CASA
Uma casa de infinitos pisos,
escada que sobe até as nuvens,
que desce até o magma,
se levaria quantas vidas para entender?
E toda casa é assim, tanto que
chega uma hora em que todos desistem,
preferem vender, fazer a partilha
e nunca mais falar do assunto.
Mas o sonho não foi avisado
e volta a filmar na casa antiga
como se nada tivesse mudado,
como se a alma de lá não tivesse partido.
CLAQUE
A perfeição já é um defeito,
e olhando de frente
o perfeito é uma imposição,
um discurso a ser engolido
três vezes ao dia, com q-suco,
enquanto ninguém contesta.
Palmas para o perfeito
diz o encarregado
de erguer a placa
para a claque.
Prêmios para o perfeito
diz o júri do concurso,
como o corpo de jurados
do programa de auditório.
Cada um vai ser julgado
pelo critério do esquecimento.
CÂNTICO
Que não seja o raiar do dia a única alegria.
O ocaso pode ser a hora mais bonita.
A noite não apague o brilho das pequenas estrelas
e, mesmo que não venha o amanhã,
o hoje nos seja um bom alimento.
Não descrer na maldade,
não baixar a guarda,
mas não se deixar levar pelo ralo da amargura.
As pessoas são como são,
o mundo é como é,
e, de repente,
nada mais é como era.
Recebemos um punhado de dias,
uma cota de chuvas,
de nuvens e de sóis
até o retorno das estações bater a nossa porta
e não estarmos mais.
Que se lembrem de nós aos risos.
GUIA
Pela lei do cachorro,
deste poste até a terceira árvore,
a cidade é sua.
É o seu trecho, de direito,
auto-nomeado proprietário
e guarda, autorizado a aplicar
sanções a quem adentrar
sem prévio consentimento.
No entanto, o mesmo espaço
é ocupado por um túnel
em formato de labirinto,
alguns metros abaixo
da calçada, reino
comandado pela formiga rainha,
primeira e única.
Já a alguns centímetros acima,
por uma tubulação de ferro
envolta em concreto,
transitam atarefados ratos
que alardeiam aos quatro ventos
serem os donos do pedaço.
Enquanto isso, o prefeito
emite guias de IPTU.
FUGA
Poucas vezes dizemos: mudei.
Vez em quando, alguém comenta:
fulano está muito mudado.
Mais raro é ouvir: não-sei-quem
está irreconhecível.
Todos concordam, quase sempre,
que a essência não muda.
Tolera-se ser o mesmo
por décadas e décadas.
Mas tem um limite
quando então alguém exclama:
é preciso fugir da mesmice!
Não se pede derrotar,
aniquilar, ou outro verbo
mais ativo.
Usa-se fugir, como se da mesmice,
esse monstro invencível,
só se pudesse fugir.
Ricardo Silvestrin é autor dos livros de poesia Carta aberta ao Demônio, Sobre o que, Typographo, Metal, O menos vendido, Palavra mágica, entre outros. Na prosa, lançou Play, contos, e O videogame do rei, romance, ambos pela editora Record. Recebeu por cinco vezes o prêmio Açorianos de Literatura. É também compositor e vocalista e lançou o álbum SILVESTREAM. Mestre em Literatura pela UFRGS com a dissertação Manuel Bandeira, um poeta na fenda.
Commentaires