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Foto do escritorREVISTA ZUNÁI

6 POEMAS DE ANDRÉIA CARVALHO GAVITA


Berbere


Há mais de nove mil anos resisto:

sou a anciã do deserto,

a sua progenitora,

e em minha linha d`água traço com kajal

cada ondular de areia,

cada bote de naja.


Meus olhos protegidos enxergam

as deusas soterradas,

as mães da civilização,

seus teares de aranhas prateadas

ondulando nas raras chuvas

que a secura arrasta para o fundo

das terras

sob meu comando.


A serpente engole o vento

e beija minha jugular,

seu veneno lápis lazuli

anima meu sangue nômade

e sua prole andarilha

embebe todas as artérias

de rios, de corpos, de elementais.


Danço tatuada e mortal,

meus motivos geométricos

bebem o óleo de argan

e jorram mais caros que o petróleo,

brilhando espectros na sinuosidade

das missas paralelas.


Sou um tsunami de sílica

cegando o ícone opressivo do sol

envolvendo pirâmides, escrituras

e escorpiões.


Quando me levanto

leviatã corre para sua cova

e o outro lado do mundo

sonha com minhas profecias.


Espalho minhas cartas aos temporais

gestados com o rodar das moedas

do lenço de minha cabeça

coroada com serviçais metais.


E o meu recado secular é reproduzido

há mais de nove mil anos

na cantoria hipnótica

das cartomantes, das feirantes,

e do seu baralho,

aquele que abre nas horas desesperadas

em que precisa lembrar meu nome.


E eu te acalmo

com minha mensagem tribal.


Pode dormir, meu consulente,

estarei sempre aqui

cobrindo com meu manto arenoso

toda arquitetura

que ousar te doutrinar,

para que daqui nove mil anos

a antropologia nos recorde

sem nos inventar.


 

Nilota


Meu poema, meu projeto

é um homem preto

com glitter no céu da boca retinta.


Estrela interna na galáxia visível,

totalmente invisível

aos julgamentos.


Eu sou um homem preto

herético fervilhante, o meu

manto obscuro

no hermetismo para as grades,

na minha confusão preta

de verbos para a babel.


Aço derretido, sou o núcleo da terra,

minha estrofe preta é o magma,

sangue da babilônia.


E não há nada migratório

que diga o contrário.


Meu oposto pode dizer,

mas se cala,

porque o homem preto

com as asas carbonizadas

invade o asfalto neuronal,

rasante, tangente, transversal:

um atame enferrujado

— belíssimo seu corpo —

de adaga afiada

pelo rio que banha os papiros.


A água de sua saliva

me benze o útero,

me expele no parto

universal.


E não há nada em ti

que possa dizer

que peco, que sou um blefe.


Você não é o homem preto

de minha humanidade,

o homem substantivo

de minha animada

matéria misteriosa.


Você não é o Nilo

que me gerou.


 

Mestiça


Minha mão de gata do mato

espalmada em Pindorama:

filha dela que sou.


Porque somos muitas

peles, tribos, faunas & floras

crucificadas no ventre

livre & verde

da floresta originária.


Ardendo ao cuspe do sol,

ofertando a cara

vermelha

ao tapa da terra

que nos ocupa

e nos coloniza.


Venham a nós

amados bosques invasores,

adorados lagos de areia, lava e águas:

cresçam, floresçam,

digam-nos por quem viemos,

porquê nos curvamos mutuamente.


Para que entendam

a vós e a nós.


Para que me libertem

da tirania das classificações.


 

Para as irmãs, o mel!


Será confinada na caverna,

envolta pela prole esfomeada,

ladeando o fogo que não sobrevive só.


Esculpida por paleolíticos,

tal em Willendorf,

terá teu rosto apagado,

a tua vulva em destaque, o teu ventre estendido:

toda tua força reduzida ao sexo, à procriação.

Alguém lembrará das intermináveis lunações

em que passará reclusa

até que seque teu leite,

até que tua cria caminhe sem ti?


Será imortalizada na parede rupestre

apenas colhendo mel,

ao lado dos caçadores com arcos sangrentos

apontados para o coração de um leopardo

ameaçador.

A quem concederão a jornada do herói?

Alguém lembrará dos pequeníssimos

e dolorosos ferrões

em tua pele coletora?


Será guerreira, amazona,

mas insuficientemente feminina,

já que sem seio, “virago”, viril.

Dará vitalidade a toda revolução:

a tua voz alimentando o grito

Liberté, Equalité, Fraternité”.

A fraternidade estampada

em todas as declarações!

Mas quem reivindicará contigo

a “Sororité”?


De “gossip”, companheira na hora do parto,

a que não esquece os nomes,

os acordos de boca, a quem pertencem

as propriedades, as fórmulas das ervas

fáceis de encontrar,

passará a ser a futriqueira, a inconveniente,

a sem capital valor.

Mas se te calares, quem revelará a origem

das injúrias, as curas e as proteções

aos "covens”?


Será a mulher nua na Praça do Homem Nu,

em minúsculas letras.

Reclinada, em repouso, aos pés do ereto

homem alinhado ao imponente

obelisco.

Posando para um retrato,

inofensiva.

Seria símbolo de justiça,

mas não te aceitariam

a verdade da nudez,

a falta de venda

sobre os olhos.


Será utópica quando coletiva,

pois dirão ser impossível lutar por tantas

se te apagas, se te esgotas, se te deixa diluir

em sonhos que não seriam apenas teus.


Será silenciada, ultrajada, reinventada,

sabotada, internada, performada, maquiada,

monstrificada!


Será tudo isto, e ainda mais,

se não escrever

você mesma

o que é.


 

Torre invertida


Sou uma construção social,

me dizem.


Sou culpada por ficar calada

e por dizer.


Devo cuidar das unhas,

do cabelo,

alongar os cílios,

apagar as manchas solares.


Até que o sol se cale,

devo explodir como uma estrela.

Doar meus átomos

para o buraco negro

de um vídeo viral,

com a trilha sonora do momento.

E louvar Alcyone, nas Plêiades,

sem nunca tê-lo visto.


Devo saudar torres e obeliscos,

que apontam sempre para cima,

e nunca falar dos poços.

O inferno está abaixo do meu umbigo,

dizem.


Preciso ser fálica, fada fatídica,

com olhos de sereia maquiada,

mas nunca cantar.

Minha sedução é amaldiçoada,

dizem.

Ninguém, realmente,

quer ir para o fundo do mar.


Devo acreditar nos filhos do boto.

Encantar-me com seu chapéu misterioso.

E sorrir, se ele me escolher,

com um sorriso de dentes alinhados,

branquíssimos,

sem a tinta dos alimentos vermelhos,

sem sangue.

Serei vista como a fera da floresta,

se assim não o fizer.


Preciso ser como me constroem:

um lego, um labirinto planejado,

um mapa a orientar.

Fechar as pernas na fotografia

e só abri-las após um assobio.


Até que a lua desvie sua rota,

devo refletir como um satélite.

Doar luz e força

para o movimento dos mares

que não são o meu.

Devo fazer tudo como manda o manual...


E eu não faço.


 

Velha vertente


Tudo que já tentou me deslegitimar

chegou e partiu

junto com o vento

de El Niño, de La Niña.


Fortalezas, templos e estradas,

me quebraram em mil pedaços.

Desidrataram minha pele

de savanas, de bosques

e pradarias.


Dispersei, pólen e areia flutuante,

errática e desconjuntada.


Com os pedaços de ninguém,

abri os braços no redemoinho

do ar pesado

que trinca a vidraça

de um décimo segundo andar,

sem desviar o curso de rio algum.


Catando terra, catando ossos,

saudando nuvens baixas,

médias e altas,

abracei os pedaços

de ninguém.


Com minha pele seca

de Atacama, de Saara,

senti a chuva

descer sobre tudo

que já tentou me deslegitimar.


E bebi o climatério

de El Niño, de La Niña,

brindando a mim

nos pedaços, nos terraços,

nas depressões,

nas férteis inundações

de tudo

e de ninguém.


 


Andréia Carvalho Gavita é poeta e tem sete livros publicados. Trabalha no Departamento de

Ciências Florestais da UFPR e na Editora Donizela. Colabora com a web-produção das revistas

Zunái e Sphera e coordena ações culturais no Coletivo Marianas. Portfólio: gavita.com.br

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