PORNOGRAFIA BRASILEIRA
madrugada três meninos ajeitam seus lençóis de sacos e jornais no mercado público de mangira chove
TINTO SECO
Querido diário. Vírgula. Novalinha. Sou um cidadão do meu tempo. Ponto. Olho ao redor e vejo que a esperança habita somente os olhos de quem luta. Ponto. Vejo tudo pelo olhar que assusta. Ponto. Vejo a louca entre a viagem e a musa. Ponto, ponto, ponto. Vejo a vida difusa. Ponto. Inconclusa. Ponto. E ponto. Ponto.
DISTOPIA
não me iludo
há um escuro
permanente
e uma sombra
iluminando
tudo
JÁ NÃO HÁ PAREDES MIGRANDO NA TUA AUSÊNCIA
Quando arranquei teus olhos da parede, perdi as unhas.
Perdi o olfato
arranhando memórias
do teu cheiro.
Perdi a pele dos dedos
e senti os ossos raspando
as janelas do desacato.
Já havia perdido a razão
exata de todas as certezas.
Era dor, mas
também libertação.
O cerco do teu olhar
vigiava a minha sede.
Dedos sem carne
alguma. Coração
fugindo pela boca.
Coloquei teus olhos
sobre a mesa e decidi
guardá-los na distância.
Não furei as pálpebras
nem salguei a íris.
Deixei as lágrimas
secando na sombra
solene dos dias...
Mirei de frente aquele
imenso desapego.
Fiquei só.
Sem unhas, sem a pele
descarnada dos dedos.
Falanges esquecidas
no sangue apodrecido
dos dias.
CONDIÇÃO PERENE
nas cheias o rio comanda o espetáculo e as margens são apenas degraus para o leito mais fundo nas secas o rio é a margem
CÂNONE
aquele poeta e sua postura quase mística escreve enchendo linguística
QUARTA CAPA
o poeta é o que busca na palavra a dimensão do átomo o silêncio extremo por detrás de cada fato o poeta é o etéreo e o ácido na pele dos valores estáticos estéticos são seus baralhos o poeta é o vapor barato e o lance de dados o acaso e o atalho Macalé e Mallarmé no mesmo saco o poeta é um guapo
GRADAÇÕES
gosto de acarinhar
os sítios da quietude
cada canto da casa
onde não passei
as mãos
eterno esgar de uma
existência que nunca
me basta
no mesmo baixio
no mesmo riacho
onde os mesmos
pássaros são
sempre outros
COMBUSTÃO
O que se mostra nu
não é o corpo. Porque
o corpo nu está sempre
escondido debaixo
da pele.
O que se mostra nu
é o avesso.
O que não meço.
O tropeço. O que não
posso, mesmo quando
imerso.
O que se perdeu por dentro
não pode ser exposto. A
menos que a morte aponte
o oposto.
(Eis a vida e seu rosto.)
olhar de amêndoa no silêncio do fruto ruído de primavera
Lau Siqueira nasceu em Jaguarão, na fronteira com o Uruguai e mora na Paraíba. Publicou dez livros de poemas, entre eles Inventário do Pêssego, Livro Arbítrio, A memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas e Poesia Sem Pele. Todos eles pela Editora Casa Verde, de Porto Alegre. Participou de algumas antologias, a exemplo de: Na virada do século – poesia de invenção no Brasil, organizado Por Frederico Barbosa e Cláudio Daniel, publicado pela Editora Landy e Bicho de Siete Cabezas, organizado por Martín Palacio Gamboa, publicado pela editora De todos los mares, Argentina. Atualmente escreve sobe artes plásticas e literatura na revista Mallarmargens e semanalmente escreve crônicas para a revista Crônicas Cariocas.
Contato: lausiqueira@yahoo.com
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