CARTILAGEM
I.
nem morta nem viva espero o ruflar de um novo milênio
o desmanche de novas histórias - aquelas que nos fazem ser mais
como samambaias
armadilhas pra ninar gente grande
nem morta nem viva já que somos
a mesma coisa
a mesmíssima dilaceração
tantas américas tantas gargantas grafadas
na musculatura secular dos carcarás.
II.
chupo o mar que ainda existe na sua saudade
chupo como o sol
chupa os fios de água nas salinas
e como o próprio mar reclama a água que o sol roubou
não há espaço para baleias em salinas, elas morreriam salgadas
carne-de-sol-de-cachalote
há um fusca inteiro lá dentro
um fusca inteiro dentro da baleia
e o argonauta acha que o amor é navegável.
III.
lua de café manchada no canto da mesa
lua no reflexo de café
olha pra ela: me diz, é seu exílio
olha mais uma vez: qual corpo é seu?
olha mais uma vez: teme o seu desejo como teme o abismo do parto
como teme a vida sem utopia
como teme salamandras, papilotes, incêndios
todo exílio existe incêndio
mas essa sua deslembrança...
talvez exista algum açude nos asteroides ainda não catalogados...
queira dizer melhores prólogos
melhores mortes.
IV.
estou cansada da minha língua
estou cansada de dizer coisas que parecem sempre as mesmas
já que no fim toda língua precisa do mesmo
casa comida dengo sexo e arte
e respeito e tristeza
ouço os cães ladrando na rua, é disso que eles precisam
para os cães, o depois também é o agora e o tempo não existe
espero o bolo assar
cheiro de bolo. barulho de cães. espera
já disse, querida
conheço como ninguém a geografia das suas digitais. por dentro e por fora.
mas é difícil manter alucinações pro lado de dentro
estou cansada da minha língua que tem sempre as mesmas palavras
sexo morte saudade apóstrofe breu oceano cartilagem lábio fumaça fome
estou cansada da minha língua que tem sempre o mesmo gosto
que tem sempre a mesma fome
há séculos de tirania em jogo
não tenho medo dessa terra
tenho medo da minha fome
tenho medo da minha fome porque ela é bicho parrudo
me come pelas beiradas
e cansei da minha língua que já não me dá sintaxe nova, que já não brinca com a minha fome como
as crianças brincavam com bolinhos de terra
não tenha medo da minha fome, tenha medo da fome da terra. ela sim engole gente
ela sim engole gente.
MONÓLOGO AO FIM DO MUNDO
I.
jamais imaginei que você fosse tão lento
nenhum samba é tanta madrugada
II.
quando você aparece
sopitando como se nada fosse acabar
são as velhas que morrem
velhas de cabelo bem branco que se recusam
a acreditar que há fim do mundo
não as velhas que germinam lentilha
essas morrem por descuido
a história estremece o chão como
elefante centenário empalado
pelo próprio marfim
III.
não há fim do mundo que me faça perder o seu tango
não há fim do mundo que me faça perder a fome de feijão com farinha
não há fim do mundo que me faça parar de absorver vozes que não as minhas
não há fim do mundo que não habite a fila dos ossos
e morrer parece mais uma metáfora para esquecer
a criança síria encalhada na praia europeia, a baleia jubarte
a criança yanomami
o menino baleado dentro de casa
a família morta oitenta vezes
não há fim do mundo que reconquiste as praias de alagoas
nem tiroteio que extermine vírus, vermes
jamais imaginei que você fosse tão lento
nenhum tiro mata tão devagar
nenhuma língua demora tanto a escoar correnteza
nenhum samba demora tanto o choro
IV.
sinto o rosto do vento e é bom sentir o rosto das coisas
como quem assopra todo sentimento do mundo
sinto a chuva fina – quase não-chuva
porque o vento gela
e sentir frio é estar um pouco viva
mesmo que tenhamos morrido a cada morte não chorada
mesmo que eu seja uma loba laranja
morta queimada, sinto frio
há um átimo entre o frio, o calor e a morte
há uma tatuagem na minha lombar
feita por alguém que mentia
há tantas cores no vento do fim do mundo que já não parece
vento, nem abismo, nem morte
parece algo a mais que abismo miragem e morte
balbucio uns pares de sons abaulados
como se fosse único formato que eles pudessem performar
invento nova língua
aquela que não pude inventar enquanto amava
– quem ama inventa línguas todos os dias
e esquece a cada madrugada
V.
o fim do mundo me parece como humildemente
encarar a gota que cai da estalactite
e se vê cada vez mais próxima de ser
quase tudo
ou nada
Jade Luísa é poeta, atriz e habitante do Planalto Central. Estuda Letras na Universidade de Brasília e faz dramaturgia para o Coletivo de Teatro Enleio (DF). Tem uns pares de poemas publicados em revistas literárias virtuais e participa das antologias “As luas – o amor e suas variações” (Lumme, 2020) e “No meio do fim do mundo” (Elã, 2021). É autora do livro “O olho esquerdo da lua” (Penalux, 2021).
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