PLEONASMO
Para Elisandra Misturini
O pleonasmo é reativo
O verdadeiro está vivo
O pronome oblíquo
O dentro fora, o fora dentro
O cérebro pensamento
O pleonasmo sem freio
O sufixo sem prefixo
O cheiro da grama
Uma pessoa humana
A verdade verdadeira
A primavera na flor colhida por inteira
A flor no desfolhar da palavra
A arara viva virá na asa da gralha lírica
A página da página se pagina
No riso da risada que se ri na asa parada
O voo que mergulha na água molhada
E a folha folheada, paginada
Numa praia não visitada
E se sobe para cima
E se desce para baixo
E o guindaste movimenta a cidade
A cidade e o sol lava a alma
E uma salva de palmas
Um tijolo sobre o outro
Um carro sobre outro carro
Seguido em frente o trem
Ou voltando pra trás mais além
Recua no recuo até recuar
E recua muito bem
Muito ontem ou depois de antes
Um pleonasmo redundante
Uma salva de páginas
Uma caixa de palavras
Uma viagem de jornadas
Um mundo todo que manda
Às favas o nada
ÁGUA
Um pardal
Bebendo água
No nascedouro
Uma árvore
Um ipê
Tomando pela raiz
Um pouco de soro
Um riacho
Um rio um afluente
Para todos os lados
Vai cair
Como uma queda-d’água
Um estouro
Vai sentir
A água vai cair
Por todos
Como uma catarata
Do Niágara
No bebedouro
DIREÇÃO
Eu vou voltar pro lugar que fica onde Eu vou chegar e sei quando Eu estou com alguém ao telefone Eu estou parado, mas sigo andando Eu vou pisar no acelerador do carro Eu vou brecar antes de começar a subida Eu vou ver o foguete ir pro espaço Eu vou chamar esta casa de vida Eu vou ser chamado pelo sobrenome Eu vou me alegrar, mas reclamando Eu vou escrever de novo meu nome Eu vou sentir a flor perfumando Eu vou ouvir o vento vindo Eu vou olhar o céu Eu vou seguir aquele caminho Eu vou escrever tudo no papel Eu vou sorrir depois de passar Eu vou sentir o sol chegar de manhã Eu vou pensar antes de olhar Eu vou vestir um blusão de lã Eu vou andar pela rua isolada Eu vou sentir o sol aquecer os cílios Eu vou ver o sol de madrugada Eu vou ver o universo e todo seu brilho
BORBOLETA
A parte que me cabia
A parte que me faltava
No ar da palavra
E o que saía do casulo
Entre as plantas
Que agora crescia
E antes era larva
Não me confundia
Ela agora bate as asas
Com está no ar parada
A brisa que o vento respirava
Não caber mais onde estava
O casulo reprisava o ar
De volta ao casulo antes da larva
Era uma pedra de cores no ar
Era parte da brisa
A parte que se descobria
Era uma chuva contra o vento
Era uma cor que voava
Guardada dentro de casa
DEPOIS DE AGORA
Desde ontem Ainda hoje Portanto agora Muito embora O homem esteja aqui Ainda hoje Desde ontem Hoje e ontem Ou depois de agora Esteja lá fora O amor de outrora A paixão ao sol Que a chuva não evapora Esteja transpirando Com todos os poros Que a pele aflora Com toda a água Que a lágrima chora E com toda a alegria Que a pele recorda E a vida não solta Com as mãos segura Até o relógio ter corda Até o canto do pássaro Soar como banda sonora Tudo entrar em movimento A cidade e todos os edifícios Na memória
SISTEMA SOLAR
Todas as direções no mesmo caminho Todos os perfumes na mesma flor Todos os pássaros num mesmo ninho Todos os verões no mesmo calor Todas as cores na mesma pétala Todas as tempestades no mesmo vento Toda a dureza numa mesma pedra Todas as horas ao mesmo tempo Todos os planetas do sistema solar Todos os lugares vistos da mesma distância Todos os oceanos no mesmo mar Todos os doces na mesma infância Todos, todos, todos os sinais vitais Todo o amor pelos mesmos pais
AROMA
O móvel é um pouco cubista
e o rosto contra a claridade
do que fica à vista
se enche de vida
O aroma do perfume
de algum lugar da oceania
se espalha nos cômodos
por onde entra a brisa
e o ar que se espalha
a luz que entra
por uma fresta
o vento que ventila
O olhar verde
que faz parte da tarde
sopra as nuvens
e traz o dia
NOVA ESTAÇÃO
No bico – exato – do pássaro pousado na grade entre as rosas.
No ladrilho das horas – elas pedem por água e quem as acolhe durante o verão.
A queda – geada – das mais novas, o orvalho – das experimentadas. No bico do pássaro – exato – quando o céu queima, quem o socorre agora?
Do frio em demasia, do calor na chuva, do canteiro de repente – a luz mais intensa aflora.
LUZ
(20/08)
uma luz
aniversaria
planta
pétala
pele
sorriso
olhar
vértebra
cor
aquarela
quadro
janela
vida
célula
dia de sol
filme na tela
orvalho pela manhã
nuvem
água que molha
de dia estreia
confecção de vela
folha lisa
brisa
semente na terra
sol que estrela
clarão
ideia
ela
André Dick nasceu em Porto Alegre (RS), em 1976. É poeta, crítico literário e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com tese sobre a obra completa de Stéphane Mallarmé. Publicou os livros de poesia Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002), Papéis de parede (Belo Horizonte: Funalfa Edições; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004) e Calendário (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010), assim como a coletânea de traduções Poesias de Mallarmé (Bauru: Lumme Editor, 2010). Também organizou Signâncias: reflexões sobre Haroldo de Campos (São Paulo: Risco Editorial, 2010) e A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Rio de Janeiro: Lamparina, 2005), este com Fabiano Calixto. Publica críticas de filmes no Cinematographe. Estes poemas fazem parte do livro Neste momento (Kotter Editorial, no prelo).
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