Foto: Kirill Pershin
Poema 33 de “Asilo e Anonimato”
Carrego meu amigo morto em minhas costas.
Carrego-o em minha vertigem de sol e pó.
Há quatro anos que eu o carrego
em meus braços descarnados e rotos.
Há quatro anos, e não pretendo parar.
Há quatro anos ele não mais berra;
há quatro anos não mais bebe da garrafa mortal,
e vai sendo esquecido pelos vermes da terra.
Há quatro anos preciso carregá-lo
como um silogismo na palma da minha mão,
como uma serpente dentro do meu olho.
Carrego meu amigo morto em minha insônia.
Carrego-o discretamente,
como se carregasse uma bomba ou um santo.
Carrego-o assim pois ele tinha ecos de sangue.
Há quatro anos o carrego inutilmente.
(Há quatro anos, apenas quatro anos –
sendo que nem toda eternidade bastaria.)
Carrego meu amigo morto em minhas costas.
Carrego-o porque ele não pode ser enterrado:
um sangue escuro brotaria das flores,
um ronco de faca saltaria dos vulcões,
e mesmo no inverno não se aguentaria o calor.
E assim eu ergo, grave e extático,
meu amigo morto neste copo fatal.
Poema 112 de “Asilo e Anonimato”
Dirás assim quando chegar a hora:
folha vermelha, voz negra,
abismo azul. Mas ainda não é hora.
Ouvirias meu riso anacrônico se estivesses aqui.
Tu também ouvirias o rugido oco do mar,
seu solene chamado, e também a saudade
impressa nestas ruas e nestes ventos.
Quando for tempo, então dirás:
pétala salgada, amarga enseada,
areia sacramental. Mas ainda não é tempo.
Nem sempre cabe tudo em um momento –
nem sempre.
Tu sentirias o bafo quente-frio deste céu
e a reluzente carnação matinal
que as aves trazem em seus bicos.
Mas ainda não podes senti-los.
Pois nem sempre a eternidade se insinua,
nem sempre é tempo da temporalidade nua.
Portanto ainda não dirás:
pétala de sal, folha de vermelho,
abismo de brancura...
Poema 354 de “Asilo e Anonimato”
Não posso com as mãos
parar esta onda viva;
com a voz, sobrepor
este rumor de espadas.
Não posso. Com a língua
não posso... Com a vida,
não posso barrar a enchente
que afoga minha alma
nas águas turvas e doídas
desta chacina de sóis.
Não posso. Mas posso
sublimar tudo isso,
transmutá-lo em fogo,
torná-lo imensamente eu,
possivelmente...
Não posso com as patas
frear esta corrida fria;
com as veias, esquentar
este vento de abortos.
Não posso. Com a cabeça
não posso... Com o lápis,
não posso riscar a loucura
que impede minha vida
de ser a vida que seria.
Não posso. Então alço
este impossível ao alto
da minha decadência,
solarmente cantando
em bárbara linguagem
este círculo...
Não posso com o verso
estancar esta hemorragia;
com a lógica, desfazer
este horror de belezas....
Poema 376 de “Asilo e Anonimato”
De tanto te olhar
já não são só meus olhos que queimam.
De tanto te querer
já não é só minha cabeça que arrebenta.
Um cavalo se esperneia
no meu coração de areia e fuligem;
um tubarão se debate
no tombadilho da minha revolta.
De tanto te morder
já não são só meus lábios que brilham.
Há uma luz na minha boca,
que dissolve o meu sabor amargo;
luz brava que incendeia
os silogismos da minha desventura.
De tanto te olhar
já não são só meus olhos que queimam.
Poema 577 de “Asilo e Anonimato”
Por mais que eu pressione
minhas mãos contra as costas do mundo,
por mais que eu esfregue
meus papéis nos seus rins anoitecidos,
por mais que eu grite,
por mais que eu cale fundo –
ele não se desfaz, não perece,
nem se transforma em doce decepção.
Por mais que eu esgoele a sua pomba
ela não morre, não perde seu ofício
de Espírito Santo ou carteiro de desastres.
Por mais que eu empurre o mundo pelas costas,
tentando precipitá-lo no claro abismo,
ele não se mexe: é duro, imóvel, intratável.
Por mais que eu lhe recite
os meus recifes feitos de náufragos,
por mais que eu lhe mostre
o interior de meus barulhentos cemitérios –
o mundo, ele não se desfaz,
não rebenta em um riso apocalíptico:
ele nem sequer esboça um sorriso,
não lamenta a minha piada.
Daniel Smuler é natural de Porto Alegre, RS, onde sempre morou. Tem formação em Filosofia. É autor do livro “Asilo e Anonimato” (2020), editado de forma independente, e tem o blog https://danielsmuler.wordpress.com/.
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