Arte de Cyane Pacheco
SIMETRIAS DISSSONANTES
em gestos imperceptíveis,
a mímica do corpo
é escultura móvel,
vazio da temporalidade
que incita o mundo:
desvio do fio que costura
na tela o filtro de luz –
aparência matinal
de um deus sonâmbulo,
espectro insone da existência
que, apenas aos bardos, se revela
obscura tez da tempestade,
o dilúvio de uma lágrima
e a ferida que não evanesce –
cicatriz do verbo presente
na dessimétrica dança do espaço,
cósmica sedução
na borda circular da fissura.
SUBTERRÂNEA
I
poesia nesta hora
ou qualquer outra
mão distraída que ensaia
a solução do verso
furtivo rito no escuro
(o medo ainda)
mesma curva obscena
que o olhar descreve
frases prontas
a derrotar ouvidos
e gestos a tal ponto
prontos para partir
(ainda o medo)
e agora longe daqui
II
um signo externo
fragmento do acaso
palavras e palavras
coberta de palavras
numa terra sem chão
vestida de murmúrios
ouço o gemido da voz
soluçante
o verbo sentencial
que espera impaciente
III
talvez possa criar
qualquer coisa simples
quase estéril
quase grotesca
soletrar um conselho
ou uma ácida sílaba
(diante do vício
forma oculta da flor)
COSMOGONIA DO SOL
I
mãos que descrevem
o mapa do mundo
pelo gesto do compasso.
linhas e ângulos
incidem roteiros
sob lume de estrelas
a espargir mar adentro
o vazio do silêncio.
junto à voragem
tudo é cinza
e inesgotável: afoga-se
rente às visões
(como fitar
não pudesse)
o brilho cego
da tempestade
à longa margem
do naufrágio.
II
no fundo da infinitude
o horizonte se reparte
em cumes desnudos
onde a noite se deita.
III
um galo tardio
apressa a manhã:
a vida se estende
sobre o precipício
e a clivagem do barro
que retalha
o hábito da luz
(asas do espaço
que reverbera
o canto.)
VIDA RECONCILIADA
I
eis o relato das tempestades
emocionais: de quando
em quando, encenar tristeza
como se a vida não fosse
tragédia, círculo
de cinismo
em face de tudo.
II
a estratégia do mundo além
da metafísica –
realidade empírica
da teoria conformista
verdadeiras sombras
e vestígios
do simbólico verbo
que não guardou lugar
para todos: felicidade
é um momento
que passa sem você olhar.
III
qualquer palavra em riste
não bastaria,
mas a ponta de uma faca
iniciando o corte
é razão insurgente:
axioma infindável
da filosofia
experiência poética das ruas
frente ao próprio tempo.
IV
(felicidade é novo argumento
para você anotar.)
GÊNESIS
“Não há e nunca houve
big-bang
apenas metamorfose”
Marcos Siscar
I
mãos gravadas na parede
pelo contorno da flecha
sangue que se fez tinta
na brecha ancestral
da origem do verbo
impressão de signos
que descobrem a textura
da primária rocha
II
cabe na caverna
feições de casa
desalento do espaço
abóbada de sombras
estalactites e alguns ossos
nossos vestígios lado a lado
desdobram-se feito dois nomes
dois amores perplexos
destinos acorrentados
(nomes que no mundo
nada dizem além da sombra
projetando o mito)
III
vidas insólitas
nirvanas em transe
nenhuma raiz
sequer um retrato
das tragédias sem textos
halos apenas
de aurora e crepúsculo
fúteis sinais da existência
IV
o desmedido tão próximo
dos nossos olhos
ao divisarem bioma inóspito
solidão de matas
assombradas na sina
de se tornarem mundo
V
vindo antes
da etimologia do verbo
um verso de vento
na fugacidade
de pequenas asas
cenário da era
na hora extrema
inconfessadas angústias
do esquecido éden
dá voz ao retórico
VI
um poeta soletra
a primeira estrofe da gênese
sem ritos que ressoem
ecos geodésicos
torrentes de assombro
brotam do âmago da terra
feito plutônico pranto
magnitude simbólica
da epopeia perdida
cânone afeito ao fim
Sidnei Olívio, natural de São José do Rio Preto (SP), é biólogo de formação e poeta por convicção. É autor dos livros Zoopoesia, 1999 (em coautoria); PoesiaAnimal, 2000 (em coautoria); Mutações, 2002 (em coautoria); Concretos & Abstratos, 2003; O limite da razão, 2011; Uni-verso: a natureza da poesia e a poesia da natureza, 2012; A transgressão da palavra, 2013; As sete faces da cidade, 2014; O que desmanchamos em pedaços, 2017; A visão poética do abismo, 2018; Poesia Invertebral, 2019 (e-book bilingue em coautoria); Poesiaé um lugar que não se revela, 2021; Tratado das Significações originais, 2022; Signos de passagem, 2023.
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