas obras da década de 1930 como A autoafirmação da universidade alemã (1933), Ser e Verdade: A questão fundamental da filosofia (1933), Ser e Verdade: Da essência da verdade (1933-1934), etc.
Guimarães Rosa, o narrador de “O mau humor de Wotan” é um diplomata, que, durante a década de 1930, vive na Alemanha, como se pode ver neste trecho: “João Guimarães Rosa ingressa na carreira diplomática em 1934. O consulado de Hamburgo foi o primeiro posto internacional do escritor brasileiro” (BARBOSA, 2011, p. 23). Em sua crônica, o narrador descreve personagens e acontecimentos de um contexto nazista em que são comuns: a destruição de cidades (como a cidade de Varsóvia, destruída durante a lua-de-mel de Hans-Heubel e Márion), a persuasão da mídia pelo ministro da propaganda Goebbels, a banalização da vida quando Hans-Heubel é mandado à guerra, tornando-se apenas um número na estatística oficial. Essas consequências de um regime totalitário que o autor descreve com a plasticidade de sua literatura, revela como ele se posiciona contra a barbárie do regime nacional-socialista. Santiago Sobrinho, em seu artigo “O narrável da guerra e o inimigo objetivo, sob o céu de Hamburgo, em “O mau humor de Wotan”, de João Guimarães Rosa”, mostra como “O narrador clama por filosofia e arte, enquanto renega o nazismo” (2009, p. 143), ao falar em Heráclito e Sófocles, ambos da Grécia antiga, berço de toda civilização ocidental: “Tratemos de Heráclito, de Sófocles — arre ondeia a suástica sobre Himeto, Olimpo e Parnasso” (ROSA, 1970, p. 9)
O início da crônica rosiana surge de forma descontraída, pois as consequências da guerra ainda não eram próximas a ponto de afetar diretamente os personagens em questão, porém, já é possível comprovar a prudência de Márion diante do nacional socialismo. Tal postura assumida pela personagem está ligada ao fato de seu cônjuge, Hans-Helmut, ainda não ter padecido o terror do autoritarismo que virá cair sobre os personagens mais adiante no texto. Márion tenta persuadir Heubel, a ser adepto ao nazismo, no entanto, será que a personagem teria esta postura se neste momento o impacto da guerra tivesse caído sobre eles? Guimarães Rosa trata de uma:
Márion, romântica, tonta e femininamente prenhe de prudência, experimentava aos poucos trazê-lo à linha de heil Hitler mais enfático. (ROSA, 1970, p. 04)
Todavia, o Narrador comporta-se oposto a o posicionamento de Márion e concorda com a mãe da personagem, afirmando que entre os amigos, que sua “aliada era a mãe, Frau Madsen, que me fazia repetir, seguidos, cada discurso de Churchill.” (ROSA, 1970, p. 4). Reproduzir o discurso de Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido, durante a Segunda Guerra Mundial é um modo direto do cronista se colocar contra o inimigo alemão como alguém que está consciente ideologicamente de sua postura contrária ao nazismo.
O Narrador, ao falar da relação do casal Heubel e Márion com Annelise e o Capitão K., segue seu comentário demonstrando sua oposição em forma de ofensa ao Exército alemão e afirmando que a relação entre os membros militares era comum no: “II.º e 1/2 Reich. [...] enquanto nós, nós outros, chorávamos ainda a França, e a Luftwaffe quebrava o seu martelo na bigorna inglesa.” (ROSA, 1970, p. 9)
Portanto, veja-se que, neste trecho, além de denominar o “II.º e 1/2 Reich” como um Reich “de meia tigela”, o Narrador inclui-se entre os outros, “nós outros”, aqueles que não compartilham do nacional-socialismo e pranteiam pela derrota da França que lutava contra a Alemanha. Aqui, comenta-se a postura diferente do cronista que antes se opôs ao Nazismo, por meio do discurso de Churchill, ou seja, ideologicamente e agora a oposição é narrada em um acontecimento físico em que a Luftwaffe (Força Aérea alemã), que era forte como um martelo, quebrava-se na bigorna inglesa, que era mais forte ainda.
Uma marca do nazismo era sua posição antissemita. Guimarães Rosa negou ao antissemitismo, consequentemente, também ao nazismo, como se vê em “O mau humor de Wotan”, ao lado de sua concepção pacifista, pois essa, em si, já é contrária a toda forma de totalitarismo e fica clara nesta passagem:
Rosa era contrário ao posicionamento antissemita. Esse contexto de leitura permite a Soethe valorizar ‘O mau humor de Wotan’, propondo sua interpretação como um texto pacifista e contrário ao nazismo. (GINZBURG, 2010, p. 18).
Em toda a crônica, o antissemitismo nazista, a persuasão da propaganda e a destruição fisica eram consequências a que Guimarães Rosa, se opôs, acima de tudo, estas coisas eram atentados contra os direitos humanos. A crítica de Guimarães Rosa se refere ao lider nazista ao mostrar que: “buscava contra Hitler um mane-téquel-fares[13], a catástrofe final dos raivados devastadores” (ROSA, 1970, p. 07) e a seu ministro da propaganda que, o Narrador calava-se com seu:
Amigo a citar Goebbels, o sinistro e astuto, que induzia a Alemanha, de fora a fundo, com a mesma inteligência miasmática, solta, inumana. (ROSA, 1970, p. 7)
Portanto, além do cotidiano de cosequências da guerra, a propaganda do partido era evidente com a persuasão da mídia. “O mau humor de Wotan” descreve um cotidiano regido pelo nazismo e o Narrador foi testemunha de todo este dia-a-dia marcado pelo contexto totalitarista, a que se opôs, como afirma Ginzburg, o narrador:
apresenta sua própria opinião crítica sobre o líder nazista, e se refere também ao nome de Goebbels. O narrador fala ainda da suástica, de bombardeios, de itinerários de invasão nazista. (2010, p. 19)
Logo, trata-se da persuasão psicológica representada pela suástica e pelas atrocidades fisicas causadas à humanidade, como bombardeios e o dia-a-dia de invasões das tropas alemãs, que causavam a destruição de cidades e a morte de muitos civis.
As divergências entre Guimarães Rosa (levando em consideração as realidades descritas na crônica) e Heidegger acerca do nacional-socialismo conduzem-nos a algumas hipóteses em forma de perguntas como: Podem os dois autores ter um mesmo posicionamento em algum aspecto? Sabendo que um autor atua no campo da Literatura e outro no da Filosofia, há um elo entre eles?
“O mau humor de Wotan”, embora, seja um texto pacifista e contrário ao nazismo e suas consequências, aparecem opiniões divergentes sobre o nacional-socialismo, por um lado temos Guimarães Rosa ficcionado, que se dispõe oposto radicalmente ao regime autoritário; Márion, que toma uma postura de prudência diante do nazismo chegando a prometer: “— ‘Vou-me casar e ter filhos...’” (ROSA, 1970, p. 3) para obedecer a Hitler, pois: “ — ‘O Fuehrer não encontra tempo para amar... O Fuehrer sagrou-se à política...’ ” (ROSA, 1970, p. 03) e Hans-Helmut, que se mostra como o cidadão alemão que, mesmo sofrendo o abuso do poder totalitário, não quer ver a derrota de seu país e se sente sem saída como nesta afirmação ao Narrador:
— “Sul-americano, você deseja a vitória dos países conservadores. Mas, nós, alemães, mesmo padecendo o Nazismo, como podemos querer a derrota? Que fazer?”[14] (ROSA, 1970, p. 7)
Assim, perante os três posicionamentos dos personagens de “O mau humor de Wotan”, o que mais se aproxima da concepção de Heidegger é a personagem Márion, porém, diferentemente da personagem, que aderiu ao partido por prudência, ou por uma questão de sobrevivência talvez, o filósofo alemão adere ao nacional-socialismo, sem ser por prudência e sem sofrer seu impacto autoritário, e diagnostica no nazismo uma insuficiência ideológica que será suprida por sua filosofia. Heidegger apresenta-se como um ideólogo que fundamentará o partido alemão.
Em nenhum momento no texto Ser e Verdade, é mostrada na argumentação heideggeriana uma exposição de violência, autoritarismo, destruição física e assim por diante. A fundamentação ideológica de Heidegger, não está relacionada à agressão física como foi muito vigente no nazismo, ela é somente sustentada em termos culturais, materiais e de língua. Mesmo a exclusividade de o ser-aí popular alemão ser o único que pode se colocar na questão fundamental da filosofia, o filósofo alemão, como já foi citado anteriormente, explicita que: “a questão nunca vai se impor com violência” e que cada membro do ser-aí alemão, mesmo, tendo como liberdade um compromisso consigo mesmo e com o povo, pode abdicar de se colocar na questão fundamental e ficar à parte da missão espiritual alemã.
Apesar de Heidegger propor bases ideológicas para o nacional-socialismo, diferente da prática que foi vigente durante o nazismo, ainda assim, pode-se afirmar que Guimarães Rosa não estaria em conformidade ao discurso do filósofo alemão, pois o cronista, em “O mau humor de Wotan”, como já disse antes, clama por direitos a humanidade, sem excluir mesmo aqueles que eram adeptos, por prudência ao nazismo e não queriam ver a derrota de seu país, ou seja, seu casal de amigos. O escritor mineiro sofreu junto com Márion a tensão da ausência de Heubel, em sua segunda convocação para guerra e sofreu mais ainda com a notícia do falecimento do amigo no campo de batalha:
Ele, Márion. Não voltará; não o veremos. Veio a exata fórmula, papel tarjado. Hans-Helmut Heubel passou, durante um assalto, e deram-lhe ao corpo a cruz-de-ferro. (ROSA, 1970, p. 12)
Guimarães Rosa não seria conivente com a concepção heideggeriana de uma missão espiritual unicamente cabível ao povo alemão, pois esta articulação tem argumentos culturais, sociológicos, linguísticos (referentes ao povo alemão ter em sua língua a discutível origem grega), que são “excludentes”. Se o escritor mineiro clama por direitos referentes ao homem, por que viria a aceitar uma proposta, mesmo que não autoritária, de que unicamente o povo alemão poderia se colocar na questão fundamental? É sabido que o escritor mineiro não leu Heidegger. Talvez, o cronista nem mesmo tivesse interesse por fenomenologia, todavia, a mensagem que o narrador transmite é sobre a humanidade ter todos os seus direitos garantidos, inclusive, ideológicos. Concebe-se que o horizonte histórico transcendental na leitura da crônica rosiana proporciona na existência a interpretação da liberdade total do homem enquanto leitor. Pela via da identificação com Narrador, o ente humano é capaz de se abrir para experiência estética e não concordar com pensamento heideggeriano. O que se tem em ênfase é a rejeição a da forma de ideologia que possa ter relação com Nacional Socialismo. Nessa seara, se inclui se inclui a ideologia pensada pelo filósofo alemão, a Literatura rosiana e o nazismo histórico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Waldete Freitas. A face do caos: a crônica de guerra em Guimarães Rosa. Belém, 2011. 122 p. Dissertação de Mestrado em Letras, Universidade Federal do Pará.
CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2009, 244 p.
GINZBURG, Jaime. Guimarães Rosa e o terror total. In: CORNELSEN, Elcio; BURNS, Tom (Orgs.). Literatura e guerra. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, p. 17-27.
HEIDEGGER, Martin. A autoafirmação da universidade alemã. Trad. Alexandre Franco de Sá Ed. Digital de: http://www.lusosofia.net/textos/heidegger_martin_auto_afirmacao_universidade_alema.pdf retirado às 17: 57 do 20/01/2013, 13 p.
___________. Sein und Zeit [Ser e tempo]. Tübingen: Max Niemeyer, 2001, 445 p.
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HERMANN, Friedrich Wilhelm Von. Wahrheit — Freiheit — Geschichte. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2002, 242 p.
NUNES, Benedito. Heidegger e ser e tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, 59 p.
____________. O dorso do tigre. São Paulo: Ed 34, 2009, 284 p.
ROSA, João Guimarães. Ave, Palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970, 274 p.
SANTIAGO SOBRINHO, João Batista. O narrável da guerra e o inimigo objetivo, sob o céu de Hamburgo, em “O mau humor de Wotan”, de João Guimarães Rosa. Investigações, Recife, v. 22, n. 1, p. 133-150, jan. 2009.
SOUZA JÚNIOR, Nelson José de. Da transcendentalidade do Da-sein à verdade da essência: caracterização dos momentos estruturantes da filosofia de Heidegger entre o final da década de 20 e início de 30. Porto Alegre, 2006. 237 p. Tese de doutorado em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
[1] Leonardo Castro da Silva (Dr. em Estudos Literários pela UFPA)
[2] Ana Carolina Amaral de Souza (Esp. em Filosofia da Educação pela UFPA)
[3] Refere-se aos posicionamentos de ambos autores sobre o Nazismo.
[4] O termo presente no original Sein und Wahrheit (Ser e Verdade) é volklichen Daseins. Adotou-se a tradução de Dasein por ser-aí, traduzindo-se volklichen Daseins por ser-aí popular, com base em Casanova (2009, p. 89).
[5] Usa-se Verborgenheit por encobrimento, a partir da tradução de Souza Júnior (2006, p. 188).
[6] HEIDEGGER, Martin. Ser e Verdade. Trad. Emmanuel C. Leão. Petrópolis: Vozes, 2007, 312 p. [Tradução modificada]. Em alemão: “Allerdings — selbst wenn uns in der gesamtgeschichtlichen Not unseres abendländischen deutschen Daseins die Notwendigkeit des Fragens der Grundfrage Philosophie ganz nahe kommt (die Frage wird nie zum Zwang): Es bleibt immer noch bei unserer Entscheidung, die wir treffen für unser Dasein, d. h. für unser geschichtliches Mitsein mit den anderen in der Gliedschaft des Volkes. Es steht immer noch bei uns , ob wir nicht doch am Ende der geistigen Faulheit und der willentlichen Feigheit Raum geben; ob wir nicht vor uns selbst Faulheit und Feigheit verstecken hinter scheinbar dringlichen Aufgaben des jeweils täglichen und heutigen Betriebes; ob wir uns nicht in der Behäbigkeit und scheinbare Sicherheit des einfachen Laufenslassens der Ding zurückzuziehen. Niemand wird Sie hindern, so zu tun und abseits von der Geschichte zu stehen.” (HEIDEGGER, 2001, p. 13-14).
Optou-se por substituir alguns termos da tradução de Emanuel Carneiro Leão, como “presença” por “ser-aí” (tradução de Marco Antonio Casanova); “tomamos” por “nos encontramos”, pois a tradução do verbo “treffen” por “encontrar” fica melhor contextualizada, devido ao ser-aí alemão estar se procurando no estado, dando-nos uma noção de que se procura para se encontrar e, por último, foi acrescentado à tradução o termo “geschichtliches” (traduzido por, histórico) que foi omitido pelo tradutor de Ser e Verdade, resolveu-se fazer este manejo, pois é fundamental para a compreensão da obra que saibamos que o modo de ser, ser-com que está o ser-aí alemão é histórico e neste mesmo parágrafo 4, Heidegger expõe a necessidade de um confronto histórico no campo da metafisica contra a Filosofia de Hegel.
[7] Vale lembrar que é na universidade alemã que se iniciará a missão político espiritual do povo.
[8] Vale ressaltar que a Filosofia alimentadora do Estado proposta por Heidegger em nada se assemelha com o Nazismo autoritário histórico.
[9] Em alemão: “Der Ausdruck ,Phänomenologie‘ bedeutet primär einen Methodenbegriff.”
[10] A tradução de Unverborgenheit por não-encobrimento é proposta por Souza Júnior (2006. p. 188).
[11] Em alemão: “Trad: Der Text ,,Vom Wesen der Wahrheit” zeigt, wie Heidegger die Wahrheitsfrage nach ihrer ersten, fundamental-ontologischen Ausarbeitung in einer Weise weitergeführt hat, die sich schon im Übergang zur seinsgeschichtlichen Frangebahn befindet.”
[12] Não será discutido durante o trabalho a limitação de autores que escreveram sobre Heidegger antes da publicação das obras completas, pois não se tratar do foco em questão e, também, por necessitar fazer um levantam hercúleo de um rol de autores, o que viria a ser preciso bastante tempo e rigor na pesquisa.
[13] Neste momento Guimarães Rosa faz uso de uma expressão bíblica que une três termos, mane-téquel-fares [contado + pesado + dividido = Daniel, V, 25]
[14] Aspas do autor.
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