Berbere
Há mais de nove mil anos resisto:
sou a anciã do deserto,
a sua progenitora,
e em minha linha d`água traço com kajal
cada ondular de areia,
cada bote de naja.
Meus olhos protegidos enxergam
as deusas soterradas,
as mães da civilização,
seus teares de aranhas prateadas
ondulando nas raras chuvas
que a secura arrasta para o fundo
das terras
sob meu comando.
A serpente engole o vento
e beija minha jugular,
seu veneno lápis lazuli
anima meu sangue nômade
e sua prole andarilha
embebe todas as artérias
de rios, de corpos, de elementais.
Danço tatuada e mortal,
meus motivos geométricos
bebem o óleo de argan
e jorram mais caros que o petróleo,
brilhando espectros na sinuosidade
das missas paralelas.
Sou um tsunami de sílica
cegando o ícone opressivo do sol
envolvendo pirâmides, escrituras
e escorpiões.
Quando me levanto
leviatã corre para sua cova
e o outro lado do mundo
sonha com minhas profecias.
Espalho minhas cartas aos temporais
gestados com o rodar das moedas
do lenço de minha cabeça
coroada com serviçais metais.
E o meu recado secular é reproduzido
há mais de nove mil anos
na cantoria hipnótica
das cartomantes, das feirantes,
e do seu baralho,
aquele que abre nas horas desesperadas
em que precisa lembrar meu nome.
E eu te acalmo
com minha mensagem tribal.
Pode dormir, meu consulente,
estarei sempre aqui
cobrindo com meu manto arenoso
toda arquitetura
que ousar te doutrinar,
para que daqui nove mil anos
a antropologia nos recorde
sem nos inventar.
Nilota
Meu poema, meu projeto
é um homem preto
com glitter no céu da boca retinta.
Estrela interna na galáxia visível,
totalmente invisível
aos julgamentos.
Eu sou um homem preto
herético fervilhante, o meu
manto obscuro
no hermetismo para as grades,
na minha confusão preta
de verbos para a babel.
Aço derretido, sou o núcleo da terra,
minha estrofe preta é o magma,
sangue da babilônia.
E não há nada migratório
que diga o contrário.
Meu oposto pode dizer,
mas se cala,
porque o homem preto
com as asas carbonizadas
invade o asfalto neuronal,
rasante, tangente, transversal:
um atame enferrujado
— belíssimo seu corpo —
de adaga afiada
pelo rio que banha os papiros.
A água de sua saliva
me benze o útero,
me expele no parto
universal.
E não há nada em ti
que possa dizer
que peco, que sou um blefe.
Você não é o homem preto
de minha humanidade,
o homem substantivo
de minha animada
matéria misteriosa.
Você não é o Nilo
que me gerou.
Mestiça
Minha mão de gata do mato
espalmada em Pindorama:
filha dela que sou.
Porque somos muitas
peles, tribos, faunas & floras
crucificadas no ventre
livre & verde
da floresta originária.
Ardendo ao cuspe do sol,
ofertando a cara
vermelha
ao tapa da terra
que nos ocupa
e nos coloniza.
Venham a nós
amados bosques invasores,
adorados lagos de areia, lava e águas:
cresçam, floresçam,
digam-nos por quem viemos,
porquê nos curvamos mutuamente.
Para que entendam
a vós e a nós.
Para que me libertem
da tirania das classificações.
Para as irmãs, o mel!
Será confinada na caverna,
envolta pela prole esfomeada,
ladeando o fogo que não sobrevive só.
Esculpida por paleolíticos,
tal em Willendorf,
terá teu rosto apagado,
a tua vulva em destaque, o teu ventre estendido:
toda tua força reduzida ao sexo, à procriação.
Alguém lembrará das intermináveis lunações
em que passará reclusa
até que seque teu leite,
até que tua cria caminhe sem ti?
Será imortalizada na parede rupestre
apenas colhendo mel,
ao lado dos caçadores com arcos sangrentos
apontados para o coração de um leopardo
ameaçador.
A quem concederão a jornada do herói?
Alguém lembrará dos pequeníssimos
e dolorosos ferrões
em tua pele coletora?
Será guerreira, amazona,
mas insuficientemente feminina,
já que sem seio, “virago”, viril.
Dará vitalidade a toda revolução:
a tua voz alimentando o grito
“Liberté, Equalité, Fraternité”.
A fraternidade estampada
em todas as declarações!
Mas quem reivindicará contigo
a “Sororité”?
De “gossip”, companheira na hora do parto,
a que não esquece os nomes,
os acordos de boca, a quem pertencem
as propriedades, as fórmulas das ervas
fáceis de encontrar,
passará a ser a futriqueira, a inconveniente,
a sem capital valor.
Mas se te calares, quem revelará a origem
das injúrias, as curas e as proteções
aos "covens”?
Será a mulher nua na Praça do Homem Nu,
em minúsculas letras.
Reclinada, em repouso, aos pés do ereto
homem alinhado ao imponente
obelisco.
Posando para um retrato,
inofensiva.
Seria símbolo de justiça,
mas não te aceitariam
a verdade da nudez,
a falta de venda
sobre os olhos.
Será utópica quando coletiva,
pois dirão ser impossível lutar por tantas
se te apagas, se te esgotas, se te deixa diluir
em sonhos que não seriam apenas teus.
Será silenciada, ultrajada, reinventada,
sabotada, internada, performada, maquiada,
monstrificada!
Será tudo isto, e ainda mais,
se não escrever
você mesma
o que é.
Torre invertida
Sou uma construção social,
me dizem.
Sou culpada por ficar calada
e por dizer.
Devo cuidar das unhas,
do cabelo,
alongar os cílios,
apagar as manchas solares.
Até que o sol se cale,
devo explodir como uma estrela.
Doar meus átomos
para o buraco negro
de um vídeo viral,
com a trilha sonora do momento.
E louvar Alcyone, nas Plêiades,
sem nunca tê-lo visto.
Devo saudar torres e obeliscos,
que apontam sempre para cima,
e nunca falar dos poços.
O inferno está abaixo do meu umbigo,
dizem.
Preciso ser fálica, fada fatídica,
com olhos de sereia maquiada,
mas nunca cantar.
Minha sedução é amaldiçoada,
dizem.
Ninguém, realmente,
quer ir para o fundo do mar.
Devo acreditar nos filhos do boto.
Encantar-me com seu chapéu misterioso.
E sorrir, se ele me escolher,
com um sorriso de dentes alinhados,
branquíssimos,
sem a tinta dos alimentos vermelhos,
sem sangue.
Serei vista como a fera da floresta,
se assim não o fizer.
Preciso ser como me constroem:
um lego, um labirinto planejado,
um mapa a orientar.
Fechar as pernas na fotografia
e só abri-las após um assobio.
Até que a lua desvie sua rota,
devo refletir como um satélite.
Doar luz e força
para o movimento dos mares
que não são o meu.
Devo fazer tudo como manda o manual...
E eu não faço.
Velha vertente
Tudo que já tentou me deslegitimar
chegou e partiu
junto com o vento
de El Niño, de La Niña.
Fortalezas, templos e estradas,
me quebraram em mil pedaços.
Desidrataram minha pele
de savanas, de bosques
e pradarias.
Dispersei, pólen e areia flutuante,
errática e desconjuntada.
Com os pedaços de ninguém,
abri os braços no redemoinho
do ar pesado
que trinca a vidraça
de um décimo segundo andar,
sem desviar o curso de rio algum.
Catando terra, catando ossos,
saudando nuvens baixas,
médias e altas,
abracei os pedaços
de ninguém.
Com minha pele seca
de Atacama, de Saara,
senti a chuva
descer sobre tudo
que já tentou me deslegitimar.
E bebi o climatério
de El Niño, de La Niña,
brindando a mim
nos pedaços, nos terraços,
nas depressões,
nas férteis inundações
de tudo
e de ninguém.
Andréia Carvalho Gavita é poeta e tem sete livros publicados. Trabalha no Departamento de
Ciências Florestais da UFPR e na Editora Donizela. Colabora com a web-produção das revistas
Zunái e Sphera e coordena ações culturais no Coletivo Marianas. Portfólio: gavita.com.br
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