RÉQUIEM AOS MORTOS
PELO CORONAVÍRUS
O homem que acaba de morrer,
deixou o copo d'água
sobre a toalha de linho,
não acabou de comer o caqui,
não recolheu a roupa no varal,
não teve tempo de se despedir
da mulher que ama.
Foi diagnosticado com coronavírus:
nem por isso as ondas do mar
estancaram seu fluxo,
nem por isso as noites
ficaram menos negras,
nem por isso amanhã a brisa
deixará de soprar as cortinas.
Agora,
encolhido na cicatriz de seu túmulo,
ele nunca mais dirá uma palavra.
O homem está morto,
menos sua foto
na praia de Sabalquivir,
menos a mancha que deixou,
quando limpou a boca no guardanapo.
A POESIA
como que se abandona
à densidade que a palavra traz em si:
cascalho
séptuor
cacimba
refrigério
jarra:
o poeta não pensa
ele diz o real
mesmo quando o real
se recusa a ser simbolizado:
a palavra dá consistência ao pensamento:
sem a palavra o pensamento esboroa:
a pele das palavras guarda
une absence: uma ausência
mais musical que a música:
ventarola
fúcsia
canoa
quibungo
garganta:
o poeta não esta no invisível
ele é a pulsação do invisível:
as finas camadas das coisas transbordam no poema:
o poeta não está no vazio
ele é a pulsação do vazio:
o poeta é aquele que restitui
o rito do olhar assombrado
do primeiro homem
quando
abriu
suas asas
tornou o mundo mais leve
se tudo o que nos circunda
nessa praia do Calixto
se torna imagem em nossa cabeça:
céu
areia branca
canoa
albatroz:
qual a diferença
entre o sonho e a vigília?
talvez não haja diferença.
o que acontece é que
durante o sono
sonhamos dormindo:
céu
areia branca
canoa
albatroz:
já durante a vigília
sonhamos acordados:
céu
areia branca
canoa
albatroz.
LIMESTONE LANDSCAPE:
PAISAGEM DE CALCÁRIO
(Réquiem para meu pai:
Franz Joseph Karl: 1933-2005)
Neste sábado,
os transatlânticos entoam,
entre as hélices de ferro,
a cavatina escura e as víboras,
agarradas à cica oceânica,
se arrastam in the limestone landscape
(na paisagem de calcário).
Nesta hora,
quando a noite é mais escura,
a chuva lava as venezianas,
depois a noite torna-se clara,
os dedos negros de Thelonius Monk tecem
o cheiro molhado de um blues
nas teclas do piano.
Mas tudo é inútil,
porque agora
os teus pulmões se calaram,
e os teus tímpanos
estão como conchas vazias,
que não recebem mais os augúrios
da brisa que bate as asas
entre as laranjeiras em flor.
desconfio que
depois que eu morrer
serei apenas uma
voz sem som
voz do silêncio
voz do (sol)êncio
esta mesma que eu escuto
não com os tímpanos
mas com minha presença
que
neste milésimo de segundo
já
é
incorpórea
vazia
invisível
IMPROPTUS
A língua é um sistema
em contínuo desequilíbrio.
Se levada ao extremo,
alucina o adágio fugace,
encontra o estame do som.
Enxugar o gelo com a língua:
inútil.
Enxugar as águas da praia do Cocal
com a língua:
inútil.
Como explicar a língua de frauta ruda,
a língua de agreste avena,
a língua de Ur
a uma tartaruga morta?
a um ventilador quebrado?
a um sovaco na carniça da cárie?
Cala-te, ó língua putrefata.
Cala-te, ó pó da língua.
Mas se eu trouxer a caldeirada de enguia para a única terrina na mesa,
então queime,
ó língua,
queime beatos e quiabos:
queime, ó língua,
queime hóstias e crucifixos,
depois escute, com a língua do tímpano:
o “Tchibum”, de David Hockney;
o “Whaam”, de Lichtenstein;
os “Linguarudos”, de Schawnke.
Com a cabeça envolta em mel,
com a cabeça envolta em tempestade,
o linguarudo atiça a torre de Babel,
o linguarudo baba
a planta venenosa no pulmão do óbvio,
e, com a espinha do peixe Capelo (Synaptura lusitanica),
engasga os que não escutam
a chuva na vidraça,
os que abominam Georg Trakl,
os que apedrejam as finas linhas de Klee,
os que consideram
os mantras de Aruanda um delito.
O linguarudo Schwanke,
linguarudo Pop,
eleva a ícones
os mais crassos objetos de consumo: hambúrguer,
louça sanitária, cortador de grama, estojo de batom,
pacote de espaguete, grampo de roupa;
ajoelha, o doce bárbaro linguarudo,
ante o altar
de uma lata de sopa Campbell,
chuta o balde se a língua
insiste em praticar
uma caspa
na sobrancelha da barata leprosa,
mas,
se a língua for um nó de fogo coroado,
aí Schwanke cava uma língua estrangeira na própria língua,
deforma a sintaxe e vocifera:
no Anno de 1870,
30 milhões de hindus morreram de fome
em nome do darwinismo social
ou da higiene da raça:
e adivinhe quem deu a ordem
para que não se fornecesse
alimento à legião desossada?
A Rainha Vitória,
da Inglaterra.
Morrer é a única coisa que darei à morte,
mas não confessarei a ela onde escondi o menino:
aquele que sonha mistura-se ao ar.
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